quinta-feira, 28 de março de 2013

Descobrindo a causa fundamental do medo


O homem é autoridade absoluta para si mesmo; o homem é o seu próprio senhor, não é tributário das circunstâncias exteriores. Ele , por suas próprias tristezas, pelas suas complicações, pelos seus desentendimentos, faz parte do mundo, e o mundo que o rodeia é sua expressão.

(...)

Para onde quer que vocês se dirijam, verificarão que as pessoas buscam a felicidade que é permanente, durável e eterna. São, porém, colhidas como peixe na rede — rede má — das coisas transitórias que as rodeiam, pelos aborrecimentos, pelas atrações, antipatias, ódios, despeitos, por todas essas mesquinhas coisas que ligam o homem. É como se estivéssemos num jardim onde há muitas flores. Cada flor se esforça por expandir-se, por viver e proporcionar seu aroma, mostrar sua beleza, seus desejos, por evidenciar ao mundo seu pleno crescimento. Durante o processo de desabrochar, de conquistar, de expandir-se, perde-se o homem no que é exterior. Surge daí a complicação e ele têm de distinguir desde o começo o que é essencial do que o não é.

(...)

Como vocês podem compreender o ambiente? Como podem entender o pleno significado e merecimento? O que é que lhes impede de ver seu significado? O medo. O medo é a causa da busca de proteção ou segurança, segurança que ou é física ou espiritual, religiosa ou emocional. Enquanto existir esta busca, tem de haver medo, o qual então cria a barreira entre a mente de vocês e o ambiente e, por esse modo, cria um conflito; e esse conflito, vocês não podem dissolver, enquanto somente se preocuparem com o ajustamento, a modificação, e jamais com a descoberta da causa fundamental do medo.

Assim, pois, onde houver esta busca de segurança, de certeza, de uma meta impedindo o pensar criador, tem de haver o ajustamento chamado disciplina de si própria, que nada mais é que compulsão, a imitação de um padrão. Ao passo que, quando a mente vê que não existe tal segurança no ajuntamento de coisas ou de conhecimentos, então a mente liberta-se do medo, e portanto a mente é inteligência, e aquilo que é inteligência não se disciplina a si mesmo. Só há própria disciplina, onde não há inteligência. Onde há inteligência, há entendimento liberto da influência do controle e do domínio. 

Krishnamurti — O medo – 1946 — Coletânea ICK

Onde há medo não pode haver inteligência

Quero falar agora a respeito do medo, que necessariamente cria compulsão e influência.

Nós dividimos a mente em pensamento, razão e intelecto; mas, para mim, a mente é inteligência criadora de si mesma, porém nublada pela memóriaa mente que é inteligênciaestando nublada pela memóriaconfunde-se com esse "eu" consciência, que é o resultado do ambiente. Assim, a mente torna-se escravizada pelo ambiente que ela própria criou através do desejo, e, portanto, há temor continuamente. A mente criou o ambiente e, enquanto não compreendermos este ambiente, deve haver medo. Não damos todo o nosso entendimento ao ambiente e não estamos plenamente conscientes dele e, assim, a mente torna-se escrava desse ambiente e por causa disso há medo; e a compulsão é o instrumento desse medo. Logo, naturalmente, a falta de entendimento do ambiente é produzida pela falta de inteligência, e, por não compreendermos o ambiente, o medo é, por essa forma, criado, necessitando de influência, seja externa ou interna.

E como é criada esta continua compulsão, a qual se tornou o instrumento, o penetrante instrumento do medo? A memória nubla a mente, e a mente nublada, é o resultado da falta de entendimento do ambiente, que cria conflito, e a memória torna-se consciência de si própria. Esta mente, nublada, limitada e confinada pela memória, busca a perpetuação do resultado do ambiente, que é o "eu"; assim, na perpetuação do "eu", a mente busca ajustamento, a alteração ou modificação do ambiente, seu crescimento e expansão. Como sabem, a mente está continuamente buscando o ajustamento ao ambiente; porém, este ajustamento não produz entendimento, nem podemos verificar o significado desse ambiente pela tentativa de modificar ou expandir esse ambiente. Porque a mente busca, continuamente, sua proteção, ela, nublada pela memória, tornou-se confusa, identificada com a própria consciência — essa consciência que deseja perpetuar-se; por conseguinte, ela se esforça por alterar, ajustar, modificar o ambiente ou, em outras palavras, a mente procura tornar o "eu" imortal, universal e cósmico, como julga ser possível.

Não é assim?

Portanto, a mente que busca imortalidade, deseja realmente a continuação desse "eu"-consciência, a perpetuação do ambiente; isto é, enquanto a mente se apegar a ideia do "eu"-consciência, que é apenas a falta de compreensão do ambiente e, portanto, a causa do conflito, ela continuará a procurar nessa limitação sua própria perpetuação, que denominamos imortalidade, ou aquela consciência cósmica em que o particular ainda persiste. Enquanto a mente, que é inteligência, estiver presa no cativeiro da memória, que é o "eu"-consciência, haverá a busca do falso pelo falso. Este "eu", como expliquei, é a falsa reação do ambiente; há uma causa falsa e ela está sempre buscando uma falsa solução, um falso efeito, um falso resultado. Assim, quando a mente nublada pela memória busca perpetuar-se como própria consciência, está procurando falsa imortalidade, falsa expansão cósmica ou o que quer que lhe queiram chamar.

Neste processo de perpetuação do "eu", dessa memória que é conservadora de si própria, na perpetuação desse "eu", nasce o medo — não o medo superficial, porém o medo fundamental, de que tratarei logo em seguida. Eliminem esse medo, que tem como sua expressão exterior a nacionalidade, o crescimento, a expansão, o êxito — eliminem esse medo fundamental e, então, a ansiedade pela perpetuação desse "eu" e todos os temores cessam. Portanto, o medo existirá, enquanto existir o desejo de perpetuação dessa coisa que é falsa: este "eu" é falso, portanto, devem ter uma falsa reação, a qual é o próprio medo. E onde existir o medo, deve existir disciplina, compulsão, influência, domínio e a busca do poder que a mente glorifica como virtude e divino. Se realmente refletirem sobre isto, verificarão que onde existir inteligência não pode existir a busca pelo poder.

Toda a vida está moldada pelo medo e pelo conflito e, portanto, pela compulsão, pela imposição de decretos e grilhões que alguns julgavam virtuosos e dignos e outros consideravam venenosos e maus. Não é assim? São estas as restrições que vocês estabeleceram em suas buscas de  perpetuação, livre de medo; nessa busca criaram disciplinas, códigos e autoridades, a vida de vocês está modelada, controlada e conformada pela compulsão de várias formas e graduações. Alguns denominam de virtuosa esta compulsão, outros a consideram perniciosa.

Temos, em primeiro lugar, a compulsão exterior, que é a repressão do ambiente sobre o indivíduo. A pessoa vulgar, que vocês denominam não evoluída, não espiritual, é controlada pelo ambiente, o ambiente exterior; isto é, pela religião, códigos de conduta, padrões de moral, autoridade política e social; é uma escrava de tudo isto, porque isto tudo está radicado nas necessidades econômicas do indivíduo. Não é assim? Eliminem integralmente as necessidades econômicas de que o indivíduo depende e então os códigos de conduta, padrões de moral e valores políticos, econômicos e sociais desaparecem. Portanto, nestas restrições do ambiente externo, que criam conflito entre o indivíduo e o ambiente, na qual o indivíduo é oprimido, vergado, torcido, torna-se ele progressivamente sem inteligência. O indivíduo que está meramente condicionado, a todo instante, pelo ambiente exterior, amoldado por certas regras, leis, reações, editos e padrões de moral — quanto mais o oprimiremmenos inteligente ele se torna. A inteligência, porém, é a compreensão do ambiente, percebendo seu significado sutil, liberto de compulsão.

Estas restrições impostas ao indivíduo, às quais ele chama ambiente externo, tem como seus expoentes os charlatões e exploradores na religião, na moralidade popular, e na vida política do homem. Explorador é o indivíduo que se utiliza de vocês, consciente ou inconsciente, e vocês se submetem consciente ou inconscientemente, porque não compreendem; se tornam econômica, social, política e religiosamente, o explorado, e ele se torna o explorador de vocês. Assim, por esta maneira, a vida torna-se uma escola, um molde, um molde de aço em que o indivíduo é batido para tomar forma, em que ele se torna mero dente da engrenagem de uma máquina, irrefletido e rigidamente limitado. A vida torna-se uma luta, uma batalha contínua, e assim ele estabeleceu essa falsa ideia de que a vida é uma série de lições a serem aprendidas, a serem adquiridas, de modo que ele possa, previamente, ser advertido para defrontar a vida amanhã, novamente, porém, com suas ideias preconcebidas. A vida torna-se meramente uma escola, não uma coisa a ser vivida, a ser gozada, a ser vivida com êxtase, plenamente, sem medo.

