terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

KRISHNAMURTI EM CARMEL - parte 3

Entrevista concedida por Krishnamurti ao escritor inglês Rom Landau, na cidade de Carmel, Estados Unidos.

VI

Krishnamurti muito me havia falado durante aquelas poucas horas passadas no alto da colina, e no caminho de volta senti que seria conveniente digerir primeiro aquilo tudo, sendo mais prudente ficar só durante o resto do dia.

Li durante a tarde os folhetos que Krishnamurti me havia dado e que tinham as suas últimas conferências realizadas em Ojai e na Austrália. Se bem que neles encontrasse muitas de suas convicções fundamentais, impressionaram-me novamente as palavras que pronunciou diante de um auditório australiano para explicar-lhe ser essencial eliminar o eu, o ego, a fim de se descobrir a verdade. "A felicidade ou a verdade, ou Deus não pode ser encontrado como uma conseqüência do ego. Para mim, o ego nada mais é que o resultado do ambiente." Eu me perguntava se os ouvintes, de um modo geral, teriam sido capazes de apreender esta idéia. Não lhes fora sempre ensinado que lhes cumpre desenvolver seu ego, sua personalidade, para que lhes seja possível realizar qualquer coisa de importância na vida? Não seria mais acertado se Krishnamurti fosse, passo a passo, ensinando que só se encontra a percepção interior gradualmente e depois de longa e demorada preparação?

Esta foi minha primeira pergunta quando nos acomodamos na manhã seguinte sob os pinheiros que dominavam o oceano. "Certa vez, a Sra. Besant me disse o seguinte", respondeu Krishnamurti: "eu nada mais sou que uma enfermeira que ajuda aqueles que não sabem mover-se por si mesmos e que precisam de muletas. É isto o que considero meu dever. Você, Krishnaji, se diriji àqueles que não necessitam de muletas, que andam com os próprios pés. Continue a falar-lhe, mas, por favor, deixe-me falar aos que têm necessidade de auxilio. Não lhes diga que todas as muletas são prejudiciais, pois alguns há que não podem viver sem elas. Peço-lhe, não os aconselhe a se recusarem a seguir aqueles sobre quem eles se podem apoiar."

"Qual foi a sua resposta?", interrompi. "Creio que o pedido da Sra. Besant era muito justo."

"Disse-lhe: “É impossível fazer o que me pede. Considero muleta todo e qualquer método ou conselho definido e, por conseguinte, uma barreira à verdade. Tenho de continuar renegando todas as muletas - até a sua." Não me condene por haver sido tão cruel com uma mulher de oitenta anos, para quem julgo haver eu significado muito e que sempre amei e admirei!".

"Percebo seu ponto de vista, Krishnaji; não obstante, discordo de sua justeza", disse eu. "A maioria das pessoas não são independentes, nem conscientes de si próprias - e é por isso que necessitam de auxílio. Sua atitude poderia ser considerada cruel. Seu dever é, presumo, ajudar os outros, ajudar tantos quantos lhe seja possível. Não significa isto que você deve levar em consideração a imensa maioria das pessoas?"

"Não consigo distinguir entre maioria e minoria; é errôneo presumir haver uma verdade para as massas e outra para os eleitos. Espiritualmente, todos são iguais."

"Mas mesmo Jesus Cristo teve que diferençar. Primeiro, ele transmitiu a sua mensagem a uma pequena minoria antes que ela se pudesse tornar em propriedade pública."

"Terá realmente sido assim? Ele transmitiu a todos que a queriam aceitar. Quer falasse diretamente a doze ou a doze mil pessoas, isso é sem importância. Falou sobre coisas universais que interessavam a todos no mundo, fossem quais fossem suas características raciais, religiosas, intelectuais ou sociais. Ele nunca se dirigiu a apenas uma minoria.

"Mas não acha que seria mais acertado preparar o povo lentamente para uma verdade que requer um absoluto reajustamento interior? Só bem poucas pessoas estão maduras para a necessária revolução interna."

