terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Os problemas humanos

Krishnamurti

(SAANEN — II)

Uma das coisas mais árduas e difíceis é a percepção do quadro total da vida. A vida é um contínuo movimento de relações, e só quando compreendermos essas relações como um todo e não fragmentariamente, poderemos resolver os problemas individuais. Por “problemas” entendo as dificuldades que se nos apresentam na vida — a falta de mútua compreensão, as inumeráveis dúvidas e questões, o desequilíbrio, a luta constante para nos ajustarmos a um padrão de crença, uma experiência, uma dada norma social.

Todas essas lutas criam problemas, dificuldades, não? Só conhecemos a vida como uma série de dificuldades emocionais, psicológicas, ou concretas, e nunca somos capazes de resolvê-las totalmente. Se estamos verdadeiramente atentos ao que se passa em nós mesmos, sabemos que, ao contrário, preferimos fugir a essas dificuldades. Nunca nos habilitamos a considerar as nossas dificuldades com clarividência, jamais examinamos o padrão de nossa existência em sua totalidade. É verdade que, quando os nossos problemas se tornam agudos e surge uma crise, tornamo-nos cônscios deles; mas, mesmo então, não sabemos resolvê-los, nem revelamos a intensidade, a clareza, ou o conhecimento necessário a solucioná-los.

Nesta manhã, falarei sobre se é possível vivermos livres desses problemas na existência cotidiana. Quando a mente está enredada em algum problema, esteja, ou não consciente dele, esse problema, com efeito, prejudica a clareza do pensamento, prejudica a nossa atividade diária. Parece-me, pois, importantíssimo compreender esses problemas e viver livre deles, em vez de fugir-lhes ou tentar resolvê-los definitivamente. Precisamos primeiramente estar cônscios dos problemas, saber quais são eles — e mesmo isso exige uma certa atenção e percebimento. Para resolvermos os nossos problemas, precisamos conhecê-los. Nada adianta procurar um analista, um confessor, esta ou aquela pessoa, pois isso só indica que estamos fugindo do fato, de nossas reais dificuldades.

Assim, enquanto examinamos esta questão, espero estejais escutando o que digo, não como simples declarações objetivas, verbais, porém com o fim de bem perceberdes os vossos problemas pessoais.

Sabeis o que entendo por “um problema”? É uma coisa que não tendes compreendido, algo que vos corrói a mente e o coração, uma tortura que se repete e torna a repetir-se, e que temeis. É como um sonho que volta todas as noites, um sonho que vos influencia as atividades do dia e do qual desejais livrar-vos, ou para o qual buscais uma resposta, uma interpretação. Ou temeis a morte, a pobreza; temeis não ser amados, temeis as vossas relações. Ou estais sendo impelidos pela ambição, pela vaidade e existe em vós o sentimento de que nunca alcançareis o preenchimento. Temos uma enorme quantidade de problemas, alguns dos quais escapam ao nosso percebimento, e não conhecemos sequer os limites de tais problemas. É, sem dúvida, necessário compreender que a mente que está sendo torturada por problemas — não importa se problemas insignificantes, se problemas intensos, vitais, significativos — não pode ir longe. Os problemas, quaisquer que sejam eles influem inevitavelmente em nosso pensamento, nossa atividade, moldam a nossa vida; e, a menos que o indivíduo esteja verdadeiramente livre deles, não poderá ir muito longe.

Nossos problemas se relacionam com o viver de cada dia; a atividade diária, sexo, amor, o emprego, o medo de não ser amado, de ficar na solidão, o sentimento de extremo desespero, o tédio que nos vem de uma vida sem nenhuma significação. Sem dúvida, o indivíduo precisa estar bem cônscio de todas essas coisas, porque elas influenciam o rumo de nossas atividades. Não temos possibilidade de fugir delas, e não podemos ter problemas mundanos, problemas diários, e ao mesmo tempo querer encontrar uma vida interior profunda, uma vida espiritual — ou como a quiserdes chamar. A vida mundana e a chamada “vida espiritual” não estão em dois níveis separados, pois se acham intimamente relacionadas entre si. Se não compreendemos os problemas diários da vida e deles não estamos livres — por mais insignificantes, desprezíveis, tirânicos, feios que sejam — se não temos essa liberdade, a nossa busca de uma vida interior, espiritual, não tem significação nenhuma.