O ambiente externo domina o indivíduo, forçando-o a entrar nessa estrutura de aço, de padrões, de moralidades, ideias religiosas, de editos de moral, e como o indivíduo é esmagado pelo exterior, busca escapar e foge para um mundo que ele chama interior. Naturalmente quando a mente é torcida, conformada, pervertida pelo ambiente exterior e há um constante conflito externo, luta, constantes falsos ajustamentos, a mente espera por tranquilidade, por felicidade, por um mundo diferente; assim o indivíduo edifica um céu romântico de fuga, onde procura compensação para as perdas e o sofrimento no mundo externo.

Por favor, como disse, vocês estão aqui para descobrir, para criticar, não para se oporem. Podem se oporem, depois que tiverem refletido muito cuidadosamente sobre o que lhes digo. Podem levantar barreiras, se assim o desejarem, mas, primeiro, averiguem plenamente o que eu quero lhes transmitir, e, para o fazerem, necessitam de ser supercríticos, apercebidos, inteligentes.

Como lhes disse, o indivíduo, esmagado pelas circunstâncias exteriores que criam sofrimento e esforçando-se para escapar a essas circunstancias, cria um mundo interno, começa a desenvolver uma lei interna e cria suas próprias restrições individuais a que denomina disciplina ou cooperação com aquilo  a que aprendeu a chamar seu "eu" superior.

A maioria das pessoas — as pessoas pretensamente espirituais — rejeitaram a força externa do ambiente e a sua influência, porém, desenvolveram uma lei interna, um padrão interno, uma disciplina interna, a que chamam trazer o eu superior para o eu inferior; isto, em outras palavras, é mera substituição. Existe, assim, a própria disciplina. Há, depois, aquilo que denominam de voz interior, cujo poder e controle é, sem dúvida, muito maior do que o ambiente externo. Qual é, porém, finalmente, a diferença entre um e outro, entre o externo e o interno? Ambos controlam, pervertem a mente, que é a inteligência, pelo desejo de perpetuação de si mesma. E vocês têm também aquilo que chamam de intuição, que é apenas a apelação, sem travas, de suas próprias esperanças e desejos secretos. Assim, vocês completaram o mundo interno, aquilo que chamam de mundo interior, com tudo isto — disciplina de si próprio, voz interna e intuição. Tudo isto, se refletirem são formas sutis desse mesmo conflito, levadas para um mundo diferente em que não há entendimento, mas apenas uma padronização, um ajustamento a um ambiente mais sutil a que vocês denominam mais espiritual.

Como sabem, algumas pessoas buscaram e encontraram, no mundo exterior, distinções sociais e, igualmente, as pessoas denominadas espirituais, buscam apenas nesse mundo interno, e geralmente encontram, seus pares e superiores espirituais; e, assim como há conflito entre os indivíduos no exterior, também é criado um conflito espiritual no mundo interno, entre os ideais, as expansões e suas próprias ansiedades. Vejam, pois, o que foi criado.

No mundo externo não há expressão para a mente nublada pela memória, para esse "eu"-consciência não há expressão, porque o ambiente é demais forte, poderoso e esmagador; nele, ou vocês se adaptam ao molde ou, se não o fizerem, são esmagados. Assim, vocês desenvolvem uma forma interna, ou mais sutil, de ambiente, em que tem lugar exatamente o mesmo processo. Este ambiente por vocês criado é uma fuga do ambiente externo, e nele vocês também têm padrões de leis morais, instituições, o eu superior, a voz interna, e a isso constantemente se ajustam. Isto é um fato.

Em essência, estas restrições, denominadas internas e externas, nascem do desejo e, por isso, existe o medo; do medo surge a repressão, a compulsão, a influência, e o desejo de poder, que são apenas expressões exteriores do medo. Onde há medo não pode haver inteligência, e enquanto não compreendermos isto, deve haver na vida essa divisão em interna e externa e, portanto, as nossas ações têm de ser sempre influenciadas e compelidas pelo externo, e, portanto pelo falso, ou pelo interno, que é igualmente falso, porque também no interno vocês estão procurando apenas se ajustarem a determinados outros padrões.

O medo é criado, quando o falso busca a perpetuação de si próprio no falso ambiente. E, assim, o que acontece à nossa ação, que é a nossa conduta diária, ao nosso pensamento e emoção, o que acontece a tudo isto?

A mente e o coração amoldam-se ao ambiente, ao ambiente externo, porém, quando verificam que não podem, por tornar-se a compulsão demasiadamente forte, então voltam-se para um estado interno, em que a mente e o coração buscam perfeita tranquilidade e satisfação. Ou, então, saciaram-se completamente pelas conquistas sociais, econômicas, políticas e religiosas e depois voltam-se para o interno e ali também desejam ter sucesso, bom êxito, triunfo, e, para o atingir, devem sempre ter em vista uma culminância, um objetivo que se torna apenas um estado, ao qual a mente e o coração estão continuamente se ajustando.

Assim, neste ínterim, o que é que acontece aos nossos sentimentos, às nossas emoções, aos nossos pensamentos, ao nosso amor, à nossa razão? O que acontece, quando vocês estão meramente se ajustando, quando simplesmente estão se modificando, alterando? O que acontece a qualquer coisa, por exemplo a uma casa cujas paredes vocês decoram, embora seus alicerces estejam deteriorados? De modo idêntico, nossos pensamentos e emoções estão meramente tomando forma, alterando-se, modificando-se segundo um padrão, seja ele externo ou interno; ou de acordo com uma compulsão externa ou de uma direção interna. Assim, pois, as nossas ações estão sendo grandemente limitadas pela influência, em que todo o raciocínio se torna apenas a imitação de um modelo, um ajustamento a certa condição, e o amor torna-se apenas outra forma de medo. Toda a nossa vida — afinal a nossa vida são os nossos pensamentos, as nossas emoções, as nossas alegrias e dores — toda a nossa vida permanece incompleta, todo nosso processo de pensar ou de expressão dessa vida, é meramente ajustamento, uma modificação, jamais um preenchimento, uma plenitude. E daí surge problema após problema, o ajuste ao ambiente que deve estar, constantemente, mudando, e a conformidade com padrões, que também devem variar. Assim, vocês prosseguem nesta batalha a que chamam evolução, no crescimento do eu, na expansão dessa consciência que é apenas memória. Vocês inventaram palavras para apaziguar suas mentes, porém, continuam nessa luta.

Ora, se ponderarem, realmente, sobre isto, se reconhecerem tudo isto, e sem o desejo de alterar, sem o desejo de modificar, se tornarem apercebidos desse ambiente exterior, destas circunstâncias, destas condições, e também do mundo interno em que existem as mesmas condições, os mesmos ambientes que apenas denominaram por nomes mais sutis e mais bonitos; se realmente se aperceberem de tudo isto, então começarão a compreender o verdadeiro significado do externo e do interno; então surgirá uma percepção imediata, a libertação da vida, a mente torna-se, depois, inteligência e pode funcionar com naturalidade e de modo criador, sem esta constante luta. Então, a mente — a inteligência — reconhece os obstáculos, e porque os compreende, ela penetra-os; não há mais ajustamento, não há modificação, há somente entendimento. Por esta razão, a inteligência não depende do externo ou do interno, e nesse percebimento não há desejo, não há ansiedade, mas apenas a percepção do que é verdadeiro. Para perceber o que é verdadeiro não pode haver desejo.

Vocês sabem que, quando há um desejo ardente, a mente de vocês já está nublada, pervertida, porque a mente identifica-se com uma coisa e rejeita outra — onde há desejo ardente, não há entendimento; porém, quando a mente não se identifica com o "eu", mas se torna percebida tanto do externo como do interno, das sutis divisões, das várias emoções, das delicadas matizes da mente, que se divide em memória e inteligência — então, nesse percebimento, verificarão o pleno significado do ambiente que criamos através dos séculos, desse ambiente que denominamos externo e também interno, ambos os quais estão continuamente mudando, ajustando-se um ao outro.

Tudo o que lhes preocupa agora é a modificação, a alteração, o ajustamento, e, portanto, deve haver medo. O medo tem seu instrumento na compulsão, e esta só existe, quando não há entendimento, quando a inteligência não está funcionando normalmente.

Krishnamurti — O medo – 1946 — Coletânea ICK

quarta-feira, 27 de março de 2013

Penetrando o real sentido de viver


Antes de mais nada, desejo declarar que não pertenço a sociedade alguma. Não sou teosofista nem missionário teosófico e nem tampouco tenho o propósito de lhes converter a qualquer forma específica de crença. Acredito não ser possível seguir a alguém ou aderir a determinada crença e, ao mesmo tempo, possuir capacidade de pensar com clareza.

Eis porque a maioria dos partidos, das sociedades, das seitas e das corporações religiosas se tornam meios de exploração.