"Essas poucas importam. Aqueles que procuram sinceramente a verdade, que a estudam sob todos os ângulos, que a experimentam e se abrem para ela, não julgarão difícil viver em constante vigilância interior. Preparar os homens para isso seria uma concessão, e uma concessão é um acordo entre a verdade e a falsidade. Como pode esperar que eu pregue a falsidade - não importa sob que forma - depois de haver encontrado a verdade? Não sou um charlatão. Só me interessa a verdade espiritual."

"Então, que devem fazer aqueles que não sabem andar senão de muletas?"

"Que continuem a usá-las - eu nada tenho com isso. Quem necessita de sanatório não deve vir a mim." Krishnamurti chegou-se mais para perto de mim e tomou-me a mão como costumava fazer quando se sentia desanimado ante minha incapacidade para compreender seu modo de ver: "Você precisa compreender que só posso dirigir-me às pessoas que desejam transformar-se para encontrar a verdade. Não é por meio de um regime em ocasional especial ou por um sistema complicado de exercícios mentais que encontraremos a verdade."

Começava a compreender que nenhum meio-termo era possível e que Krishnamurti só podia oferecer a verdade com todas as suas conseqüências revolucionárias, ou nada mais. Apesar disso, acrescentei: "Creio que você tem razão; ainda assim, pergunto a mim mesma: Como é possível comunicar às massas a verdade tal como a concebe?"

Estampou-se na fisionomia de Krishnamurti aquela mesma expressão de tristeza que eu já notara anteriormente ao falar-lhe sobre aquele ponto. Começou lentamente, como se falasse consigo próprio: "Eu mesmo, muitas vezes, me pergunto: Como? Quando falo na Índia, mais de dez mil pessoas vêm ouvir-me. Milhares vêm ouvir-me na América - outro tanto na Europa - e na Austrália (1). Sei que a maioria vem simplesmente por curiosidade ou para distrair-se, sendo pequeno o número daqueles que procuram algo ainda não descoberto em parte alguma. Quantos voltarão mais felizes, enriquecidos?... E, ainda assim, sei que devo continuar com as minhas palestras. Só Podemos ajudar os outros falando-lhes, discutindo com eles a verdade" Parou durante algum tempo, voltando-se depois para mim: "Como sabe, abomino a idéia de disciplina e toda a futilidade do que se chama uma sociedade espiritual; não obstante, penso, às vezes, que talvez devesse preparar alguns poucos auxiliares, a fim de esclarecerem os que não me ouvem por causa de minha antiga notoriedade de "Messias". Eles ouviriam os meus "discípulos" que não teriam um passado para apagar. Confesso ser-me pesaroso não poder ajudar tantas pessoas quanto gostaria."

Levantamo-nos e Krishnamurti insistiu em levar-me até a meio caminho de meu hotel. O mar se estendia embaixo da estrada íngreme; de um lado, via-se um jardim particular cheio de flores vermelhas, azuis e amarelas e de árvores de mimosas cobertas de folhudos cachos de flores douradas. Além do jardim, os morros subiam diretamente para o céu. Embora o sol brilhasse, uma ligeira névoa cobria o mar. Novembro se aproximava, mas a luz, o calor e a vegetação sugeriam julho. Ao chegarmos ao meio da estrada separamo-nos; segui a pé pela costa, subindo Krishnamurti a montanha. Olhei para trás depois de um minuto e o vi andando lentamente; tinha a cabeça caída, bem como os ombros, que pareciam mais estreitos do que nunca. Tive um desejo enorme de voltar e dizer-lhe ainda alguma coisa, mas não o fiz.

(1)No verão de 1935 recebi uma carta de Krishnamurti do Rio de Janeiro, na qual escrevia: "Fiz aqui duas conferências num estádio de futebol por não haver um teatro tão grande que contivesse a multidão. De ambas as vezes, vinte mil pessoas assistiram a suas conferências.


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