Pode-se ver que isso é perfeitamente racional, lógico. Não é simplesmente uma coisa que eu estou afirmando e que podeis aceitar ou rejeitar; é um fato. Se nossa mente não está libertada de preocupações financeiras, preocupações sobre se somos amados ou não, sobre se nos tornaremos famosos, no mundo, ou não, e as concomitantes tentações, degradações e brutalidade; se não compreendemos todos os problemas de nosso viver diário, nossa mente é completamente incapaz de penetrar com profundeza em algo que exige nossa integral energia, algo que não pode ser procurado, que não tem causa nem motivo.

Precisamos, pois, estar bem conscientes dos problemas diários, das cotidianas atividades. E espero que, juntamente comigo, os estejais percebendo bem, porque, se assim não for, não poderemos ir muito longe, nesta manhã ou, mesmo, em todo o decurso destas reuniões. Desejo investigar profundamente, porém vós não podereis fazer o mesmo se vossos problemas vos estão sufocando, cegando. E, se o fizerdes, isso será uma mera fuga, um esforço verbal em demanda de um certo mito sem realidade alguma.

Ora, se estamos cientes desses problemas, que devemos fazer? Em primeiro lugar, que se entende por “estar cônscio” — estarmos cônscios de nossos problemas? Tomai em consideração vosso problema pessoal, pelo qual estais sendo torturados. Quando dizeis “Sei que tenho um problema” — que entendeis com isso? Quereis dizer que tendes uma dificuldade, uma dor, ou um prazer que temeis não continue. No esforço para evitar aquela dor ou manter a continuidade daquele prazer, dizeis: “Estou cônscio de meu problema.” Ora, que se entende por “estar cônscio dele”? Percebeis a existência do problema como sabeis da existência deste microfone? Trata-se de uma coisa exterior a vós, que estais observando, ou dela estais ciente sem que nenhum espaço exista entre vós e essa coisa que observais, isto é, sem a divisão em “observador” e “coisa observada”? Se sois o “observador”, neste caso estais tentando fazer algo em relação à coisa observada; desejais alterá-la, desejais criar uma situação em que essa coisa não mais vos cause dor, ou vos proporcione a continuidade do prazer.

Por conseguinte, muito depende da maneira de considerar o problema, de como o percebeis, de como o conheceis. Em geral, o conheceis como quem está de fora a olhar para dentro, e isso significa que o que estais olhando é diferente da imagem que tendes de vós mesmos. Cada um de nós tem uma certa imagem de si próprio, em geral uma imagem algo lisonjeira, e dessa base é que olhamos a coisa que nos causa dor ou prazer.

Por favor, acompanhai o que estou dizendo, pois, se o fizerdes, isso irá tornar-se muito interessante, à medida que formos penetrando mais, como espero o façamos nesta manhã.

Tendes, pois, uma imagem de vós mesmos — como sois ou como deveríeis ser ou deveis ser — e dessa imagem olhais a coisa que chamais “um problema”. Há, pois, a imagem e o problema; e procurais então comparar o problema com a imagem ou o interpretais em conformidade com o padrão estabelecido por essa imagem. Não é assim? Tendo uma certa imagem de vós mesmos, com essa imagem é que olhais o problema; há por isso uma divisão, uma contradição entre o problema e o que pensais ser ou o que pensais deveríeis ser; há um constante conflito entre aquilo que vossa imagem representa, e o problema que contradiz essa imagem.

Posso prosseguir? Está claro até aqui?

Pois bem. O problema nunca será resolvido enquanto a imagem existir — a imagem do que deveríeis ser, ou a imagem de si própria que a mente criou por efeito do saber, da história, da tradição familiar, de todas as formas de experiência. Estais cônscios, não da imagem, porém do problema, enquanto o que aqui estamos tentando não é resolver o problema, porém, sim, compreender a estrutura da imagem; porque, se nenhuma imagem temos de nós, podemos resolver o problema.

O indivíduo, em geral, tem de si próprio a imagem de que é um ser humano extraordinário, ou um homem mal sucedido na vida, um infeliz que precisa preencher-se, ou um homem vaidoso, ambicioso — bem sabeis que imagens a maioria das pessoas têm de si próprias. Pensam ser Deus, ou pensam não ser Deus, porém apenas ambiente, que são isto ou aquilo. Têm uma dúzia de imagens de si próprias, ou apenas uma imagem predominante. Ora, se eu tenho uma imagem de mim mesmo, essa imagem terá de contradizer os fatos da existência diária, e só sou capaz de olhar esses fatos com os olhos dessa imagem. Por conseguinte, o problema é criado pela imagem e não pelo próprio fato.

Escutai o que estou dizendo; não o rejeitei não o aceiteis, não o absorvais: olhai-o, simplesmente.