Tampouco sou portador de uma filosofia oriental, concitando-lhes para que a aceitem. Quando falo na Índia, dizem-me ali que anuncio uma filosofia do ocidente; e quando venho para países ocidentais, dizem que trago um misticismo oriental que não é prático e que, portanto, é inútil para o mundo das ações. Se, porém, realmente refletirem, verão que para o pensamento não há nacionalidades, nem tão pouco se acha ele restrito a qualquer país, clima ou povo. Portanto, peço-lhes que não considerem o que vou dizer-lhes como o resultado de um determinado preconceito racial, de uma especificada idiossincrasia ou peculiaridade. O que tenho a lhes dizer é atual, efetivo no sentido de poder ser aplicado à vida atual do homem, e não, absolutamente, coisa teórica, baseada em certas teorias ou crenças, porém sim baseado, se me é permitido personalizar, em minha própria experiênciaÉ praticável e aplicável ao homem.

Agora, o pleno significado do que vou lhes dizer, somente pode ser compreendido por meio da experiência e, portanto, da ação. Para a maioria de nós é agradável a discussão sobre questões filosóficas que não se relacionam com as nossas ações diárias; ao passo que aquilo de que lhes falo não é uma filosofia nem um sistema de pensamento, e seu profundo significado somente pode ser compreendido por meio da experiência e, consequentemente, da ação.

O que lhes digo não é uma teoria ou crença intelectual para ser meramente discutida, para servir de motivo para controvérsias; é coisa que exige reflexão demorada; e, para descobrir a sua utilidade prática, a verdade que contém, o que é necessário é de ação e não de debate intelectual. Não é um sistema para ser memorizado nem um conjunto de conclusões a ser aprendido e automaticamente executado. Deve ser criticamente compreendido.  Crítica, porém, é coisa diferente de oposição. Se realmente forem críticos, não se oporão pura e simplesmente, mas irão se esforçar para averiguar se o que eu digo tem mérito intrínseco em si mesmo. Isso exige da parte de vocês clareza de pensar, de modo que lhes seja possível passar além da ilusão das palavras, não permitindo que os seus preconceitos, sejam eles econômicos ou religiosos, lhes impeçam de pensar fundamentalmente. Isto é, vocês têm de pensar, a partir do começo, pensar simples e diretamente. Todos nós temos sido educados com muitos preconceitos, muitas ideias preconcebidas; fomos criados em meio de tradições que corrompem, limitados pelo ambiente, e, por isso, o nosso pensamento está, continuamente, sendo torcido e pervertido, impedindo, desta forma, a simplicidade da ação.

Tomem, por exemplo, a questão da guerra. Sabem que muita gente discute sobre se a guerra é um bem ou um mal. Certamente, não pode haver duas maneiras de encarar o assunto: a guerra é, fundamentalmente, um mal, seja defensiva ou ofensiva. Ora, para pensarmos, desde o princípio, a respeito desse assunto, a mente tem de estar inteiramente liberta da doença do nacionalismo. Somos impedidos de pensar fundamentalmente, direta e simplesmente, em virtude dos preconceitos que tem sido explorados, durante as idades, sob a forma de patriotismo, com todo o seu cortejo de coisas absurdas.

Por muitos séculos, pois, temos criado hábitos, tradições, preconceitos, que impedem o indivíduo de pensar de maneira integral, fundamental, acerca dos vitais assuntos humanos.

Ora, para compreender os múltiplos problemas da vida, com todas as suas variedades de sofrimento, temos de, por nós próprios, descobrir seus motivos e causas fundamentais, com seus implícitos resultados e efeitos. Porque, se não estivermos plenamente conscientes das nossas ações e das suas causas e respectivos efeitos, exploraremos e seremos explorados, nos tornaremos escravos de sistemas, vindo as nossas ações a se tornarem apenas mecânicas e automáticas. Enquanto não pudermos, conscientemente, libertar as nossas ações de seu efeito limitador, por meio da compreensão do significado de suas causas, a não ser que, conscientemente, rompamos com as velhas formas de pensamento que ao nosso redor temos construído, não nos será possível ultrapassar as inúmeras ilusões que nos rodeiam e que temos criado, nas quais estamos embaraçados.

Cada qual tem de perguntar, a si próprio, o que está buscando, a fim de averiguar se está meramente deixando-se arrastar pelas circunstâncias e condições ambientes, sendo, portanto, irresponsável e irrefletido. Aqueles entre vocês, que realmente se acharem descontentes, aqueles que forem críticos, devem já ter perguntado a si próprios o que é que cada indivíduo anda procurando.

Vocês procuram conforto, segurança, ou procuram a compreensão da vida?

Muitas pessoas dirão que estão buscando a verdade. Se, porém, analisarem a natureza de suas aspirações, de sua busca, verificarão que, realmente, estão em busca de conforto, de segurança, de uma fuga do conflito, do sofrimento.

Ora, se vocês andam em busca de conforto, de segurança, essas coisas terão de se basear na aquisição, portanto, na exploração e na crueldade. E, de disserem que estão buscando a verdade, se tornarão prisioneiros da ilusão; pois que a verdade não é coisa em cujo encalço se corra, não pode ser buscada, tem de ser um acontecimento. Isto é, seu êxtase é somente perceptível, quando a mente está, completamente, despojada de todas as ilusões que tenha criado em virtude da busca de sua própria segurança e conforto. Só então terá lugar o alvorecer daquilo que é a verdade. Expressando isto de outra maneira: temos de interrogar, a nós próprios, no sentido de saber em que é que toda a nossa vida, todo o nosso pensamento e toda a nossa ação se baseiam. Se pudermos responder a esta pergunta, de modo completo e verdadeiro, então, por nós mesmos, averiguaremos quem é o criador das ilusões, o criador dessas supostas realidades, das quais temos nos tornados prisioneiros.

Se, realmente, refletirem sobre isto, verificarão que toda a vida de vocês está baseada no conseguir segurança, salvação e conforto individual. Desta busca de segurança, naturalmente, nasce o medo. Ao buscar conforto, ao tentar fugir da luta, do conflito e da tristeza, a mente tem de criar várias vias de fuga, e essas vias tornam-se as nossas ilusões. Portanto, o medo, que é a resultante da busca individual da segurança, é também o criador das ilusões. Este medo arrasta-lhes de uma para outra seita religiosa, de uma filosofia para outra, de um instrutor para outro, até encontrarem a segurança e o conforto que desejam.  A isto chamam busca da verdade e da felicidade.

Conforto e segurança são coisas que não existem; existe somente a clareza de pensar, que produz a compreensão da causa fundamental do sofrimento, a qual, unicamente, pode libertar o homem. Nessa libertação reside a beatitude do presente. E digo-lhes que existe uma eterna realidadea qual só pode ser descoberta, quando a mente esta liberta de todas as ilusões. Portanto, tenham cautela contra a pessoa que lhes dá conforto, pois nela tem de haver exploração; essa pessoa cria uma armadilha, na qual ficam presos como o peixe na rede.

Na busca do conforto e da segurança, a vida chegou a ser dividida em vida religiosa ou espiritual e vida econômica ou material. A segurança material encontra-se por meio da posse de bens que proporcionam o poder; e é em virtude desse poder que vocês esperam alcançar a felicidade. Para atingir esta segurança material, este poder, tem de haver exploração, a exploração do próximo, mediante um sistema deliberadamente estabelecido, que tem se tornado hediondo, pelas suas múltiplas crueldades. Esta busca de segurança individual em que se acha incluída também a nossa família, criou as distinções de classe, os ódios de raça, o nacionalismo; coisas essas que, eventualmente, terminam em guerras.

E há um fato curioso que vocês podem cerificar, se sobre ele refletirem: a religião, a quem competia a condenação da guerra, ajuda a promovê-la. Os sacerdotes, que se teriam como sendo os educadores do povo, animam toda as espécies de abusos criados pelo nacionalismo, e que cegam o povo, em momentos de ódio nacional. Naturalmente, pois, vocês criam um sistema baseado no conforto e na segurança individual, a que chamam religião. Vocês é que têm criado as religiões, que são formas cristalizadas do pensamento e que têm por fim assegurar a imortalidade pessoal.

Assim, pois, em virtude da busca de segurança individual, movidos pelo desejo de continuidade do ser individual, vocês têm criado uma religião que lhes explora, por meio das cerimônias, por meio dos pretensos ideais. O sistema que vocês chama de religião, e que foi originariamente criado em virtude dos seus anseios de segurança, tornou-se tão poderoso, tão realista, que muito poucos são os que se libertam do seu peso, do fardo esmagador da tradição e da autoridade. O ponto inicial de partida para uma verdadeira critica reside na investigação dos valores que a religião, ao nosso redor, estabeleceu.

Ora, todos nós estamos encerrados neste campo; e enquanto estivermos escravos de um ambiente e de valores não pesquisados, não colocados em dúvida, sejam passados ou presentes, eles têm de perverter a integridade das ações. Esta perversão é a causa do conflito entre o indivíduo que busca a segurança, e a coletividade; entre o indivíduo e o contínuo movimento da experiência. E do mesmo modo por que, individualmente, temos criado este sistema de exploração e de esmagadora limitação, temos também de, individual e conscientemente, derrubá-lo, por meio da compreensão relativa ao alicerce dessa construção, e não pelo mero criar de novos conjuntos de valores, que nada mais serão que novas linhas de fuga. E assim, verdadeiramente, começaremos a penetrar o significado real do viver.

Sustento que existe uma realidade, embora deem-lhe o nome que quiserem, a qual somente poderá ser compreendida e vivida, quando a mente e o coração tiverem penetrado a ilusão dos falsos valores e deles tiverem se libertado. Somente então existirá o eterno.

Krishnamurti — O medo – 1946 — Coletânea ICK

terça-feira, 26 de março de 2013

Não há realidade no pensamento psicológico

Pergunta: Como podem unir-se o pensador e o pensamento?

Krishnamurti: "Como"? é uma pergunta de colegial. Mas vamos averiguar se é possível unir os dois processos que separam as coisas, quando em curso. Em primeiro lugar, sabemos que o pensador e o pensamento são separados. Estamos conscientes disso? Para você o pensador e o pensamento são duas entidades separadas e você deseja saber se é possível uni-las. Se o pensante está separado e está sempre dominando o pensamento, o pensamento está sempre tolhido e o pensante sempre a subjugá-lo. Não haverá trégua, haverá uma batalha constante entre o pensador e o pensamento. Preciso averiguar se é possível os dois existirem juntos, de modo que não haja divisão, nem batalha; porque reconheço que só quando não há luta existe algo novo.

A violência não produz a paz; só quando não há violência, há paz. Identicamente, preciso verificar se o pensador e o pensamento são duas entidades separadas, eternamente divididas, nunca unidas.

Você e eu vamos empreender juntos a viagem para descobrir e "experimentar" verdadeiramente o fato. Sabemos que o pensante e o pensamento estão separados. A maioria de nós nunca sequer refletiu a respeito, — o temos como um fato verdadeiro. Só quando alguém lhe faz essa pergunta, você começa a indagar; eu o interpelo, agora, e portanto você está indagando, está fazendo a viagem de investigação. Essa viagem é a compreensão do que é, do que está realmente acontecendo, e não do que você desejaria que acontecesse.

Porque estão separados o pensante e o pensamento? Não pergunto se deviam ou não estar separados, e, sim, porque estão separados. Estão separados por força do hábito. Nunca duvidamos disso; nós o aceitamos e o reconhecemos como coisa certa e verdadeira; por conseguinte, transformou-se em hábito. O pensante está separado do seu pensamento e a luta entre os dois, a dominação do pensamento pelo pensante, é um hábito diário, nosso — sendo o hábito, rotina, repetição. Isso é um fato, você não acha?

O que aconteceria se o pensante e o pensamento não estivessem separados? Minha mente se acostumou com esse hábito. O que lhe aconteceria se esse hábito cessasse? Sentir-se-ia perdida, não é assim? Ver-se-ia desnorteada, perplexa, diante de uma coisa inesperada, nova; por isso, a mente prefere viver de hábitos; e, assim, diz ela: "conservarei o meu hábito. Já que não sei o que acontecerá se aquelas duas entidades se juntarem, é melhor deixar as cosias como estão". Você está, pois, mais interessado na continuação do hábito do que em procurar saber o que aconteceria se o pensante e o pensamento se juntassem.

Por que desejamos que continue o velho hábito? Pela razão muito clara de que desejamos segurança, certeza, alguma coisa em que nos apoiarmos; porque é a única que conhecemos. Estamos bem seguros com relação ao pensador e o pensamento. Nunca pensamos no que aconteceria se eles se juntassem. A certeza faz com que nos apeguemos ao que é velho. Isso é um fato psicológico, um fato observável. Nosso problema, pois, não é de como unir o pensante e o pensamento, mas sim, de por que a mente busca segurança, certeza. Pode a mente existir sem certeza, sem estar procurando alguma coisa em que se apoiar — saber, crença, ou o que quer que seja? A mente não pode se abstrair do processo de segurança. A mente que conhecemos está segura; não lhe interessa indagar; só lhe interessa estar bem abrigadaem perfeita segurança.

Por que a mente procura por segurança? Porque você percebe que o pensamento se modifica subitamente, a qualquer instantenão há realidade no pensamento; por isso, o pensamento cria o pensante, como entidade permanente que subsistirá indefinidamente; tem, pois, no pensante interesses adquiridos. A mente, assim,  encontra a sua segurança no pensantea certeza, que é o velho hábito.

Temos, pois, de verificar se a mente pode em algum tempo ter segurança, ou se está apegada à mera ilusão de segurança. A mente tem o poder de criar a ilusão de segurança, e, de a ela se apegar; consequentemente, enquanto estiver em busca de segurançanão será capaz de compreender o outro estado. Enquanto a mente não estiver interessada em descobrir o que acontecerá se se ajuntarem o pensante e o pensamento, continuará apegada àquilo a respeito de que está bem segura.

Nosso problema, por conseguinte, consiste em saber se há segurança, certeza. Existe tal coisa? Evidentemente não existe. Você não achará segurança, nem em Deus, nem em sua esposa, nem nos bens materiais que deseja. Não existe segurança. Disso você não está convencido; disso você ainda não teve experiência alguma. Sem segurança, sem coisa alguma em que a mente possa apoiar-se, a que possa segurar-se, apegar-se, reina uma solidão absoluta. Porque a mente teme estar só, a mente inventa o pensante, como entidade permanente, de existência contínua. Ou, se não inventa o pensante, inventa Deus, a propriedade, a esposa... qualquer coisa serve: uma árvore, uma pedra, uma imagem esculpida.

A mente, em seu desejo de segurança, criou o pensante como entidade separada do pensamento e se acostumou a esta divisão pelo hábito; onde existe hábito, existe permanência, e a mente se torna mecânica. Ao perceber realmente — não apenas verbalmente, mas como uma experiência real — que o pensante é o resultado do pensamento, que ele busca permanência na continuidade, você verá então que não há esforço por parte da mente para efetuar a união dos dois. Só existe, então, um estado de compreensão, sem palavras, sem o processo de pensamento constituído de pensante e pensamento. Para tal necessita-se uma extraordinária intuição de todo o processo da consciência, que estivemos considerando nesta tarde, sendo essa intuição o processo da meditação. Essa meditação só é possível quando a mente compreende todo o conteúdo da consciência, isto é, você mesmo.

domingo, 24 de março de 2013

Descobrindo a verdadeira natureza do amor, da beleza e da morte


Passemos a aprender o que é o Amor. Eis uma palavra muito usada e repetida, que você tem rodeado de fórmulas de toda espécie: o amor é divino, o amor é sagrado, o amor não é profano... Com isso você pensa tê-lo compreendido.  Você sabem o que é o amor? Se você é realmente sincero, não hipócrita, dirá: “Não sei; só sei o que é o ciúme, o que é o prazer sexual — a que chamamos amor; só sei das agonias por que passamos por causa dessa coisa que chamamos amor”. Mas a natureza do amor, a sua beleza, essa, em verdade, você desconhece.

O que é, pois, o amor? Não tenha nenhuma opinião, nenhuma fórmula a seu respeito. Se você as tem, cessou de aprender. Você compreende o que é amor? Investiguemos isso juntos. Se compreendo verbalmente o seu significado, o que compreendo não é, de modo nenhum, amor. O que é amor? É prazer? É desejo? É um produto do pensamento? É amar a Deus e odiar o homem? É isso o que você faz — ama a Deus e oprime o seu semelhante. Você ama o líder político, ou talvez não o ama, mas ama o seu patrão, sua esposa. Você realmente ama a sua esposa? Sim?(*) O que significa isso? Quando você ama uma coisa, você vela por ela. Senhor, você ama os seus filhos, isto é, vela por eles não só quando são pequeninos, mas também ao se tornarem maiores, cuidando de que recebam correta educação? Se você os ama, terá cuidado em não lhes ensinar apenas em que eles obtenham empregos seguros, casem-se e se estabilizem, seguindo o padrão de sua própria geração.