Ora, por que formo essa imagem de mim mesmo? Vejo que enquanto eu tiver qualquer conceito, imagem, conclusão a meu respeito, os problemas continuarão existentes. Assim, já não estou interessado no problema, na dificuldade; apenas me interesso em compreender por que tenho essas imagens, conceitos e conclusões sobre a minha pessoa. No Oriente, muita gente tem a idéia de que é Deus, têm uma infinidade de conceitos; e aqui, no Ocidente, tendes também vossos conceitos, vossas imagens. Ide ao mundo comunista, e vereis que também lá eles têm suas imagens. Ora, por que formamos essas imagens, esses conceitos?

Faço-vos esta pergunta e peço-vos compreendê-la. É uma pergunta fundamental e não uma pergunta superficial. Em geral, nunca fazemos a nós mesmos uma pergunta fundamental, mas agora a estamos fazendo.

Por que razão eu, que vivo há quarenta, cinqüenta, sessenta ou não importa quantos anos — por que razão mantenho esse depósito repleto das coisas que penso, que sinto, que sou, que deveria ser, essa enorme acumulação de conhecimento e experiência? E, se eu não o fizesse, que aconteceria? Compreendeis? Se nenhum conceito eu tivesse a respeito de mim mesmo, que me sucederia? Ver-me-ia como que perdido numa floresta, não é verdade? Sentir-me-ia incerto, aterrorizado com a vida. Por isso, formo uma imagem, um mito, um conceito, uma conclusão a meu respeito, porque, sem essa estrutura, minha vida se tornaria, para mim, sem significação, incerta, medonha. Não haveria segurança. Exteriormente, posso estar em segurança, ter emprego, casa, etc., porém desejo estar tam bem em perfeita segurança interiormente; e é esse desejo de segurança que me impele a formar essa imagem de mim próprio — imagem puramente verbal, isto é, não tem realidade nenhuma, é um mero conceito, uma memória, uma idéia, uma conclusão. Vejo isso agora como um fato. Dele estou consciente. Continuai, por favor, a acompanhar-me, trabalhemos juntos. Sei como formei a própria imagem, quer por esforço consciente, quer inconscientemente, através das inumeráveis influências da sociedade, da religião organizada, dos livros. Sei-o agora. Eu a formei, e vejo por que a formei. A sociedade o exige; e, também, independente da sociedade, desejo estar em segurança. A sociedade me ajuda e eu também me ajudo a ser essa imagem, essa idéia, essa conclusão; de todo esse processo estou bem ciente.

Agora, desejo saber o que se entende por “estar cônscio de alguma coisa”. Estais cônscios de quando tendes fome, ninguém vo-lo precisa dizer; não é uma experiência “de segunda mão”. Não é coisa aprendida num livro. Nenhum instrutor vos demonstrou que estais com fome; não houve interferência de nenhuma filosofia, de nenhum método, de nada. Há em vós uma reação interna, a qual chamais “fome”; trata-se de uma experiência de “primeira mão”. E percebeis a estrutura, o significado e a natureza dessa imagem do mesmo modo que estais conscientes da fome? Entendeis o que quero dizer? Trata-se de algo que por vós percebestes, descobristes, e que ninguém vos precisa dizer; de um percebimento individual e não de uma descrição por mim feita e por vós aceita? Quando tendes dor de dentes ou de outra natureza, trata-se de uma coisa que é vossa. De modo idêntico, se estais cônscios daquela imagem como algo que vós mesmos descobristes, trata-se então de um descobrimento que ninguém vos pode tirar, nem dissipar, nem aumentar. É o fato. Outros poderão descrevê-lo, acrescentar-lhe mais detalhes, mas o fato vos está presente. Podemos prosseguir?

Ora, que acontece quando percebo o fato de que formei uma imagem de mim próprio — quando dele estou tão consciente como da fome? Estamos acostumados a fazer esforços. Desde a infância estimulam-nos a forcejar, a lutar, para termos mais êxito do que outro qualquer. Mas aqui não há necessidade de esforço algum, porque não há nada a exigir-nos esforço. Entendeis? Estou simplesmente a observar o fato de que tenho uma imagem de mim próprio. Todo esforço que faço para alterar, melhorar ou desfazer essa imagem consiste em ajustar-me a outra imagem que tenho de mim mesmo. Está claro? Se faço um esforço para dissipar ou destruir a atual imagem, esse esforço se origina de uma outra imagem que formei de mim, a qual diz que a imagem atual deve deixar de existir.

Estou a hipnotizar-vos, ou estamos trabalhando juntos?