E o amor é ciúme, é? Um homem ambicioso e decidido a alcançar a qualquer preço os seus alvos jamais compreenderá o que é o amor, não acha? Pode um homem violento compreender o que é o amor? E o homem, com efeito, é violento, agressivo, ambicioso, competidor. O que você chama de amor é apenas prazer. Você diz que ama sua família. Você sabe o que significa amar alguém? Pode um homem amar sua esposa e filhos se é ambicioso, se, nos negócios, quer prosperar enganando seus semelhantes?
Por conseguinte, para você descobrir o que é o amor, a ele deve chegar negativamente: não ser ambicioso. Se você diz: “Se eu não for ambicioso, serei destruído por este mundo” — deixe que o destrua; porque, afinal de contas, este é um mundo estúpido, monstruoso, imoral. Se você realmente deseja descobrir a beleza, a verdadeira natureza do amor, deve renegar toda a moral cultivada pelo homem. O que você tem cultivado é a ambição, a avidez, a inveja, a competição, o apego ao seu desprezível “eu”, a sua insignificante família. Sua família é você mesmo. Você está identificado com ela e, por conseguinte, ama a si mesmo, não a sua família, a seus filhos. Se de fato você amasse seus filhos, o mundo seria diferente, não haveria guerras. Assim, para você descobrir o que é o amor, deve afastar o que ele não é. Você está disposto a isso? Ora, você está disposto a tudo, menos isso; quer frequentar seus templos, seus gurus, ler incessantemente seus livros sagrados, recitar mantras, iludir a si mesmo, e falar sobre o amor de Deus e sua devoção a seu guru. Não quer fazer a única coisa certa, que é: descobrir o que significa amar, descobrir, por si mesmo, o que significa não ser agressivo.

Assim, o homem que no coração não tem amor, mas só coisas feitas pelo pensamento, esse homem fará um mundo monstruoso, edificará uma sociedade totalmente imoral. E foi isso que você fez. Dessa forma, para você descobrir o amor deve desmanchar tudo o que fez, não por meio do tempo, dizendo: “Eu o desmancharei gradativamente”. Esse é outro artifício da mente. Você diz: “Isto é meu Karma”. Se você compreender realmente a agressividade, compreender quanto ela é terrível, quer em pequena, quer em grande escala, você a abandonará instantaneamente. Nesse abandono, há grande beleza.

E cumpre-nos também descobrir o que significa morrer. Você já viu a morte. Já viu pessoas morrerem e serem transportadas para o túmulo, mas não sabe o que significa morrer, sabe? Você tem teorias e crenças sobre a morte, sobre o que acontecerá após a morte ou diz “Creio na encarnação”. Todos vocês creem na encarnação, não?

(Vozes: Nós cremos)

Você sabe o que isto significa — reencarnação? Escutem bem quietos. Você adotou a suposição de que, após a morte, você renascerá; você acredita nisso. O que é “você”? — O dinheiro depositado no banco, a casa, o emprego, lembranças, disputas, ansiedades, dores, medo — tudo isso não é “você”? Você nega que isso seja “você”, dizendo que o “eu” é muito superior a essas coisas? Se você diz que o “eu” não é seus móveis, sua família, seu emprego, mas uma coisa infinitamente superior, quem é que o diz, e como você sabe que existe “uma coisa infinitamente superior”? Quem o diz é o pensamento e, portanto, essa coisa “infinitamente superior”, esse “superego”, esse Atman, está ainda no campo do tempo, no campo do pensamento, e o pensamento é “você” — seus móveis, sua conta no banco, seu apego à família, à nação, a seus livros, a seus desejos não preenchidos. Se você realmente acreditasse — com o coração e não com sua mente desprezível — que na vida futura reencarnaria, você estaria vivendo hoje de maneira totalmente diferente, porque, pelo que hoje você faz, terá de pagar amanhã, na “vida futura”.

Ao morrer, você perderá seu depósito bancário, pois você não pode leva-lo consigo; poderá retê-lo até o último minuto, e a maioria das pessoas quer retê-lo até o último instante — muito cômico, não é? Assim, como realmente você sabe nada sobre a morte, vamos aprender o que ela é — aprender, e não apenas repetir o que o orador diz, porque, se o repetir, verá que são meras palavras — nada.

O organismo físico, decerto, perecerá. O cientista poderá dar-lhe mais uns cinquenta anos, mas, ao cabo deles, o organismo morrerá, porque está sendo submetido a constante uso e abuso. O organismo vive sujeito a tensões e pressões de toda espécie; dele se abusa com bebidas, drogas, comidas impróprias, incessante luta. Tais excessos cansam o organismo, de onde surgem os colapsos cardíacos, as doenças, etc.

O corpo perecerá, e que mais morrerá com ele? Sua mobília, seu saber, suas esperanças, desesperos e preenchimentos. O que é, pois, morrer? Aprenda isso, por favor. Nós estamos aprendendo juntos. Para você descobrir o que é a morte, deve morrer, não? Se você é ambicioso, deve morrer para a sua ambição, seu desejo de poder, posição, prestígio; morrer para os seus hábitos, suas tradições. Compreende? Não se pode discutir com a morte, lhe dizer: “Preciso de mais uns dias, não acabei de escrever o meu livro; quero mais um filho, etc.” nada se pode alegar; portanto, se abstenha de argumentar, de justificar.

Morra para toda e qualquer coisa: sua vaidade, suas aspirações, as imagens que tem de si mesmo, de seu guru, de sua esposa. Se você o fizer, compreenderá o significado da morte, saberá o que é uma mente morta para o passado. Só a mente que morre todos os dias tem a possibilidade de transcender o tempo.

Bem, senhores, estiveram ouvindo esta palestra; por conseguinte, aprenderam o que é o medo, o que é o prazer. E, se o aprenderam, já sabem o que é o amor — aquele estado da mente — e por “mente” entendo o cérebro, o coração, a totalidade — em que não existe divisão, fragmentação de espécie alguma. E, agora, se alcançaram esse estado, se têm essa mente excelente, esse coração puro, depois de saírem daqui, nesta tarde, morram para tudo o que aprenderam hoje, a fim de despertarem, amanhã, mais uma vez completamente novo.  Do contrário, se, transportarem para amanhã a carga de hoje, darão continuidade ao medo. Morram, pois, a cada dia, para conhecerem a beleza da vida, a beleza da Verdade, e não precisaram aprender nada de ninguém, porque você estará aprendendo.

Krishnamurti – Bombaim, 14 de fevereiro d 1971
(*) palavra dirigida a um ouvinte que respondeu afirmativamente.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Tédio


Como é necessário para a mente expurgar-se de todo pensamento, estar constantemente vazia. Não ser esvaziada, mas estar simplesmente vazia; morrer para todo pensamento, para todas as lembranças de ontem e da hora vindoura! É simples morrer e é difícil continuar; pois continuidade é o esforço de ser ou não ser. Esforço é o desejo, e  desejo só pode morrer quando a mente deixa de adquirir. Como é simples apenas viver! Mas isso não é estagnação. Há grande felicidade em não querer algo, em não ser algo, em não ir a  algum lugar. Só quando a mente se expurga de todo pensamento existe o silêncio da criação. A mente não estará tranquila enquanto estiver viajando a fim de chegar. Para a mente, chegar é ter sucesso, e o sucesso é sempre igual, quer no inicio ou no fim. Não haverá expurgo da mente se ela estiver tecendo o padrão de seu próprio vir a ser.

Ela disse que sempre fora ativa, de um modo ou de outro, com seus filhos, nas questões sociais ou nos esportes; mas por trás dessa atividade sempre existiu o tédio, opressor e constante. Ela estava entediada com a rotina da vida, com o prazer, a dor, a bajulação e tudo mais. O tédio era como uma  nuvem que estava suspensa sobre sua vida desde que conseguia se lembrar. Ela tentara fugir dele, mas cada novo interesse logo se tornava um tédio a mais, um enfado mortal. Ela lera bastante e tivera as perturbações habituais da vida em família, mas, durante isso tudo, houve esse tédio exaustivo. Não tinha nada a ver com sua saúde, pois ela estava muito bem.

Por que você acha que fica entediada? Isso resulta de alguma frustração, de algum desejo fundamental que foi frustrado?

“Não em particular. Houve algumas obstruções superficiais, mas nunca me incomodaram; ou, quando o fizeram, tratei delas de forma bem inteligente e jamais me senti desconcertada. Não acho que meu problema seja frustração, pois sempre fui capaz de conseguir o que queria. Não quis coisas inacessíveis, e sempre fui sensata em minhas necessidades; mas, apesar disso, havia essa sensação de tédio com tudo, com minha família e com meu trabalho.”

O que você quer dizer com tédio? Você quer dizer insatisfação? É porque nada lhe deu total satisfação?

“Não exatamente isso. Eu sou tão insatisfeita quanto qualquer pessoa normal, mas tenho conseguido resignar-me com as insatisfações inevitáveis.”

No que você está interessada? Há algum interesse profundo em sua vida?

“Não especialmente. Se eu tivesse um interesse profundo, jamais ficaria entediada. Sou naturalmente uma pessoa animada, eu lhe asseguro, e se eu tivesse um interesse, não o abandonaria com facilidade. Tive muitos interesses intermitentes, mas todos levaram no final a essa nuvem de tédio.

O que você quer dizer com interesse? Por que há essa mudança de interesse para tédio? O que significa interesse? Você está interessada naquilo que lhe agrada, que lhe traz satisfação, não é? O interesse não é um processo de aquisição? Você não teria interesse em coisa alguma se não obtivesse algo disso, não é? Há interesse sustentado enquanto você está adquirindo; aquisição é interesse, não é? Você tentou obter satisfação em tudo com que entrou em contato; e, depois de usá-lo por completo, naturalmente sentiu-se entediada daquilo. Cada aquisição é uma forma de tédio, de cansaço. Nós queremos mudar de brinquedos; assim que perdemos interesse em um, recorremos a outro, e há sempre um novo brinquedo a qual recorrer. Nós recorremos a algo a fim de adquirir; há aquisição no prazer, no conhecimento, na fama, no poder, na eficiência, em ter uma família e assim por diante. Quando não há nada mais para adquirir em uma religião, em um salvador, perdemos o interesse e recorremos a outra coisa. Alguns adormecem em uma organização e jamais acordam, e aqueles que realmente acordam acabam adormecendo novamente ao ingressar em outra. Esse movimento de aquisição é chamada de expansão do pensamento, de progresso.

“O interesse é sempre aquisição?”

De fato, você tem interesse em alguma coisa que não lhe dê algo em troca, quer seja uma brincadeira, um jogo, uma conversa, um livro ou uma pessoa? Se uma pintura não lhe proporciona algo, você a ignora; se a pessoa não o estimula ou perturba de algum modo, se não há prazer ou dor em um relacionamento particular, você perde o interesse, você fica entediada. Você não percebeu isso?”

“Sim, mas nunca olhei para isso desse modo antes.”

Você não teria vindo até aqui se não quisesse algo. Você quer livrar-se do tédio. Como não posso lhe oferecer essa libertação, você se sentirá entediada novamente; mas, se pudermos entender juntos o processo da aquisição, do interesse, do tédio, talvez então haja libertação. A libertação não pode ser adquirida. Se você adquiri-la, logo ficará entediada com ela. A aquisição não torna a mente insensível? A aquisição, positiva ou negativa, é um fardo. Assim que você adquire, perde o interesse. Ao tentar possuir, você está alerta, interessada; mas a posse é um tédio. Você pode querer possuir, mas a busca por mais é só um movimento em direção ao tédio. Você tentará várias formas de aquisição e, enquanto houver o esforço de adquirir, haverá interesse; mas sempre existe um fim à aquisição e assim sempre existe tédio. Não é isso que tem acontecido?

“Suponho que sim, mas não compreendi o total significado disso.”

Isso virá logo. As posses tornam a mente enfadada. A aquisição, quer de conhecimento, de propriedade, de virtude, cria insensibilidade. A natureza da mente é adquirir, absorver, não é? Ou melhor, o padrão que ela criou para si mesma é o de reunir; e nessa mesma atividade a mente está preparando o próprio enfado, o próprio tédio. Interesse, curiosidade é o inicio da aquisição, que logo se torna tédio; e a ânsia de livrar-se do tédio é outra forma de posse. Assim, a mente vai de tédio a interesse, e a tédio de novo, até que ela esteja inteiramente cansada; e essas sucessivas ondas de interesse e cansaço são consideradas existência.

“Mas como alguém se liberta de adquirir sem mais aquisição?”

Somente permitindo que a verdade do processo total de aquisição seja experienciado e não tentando ser não aquisitivo, desapegado. Ser não aquisitivo é outra forma de aquisição que logo se torna exaustiva. A dificuldade, se podemos usar essa palavra, não está no entendimento verbal do que foi dito, mas em experienciar o falso como falso. Ver a verdade no falso é o inicio da sabedoria. A dificuldade é a mente ficar quieta; pois a mente está sempre preocupada, está sempre atrás de algo, adquirindo ou negando, buscando e encontrando. A mente nunca está quieta; ela está em constante movimento. O passado, ao fazer sombra ao presente, cria o próprio futuro. É um movimento no tempo, e quase nunca há um intervalo entre os pensamentos. Um pensamento segue o outro sem uma pausa; a mente está sempre se aguçando e, portanto, desgastando-se. Se um lápis for apontado o tempo todo, logo não sobrará nada dele; de modo semelhante, a mente utiliza-se constantemente e fica esgotada. A mente está sempre temendo chegar ao fim. Mas viver é um fim a cada dia; é morrer para todas as aquisições, lembranças, experiências, para o passado. Como pode existir vida se existir experiência? A experiência é conhecimento, lembrança; e a lembrança é um estado de experienciação? No estado de experienciaçao, há lembrança do experienciador? A expurgação da mente é viva, é criação. A beleza está na experienciaçao, não na experiencia infeliz; pois experiencia é sempre passado e o passado não é experienciaçao, não é o vivo. A expurgação da mente é a tranqüilidade do coração.


Krishnamurti – Comentários sobre o viver



quinta-feira, 21 de março de 2013

terça-feira, 19 de março de 2013

Revolução Psicológica


Vida e ação integradas são educação. A integração não ocorre por meio da conformidade a um padrão, seja ele próprio ou de outra pessoa. Ela surge da compreensão das muitas influências que se chocam na mente; surge de estar ciente delas sem ser sua prisioneira. Os pais e a sociedade condicionam a criança por sugestão, por desejos e coerção sutis e velados, e pela constante reiteração de certos dogmas e crenças. Ajudar a criança a estar consciente de todas essas influências, com sua significância interna, psicológica, ajudá-la a compreender os mecanismos da autoridade e não ser prisioneira da teia da sociedade, isso é educação.

Educação não é apenas uma questão de transmitir uma técnica que equipará o menino para conseguir um emprego, mas ajudá-lo a descobrir o que ele ama fazer. Esse amor não pode existir se ele estiver buscando sucesso, fama ou poder; e ajudar a criança a compreender isso é educação.

O autoconhecimento é educação. Em educação, não há aquele que ensina nem o que é ensinado, só o aprender; o educador está aprendendo, assim como o aluno. A liberdade não tem começo nem fim; compreender isso é educação.

Certamente, para educar o educador é preciso trabalhar por isso tão arduamente quanto você trabalhou em política — com a diferença de que é uma tarefa muito mais extenuante, que exige profunda percepção psicológica. Infelizmente, ninguém parece se importar com a educação correta, ainda que ela seja muito mais importante que qualquer outro fator na geração de uma transformação social fundamental.

A herança psicológica é tão condicionante quanto a herança da propriedade; ambas limitam e aprisionam a mente em determinado padrão da sociedade, que impede uma transformação social fundamental. Se nossa preocupação é gerar uma cultura completamente diferente, uma cultura que não se baseie em ambição e acumulação, então a herança psicológica se torna um impedimento.

A marca do passado na mente jovem; o condicionamento consciente e inconsciente que leva o aluno a obedecer e se conformar. Os comunistas, agora, estão fazendo isso com muita eficiência, assim como os católicos fizeram por gerações. Outras seitas religiosas também fazem o mesmo, mas não tão resoluta ou efetivamente. Os pais a sociedade modelam a mente das crianças por meio da tradição, crença, dogma, conclusão, opinião, e essa herança psicológica impede o surgimento de uma nova ordem social.

Se você realmente vê a necessidade de colocar um fim a essa forma de herança, então dará imensa atenção a proporcionar o tipo de educação correta a seu filho, não?

Mas, quando você percebe muito profundamente que a herança da propriedade é tão destrutiva quanto a psicológica, você se dedicará a ajudar seus filhos a se libertarem de ambas. Você os educará para que sejam completamente autossuficientes, para que não dependam de seu favor ou do favor de outras pessoas, para que amem seu trabalho, e para que tenham confiança em sua capacidade de trabalhar sem ambição, sem glorificar o sucesso; você os ensinará a ter o sentimento de responsabilidade cooperadora, e, conseqüentemente, a saber quando não cooperar. Desse modo, seus filhos não terão qualquer necessidade de herdar sua propriedade. Eles são seres humanos livres desde o começo, e não escravos, seja da família ou da sociedade.

Não é um ideal, não é algo a ser alcançado na Terra do Nunca de alguma utopia longínqua. A compreensão se dá agora, não no futuro. Compreensão é ação. A compreensão não vem primeiro e a ação depois; ambas são inseparáveis. No momento exato em que se vê uma cobra, há ação. Se a verdade de tudo que estivemos conversando esta manhã for vista, então a ação é inerente a essa percepção. Mas ficamos tão enredados em palavras, nas coisas estimulantes do intelecto, que as palavras e o intelecto se tornam um impedimento à ação. O chamado entendimento intelectual é apenas a escuta de explicações verbais, ou a escuta de idéias, e não tem qualquer valor, assim como a mera descrição da comida não tem valor algum para um homem faminto. Ou você compreende, ou não compreende. A compreensão é um processo total, não é separada da ação nem é resultado do tempo.