Como disse no começo, necessitamos de liberdade, não simplesmente de estarmos livres de umas poucas ansiedades, estúpidas e insignificantes, etc., porém de liberdade completa. E a liberdade não é uma reação. Toda reação é meramente uma revolta entre as paredes da prisão; não é liberdade. A mente que se vê tolhida por problemas jamais pode ser livre. Quer se trate do problema da morte, quer do problema relativo a vossos sonhos — não importa qual seja o problema; enquanto ele existir não haverá liberdade, O problema é absolutamente sem importância, pois o que importa é a imagem que tendes de vós mesmos. Se nenhuma imagem tendes, se a mente está completamente livre de todas as imagens, estais então aptos a resolver qualquer caso que se apresente, e ele não constitui problema algum.

A mente, pois, está cônscia de ter criado uma imagem de si própria, e que todo esforço para dissipar, dissolver ou fazer alguma coisa a respeito dessa imagem nasce de uma outra imagem, existente num nível muito mais profundo e que diz: “Não devo criar nenhuma imagem.” Todo esforço no sentido de alterar a imagem atual procede de outra imagem, mais profunda, de uma conclusão mais profunda. Vejo que isso é um fato e, por conseguinte, minha mente não está fazendo esforço algum para dissipar a imagem. Estais-me seguindo? A mente está totalmente cônscia da imagem, sem ter nenhum desejo, sem fazer nenhum esforço, sem sofrer nenhuma alteração; está simplesmente cônscia dela, simplesmente a olhá-la. Olho para este microfone, e não posso fazer coisa alguma a respeito dele. Ele existe, foi feito. De modo idêntico, a mente olha a imagem, a conclusão que tem a respeito de si mesma, sem fazer nenhuma espécie de esforço; esta é a atenção real. Nessa observação descobrireis que existe uma disciplina tremenda — não a estúpida disciplina de ajustamento. Visto que não faz nenhum esforço para alterar a imagem, a própria mente é essa imagem. Não existem separadas a mente e a imagem, porém a mente é a imagem. Todo movimento por parte da mente para identificar-se com essa imagem ou destruí-la é criado ou impulsionado por outra imagem. A mente, por conseguinte, percebe que ela própria é a criadora da imagem.

Se percebeis esse fato, realmente, a imagem perde então toda a importância. A mente está então apta a resolver qual quer problema, qualquer crise que surja, sem o auxílio de nenhuma conclusão prévia, emanada da imagem. A mente está agora livre de todas as imagens e, por conseguinte, não se acha numa posição estática, sobre um pedestal — uma crença, um dogma, uma experiência na forma de conhecimento — de onde observa o problema. A mente, por conseguinte, pode agora “estar completamente” com qualquer dificuldade que se apresenta, sem considerá-la um problema. Só existem problemas quando há uma contradição. Mas, aqui não há contradição alguma. Não tenho nenhuma imagem, nenhum centro, nenhuma conclusão, de onde estou olhando; deste modo, não há contradição e, portanto, não há problema.

Como disse de início, a vida é um movimento de relações, não só com pessoas, porém com tudo — a natureza, dinheiro, idéias. A vida é um movimento, e quando nos movemos com a vida, ela não apresenta nenhum problema. E só quando se apresenta uma situação estática, da qual estamos tentando compreender, que a vida se torna um problema. A vida mundana é a única vida que tendes de compreender, e não a vida espiritual. Quando já não estamos sendo impelidos pela ambição, pela avidez, pela inveja, quando já não buscamos fama, e quando todas as coisas que constituem isso que chamamos “vida mundana” estão em perfeita ordem, há então um movimento totalmente diferente, que a mente não pode prever, nem nele crer ou a seu respeito chegar a uma conclusão. Só existe o movimento da vida, mas nós o dividimos em movimento mundano e movimento espiritual, em vida exterior e vida interior. Fizemos da vida interior uma coisa separada. Cansados da nossa vida mundana, com seus horrores e brutalidades — bem sabeis de tudo o que se passa — tratamos de evadir-nos, de estabelecer dentro em nós uma “vida espiritual” — o que é um grande disparate. Não podeis estabelecer para vós mesmo uma vida espiritual sem terdes, primeiramente, perfeita ordem; e ordem significa liberdade. Vereis, então, que há uma vida totalmente diferente, uma vida não criada pela mente — vida sem causa, sem fim, sem começo — um movimento. Mas, o que quer que façais — sentar-vos em qualquer posição, executar todos os truques que quiserdes – nenhuma possibilidade tendes de alcançar ou compreender aquele movimento, se não existe completa ordem, quer dizer, se não estais livres da luta exterior de cada dia – da dor, do sofrimento, da avidez, da ambição.

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