Krishinamurti – Comentários sobre o viver

segunda-feira, 18 de março de 2013

Independência para descobrir

Você compreende algo e eu não o consigo. Você está condicionado por, perdão, estamos condicionados pela ideia de que alguém pode nos dar esta compreensão, não é verdade? Porém, isso não é realmente assim. Psicologicamente  internamente, você depende de alguém? Dizem: "Por favor, ajude-me a libertar-me de minha arrogância". Porém, o relacionar ou ver sua arrogância não necessita ajuda? E na relação de uns com os outros, observo-me a mim mesmo e, nessa observação, descubro que sou arrogante nesta relação mútua; portanto, não dependo de você para que me assina-le a minha arrogância: me dou conta dela. Isto é muito importante, senhor, nada pode me dar a intensidade, o sentido de beleza, você o capta? De modo que estou só, entende? Não isolado de tudo isso; tenho que trabalhar para descobrir e, neste mesmo processo, surge a intensidade. Se descarto a tradição na qual fui educado, quer dizer, a dependência de alguém, se o descarto, tenho que investigar, do contrário, seguirei igualmente perdido; mas, se o descarto terei muita energia e intensidade e então, não dependerei de nada.          Fragmento do vídeo: "O desafio da mudança"

Sobre a falta de sentido da vida e a inveja

Pergunta: Afirmam alguns filósofos que a vida tem finalidade e significação; outros, porém, sustentam que a vida é puramente acidental e absurda. Que dizeis vós? Negais o valor dos alvos, dos ideais e intenções; mas, sem isso, tem a vida alguma significação?

Krishnamurti: Devemos atribuir tanta importância ao que dizem os filósofos? Certos intelectuais dizem que a vida tem finalidade, significação, enquanto outros dizem que ela é acidental e absurda. Ora, cada um a seu modo, negativa ou positivamente, tanto uns como outros estão conferindo significação à vida, não achais? Uma firma, outro nega, mas essencialmente os dois são iguais. Isso é perfeitamente claro.

Pois bem. Quando perseguis um ideal, um objetivo, ou indagais qual é a finalidade da vida, tal indagação ou busca está baseada no desejo de dar significação à vida, não está? Não sei se estais seguindo isto.

Minha vida é insignificante — suponhamos — e trato pois de dar-lhe significação, Pergunto: “Qual é a finalidade da vida?” — porque, se a vida tem alguma finalidade, poderei então viver em harmonia com essa finalidade. E, assim, invento ou imagino uma finalidade, ou, pela leitura, pela investigação, pela busca, encontro uma finalidade: estou, por conseguinte, dando significação à vida. Como o intelectual, à sua maneira, dá significação à vida, negando ou afirmando que ela tem finalidade e um significado, nós também atribuímos significação à vida por meio de nossos ideais, da busca de um alvo, de Deus, de Amor, da Verdade. E isso, com efeito, significa que, se não damos significação à vida, nossa existência não terá para nós importância alguma. O viver não nos parece tão bom como desejaríamos que fosse, e por isso desejamos dar significação à vida. Não sei se estais percebendo isto.

Qual é a significação de nossa vida, da vossa e da minha, independente dos filósofos? Ela tem alguma significação, ou lhe estamos dando significação pela crença, tal como faz o intelectual que se torna católico, isto ou aquilo, encontrando assim um abrigo? Como seu intelecto reduziu tudo a cacos, ele se vê agora sozinho, desamparado, etc., e não podendo suportar tal estado, necessita de uma crença, no catolicismo, no comunismo, em qualquer coisa que lhe dê alento e de significação à sua vida.

Agora, pergunto a mim mesmo: Por que razão queremos uma finalidade? E que significa viver sem finalidade alguma? Compreendeis? Sendo a nossa vida vazia, atribulada, triste, precisamos dar-lhe significação. E há possibilidade de ficarmos conscientes de nosso vazio, nossa solidão, nossos sofrimentos, todas as tribulações e conflito de nossa existência, sem darmos, artificialmente, um significado à vida? Podemos estar conscientes dessa coisa extraordinária que chamamos a vida — que significa ganhar o próprio sustento, que significa inveja, ambições e desenganos — estar consciente, simplesmente de tudo isso, sem condenação ou justificação, e passar além? A mim me parece que, enquanto estivermos procurando ou dando uma significação à vida, estaremos perdendo algo de extraordinariamente vital. O mesmo acontece com o home que quer achar a significação da morte e está constantemente empenhado em racionalizá-la, explica-la, e impedindo, assim, de “experimentar” o que é a morte.

(...) Não nos estamos forçando, todos nós, para acharmos uma razão para nossa existência? Quando amamos, temos uma razão para isso? Ou o amor é o único estado em que “não há razão de espécie, nem explicação, nem esforço, nem luta para ser alguma coisa?” Talvez desconheçamos esse estado. E, desconhecendo-o, tentamos imaginá-lo, dar uma significação à vida; mas, como nossa mente está condicionada, e portanto limitada, superficial, a significação que damos à vida, os nossos deuses, os nossos ritos, os nossos esforços, tudo é também medíocre.

Não importa, pois, descubramos por nós mesmos qual a significação que danos à vida, se o fazemos? Não há dúvida de que os intentos, os alvos, os Mestres, os deuses, as crenças, os fins em que buscamos nosso preenchimento, são todos inventados pela mente, todos produtos de nosso próprio condicionamento; e, compreendendo-se isto, não é importante “descondicionar” a mente? Quando a mente não está mais condicionada e, por conseguinte, não está dando significação à vida, a vida se torna então uma coisa extraordinária, uma coisa totalmente diferente da estrutura construída pela mente. Mas, primeiro que tudo, precisamos conhecer o nosso condicionamento, não é verdade? E podemos conhecer nosso condicionamento, nossas limitações, nosso fundo psicológico, sem procurar força-lo ou analisa-lo, sublimá-lo ou reprimi-lo? Pois tal processo implica a entidade que observa e se separa da coisa observada, não é exato? Enquanto houver observador e coisa observada, o condicionamento tem que continuar. Por mais que o observador, o pensador, o censor lute para livrar-se de seu condicionamento, continuará preso nesse condicionamento, uma vez que a divisão entre “pensador” e “pensamento”, “experimentador” e “experiência”, é o próprio fator que perpetua o condicionamento; e é extremamente difícil fazer desaparecer tal divisão, uma vez que aí está presente todo o problema da vontade.  

Nossa civilização se baseia na vontade, a vontade de ser, de “vir a ser”, alcançar, realizar; por esta razão, está sempre presente em nós a entidade que quer modificar, controlar, alterar aquilo que observa. Mas há diferença entre aquilo que essa entidade observa, e ela própria, ou ambos são uma só entidade? Aqui está uma coisa que não é para se aceitar irrefletidamente. Ela tem de ser pensada, examinada com muita paciência, delicadeza, cautela, de maneira que a mente não fique mais separada da coisa em que pensa, e o observador e a coisa observada sejam psicologicamente uma só entidade. Enquanto eu continuar psicologicamente separado daquilo que em mim percebo como a “inveja”, lutarei para dominar a inveja; mas esse “eu”, essa entidade que faz esforço para dominar a inveja, é diferente da inveja? Ou ambos são a mesma coisa, e o “eu” só se separou da inveja para dominá-la, porque a inveja é um sentimento doloroso, e por outras várias razões? Mas, justamente esta separação é a causa da inveja.

Talvez não estejais habituados a esse modo de pensar, e o acheis um pouco abstrato. Mas a mente invejosa nunca pode estar tranquila, porque está sempre comparando, sempre procurando “vir a ser” algo que ela não é; e se nos decidimos a penetrar esse problema da inveja, radicalmente, profundamente, toparemos inevitavelmente com este problema, ou seja se a entidade que deseja libertar-se da inveja não é a própria inveja. Ao perceber-se que é a própria inveja que deseja libertar-se da inveja fica então a mente consciente desse sentimento chamado inveja, sem nenhuma ideia de condená-lo ou libertar-se dele. E, daí, surge outro problema: há sentimento, se não há verbalização? Pois a própria palavra “inveja” é condenatória, não é verdade? Estou dizendo algo demasiado súbito?
Existe sentimento de inveja, se não dou nome a tal sentimento? Pelo próprio fato de lhe dar nome, não estou nutrindo o sentimento? O sentimento e o dar-lhe nome são quase simultâneos, não é verdade? E é possível separá-los de tal maneira, que só se tenha uma sensação de reação, sem nome algum? Se investigardes isso, realmente, vereis que, quando não se dá nome ao sentimento, a inveja acaba — não simplesmente a inveja que uma pessoa sente porque outra pessoa é mais bela ou tem um carro melhor, ou por outra estupidez qualquer, mas a essência profunda da inveja, a raiz da inveja. Todos somos invejosos, de diferentes maneiras, não há um só que não seja invejoso. Mas a inveja não é apenas a manifestação superficial; ela é aquele senso de comparação que penetra tão fundo e ocupa uma tão grande porção da mente. E para ficarmos radicalmente livres da inveja tem de deixar de existir o “observador” da inveja, que quer libertar-se da inveja.

(...) Não estamos conscientes de nós mesmos, em absoluto, não percebemos que estamos condenando, comparando. Se pudermos observar-nos todos os dias, sem condenarmos nem justificarmos coisa alguma, se pudermos estar simplesmente conscientes de que nunca pensamos sem julgar, comparar, avaliar, então, esse próprio percebimento será suficiente. Estamos sempre a dizer: "Este livro não é tão bom como o outro", ou "este homem é melhor do que aquele", etc.; está sempre em vigor este constante processo de comparação, e pensamos que pela comparação compreenderemos alguma coisa. Mas, compreendemos? Ou só vem a compreensão quando não estamos comparando, mas prestando atenção? Há comparação ao observardes uma coisa com toda a atenção? Quando estais totalmente atento, não tendes tempo para comparar, tendes? No momento em que comparais, vossa atenção fugiu para outra coisa.  (...) O problema, pois, não é de como alcançar alguma cosia, mas sim: Por que não estamos atentos? Não somos atentos porque, evidentemente, não temos interesse. Não digais "Mas como posso ter interesse?" Esta pergunta não cabe aqui, pois não estamos tratando disso agora. Porque deveis ter interesse? Se não tendes interesse em escutar o que se está dizendo, porque vos incomodardes? Mas vós estais incomodado, porque vossa vida é cheia de inveja, de sofrimentos e por isso desejais uma resposta, um significado. Se desejais um significado, então prestai toda a atenção. A dificuldade está em que não temos interesse sério em coisa alguma —  "sério", no correto sentido da palavra. Quando dais atenção completa a uma coisa, não estais procurando obter nada dessa coisa, estais? Nesse momento de atenção total, não existe inveja, não existe nenhuma entidade que esteja procurando mudar, modificar-se, tornar-se algo, não existe "eu". No momento da atenção, o "eu" está ausente, e é este momento de atenção que é bom, que é amor.
Krishnamurti — 13 de agosto de 1955  Realização sem esforço

sexta-feira, 15 de março de 2013

O processo do ódio


Ela era uma professora, ou melhor, fora. Ela era carinhosa e bondosa, e isso se tornara quase uma rotina. Ela contou que ensinara por mais de 25 anos e era feliz por isso; embora no final tenha sentido vontade de largar tudo, ficou amarrada à atividade. Recentemente, começou a perceber o que estava profundamente enterrado em sua natureza. De repente, ela descobriu durante uma das discussões e ficou realmente surpresa e chocada. Estava lá e não era uma simples autoacusação; e, ao olhar para os anos anteriores, agora podia ver que isso sempre estivera presente. Ela realmente odiava. Não era um ódio por alguém em especial, mas um sentimento generalizado, um antagonismo reprimido em relação a todos e a tudo. Quando, a principio, descobriu isso, pensou que era algo muito superficial que ela poderia abandonar facilmente; mas, à medida que os dias passavam, descobriu que não era apenas uma questão passageira, mas um ódio profundamente arraigado que estivera presente toda a sua vida. O que a chocava era sempre ter-se considerado carinhosa e boa.

O amor é uma coisa estranha; enquanto o pensamento está entrelaçado com ele, não é amor. Quando você pensa em alguém que ama, essa pessoa torna-se o símbolo de sensações, lembranças, imagens agradáveis; mas isso não é amor. O pensamento é uma sensação, e sensação não é amor. O próprio processo de pensar é a negação do amor. O amor é a chama sem a fumaça do pensamento, do ciúme, do antagonismo, do uso, que são coisas da mente. Enquanto o coração estiver sobrecarregado com as coisas da mente, existirá ódio; pois a mente é o local do ódio, do antagonismo, da oposição, do conflito. O pensamento é reação, e a reação é sempre, de um modo ou de outro, a fonte da animosidade. O pensamento é oposição, ódio; o pensamento está sempre em competição, sempre buscando um resultado, o sucesso; sua satisfação é o prazer e sua frustração é ódio. O conflito é o pensamento preso nos opostos; e a síntese dos opostos ainda é ódio, antagonismo.

“Veja, sempre pensei que amava as crianças, e até depois de crescidas elas costumavam me procurar para ajudá-las quando estavam com problemas. Assumi que as amava, especialmente as que eram minhas prediletas fora da sala de aula; mas agora vejo que sempre existiu um sentimento oculto de ódio, de antagonismo, profundamente arraigado. O que vou fazer com essa descoberta? Você não faz idéia do quanto fiquei estarrecida com isso e, embora você diga que não devemos condenar, essa descoberta foi muito salutar.”

Você também descobriu o processo do ódio? Ver a causa, saber por que você odeia é algo relativamente fácil; mas você está consciente dos comportamentos habituais do ódio? Você os observa como observaria um novo animal desconhecido?

“Tudo isso é bastante novo para mim e jamais observei o processo do ódio.”

Vamos fazer isso agora e ver o que acontece; vamos observar passivamente o ódio enquanto ele se revela. Não fique chocada, não censure, nem encontre desculpas; apenas observe passivamente. O ódio é uma forma de frustração, não? Satisfação e frustração sempre estão juntas.
No que você está interessada, não profissionalmente, mas bem em seu íntimo?

“Eu sempre quis pintar.”

Por que não o fez?

“Meu pai costumava insistir que eu não deveria fazer nada que não produzisse dinheiro. Ele era um homem muito dinâmico, e dinheiro para ele era a finalidade de todas as coisas; ele nunca fazia algo que não tivesse dinheiro envolvido ou que não trouxesse mais prestigio, mais poder. “Mais” era seu deus, e nós éramos seus filhos. Embora gostasse dele, eu era seu oposto de muitas maneiras. Essa idéia da importância do dinheiro foi profundamente implantada em mim; e eu gostava de ensinar, provavelmente porque isso me oferecia a oportunidade de ser a chefe. Em minhas férias, eu costumava pintar, mas era algo bastante insatisfatório; eu queria dedicar minha vida a isso, e o fazia apenas uns dois meses por ano. Finalmente, parei de pintar, mas isso me queimava interiormente. Vejo agora como isso estava gerando antagonismo.”

Você já foi casada? Tem filhos?

“Eu me apaixonei por um homem casado e vivemos juntos secretamente. Eu tinha um ciúme violento de sua mulher e seus filhos, e tinha medo de ter filhos, embora os desejasse ardentemente. Todas as coisas naturais, o companheirismo do dia a dia etc., me foram negadas, e o ciúme era de uma fúria destruidora. Ele teve de se mudar para outra cidade, e meu ciúme jamais diminuiu. Era algo insuportável. Para esquecer tudo isso, eu me afeiçoei ainda mais ao ensino. Mas agora vejo que ainda tenho ciúmes, não dele, pois ele morreu, mas de pessoas felizes, de pessoas casadas, dos bem-sucedidos, de quase qualquer um. O que poderíamos ter sido juntos nos foi negado!”

Ciúme é ódio, não é? Se alguém ama, não há espaço para outra coisa. Mas nós não amamos; a fumaça sufoca nossa vida, e a chama morre.

“Consigo ver agora que na escola, com minhas irmãs casadas e em quase todos os relacionamentos, havia uma guerra em andamento, só que ela estava oculta. Eu estava me tornando a professora ideal; tornar-se a professora ideal era meu objetivo, e eu estava sendo reconhecida como tal.”

Quanto mais forte o ideal, mais profunda a repressão, mais profundos o conflito e o antagonismo.

“Sim, vejo tudo isso agora; e estranhamente, enquanto observo, não me importo de ser o que de fato sou.”

Você não se importa porque há um tipo de reconhecimento brutal, não é? Esse mesmo reconhecimento produz certo prazer; ele dá vitalidade, um sentido de confiança de conhecer a si mesma, o poder do conhecimento. Como o ciúme, embora doloroso, dava uma sensação agradável, agora o conhecimento de seu passado lhe dá uma sensação de domínio que é também agradável. Você agora encontrou um novo termo para ciúme, para frustração, para abandono: é ódio — e o reconhecimento dele. Há orgulho em saber, que é outra forma de antagonismo. Nós vamos de uma substituição a outra; mas, em geral, todas as substituições são iguais, embora verbalmente elas possam parecer diferentes. Então você ficou presa na rede do próprio pensamento, não é?

“Sim, mas o que mais se pode fazer?”

Não pergunte, mas observe o processo de seu próprio pensamento. Como ele é dissimulado e enganador! Ele promete libertação, mas só produz outra crise, outro antagonismo. Esteja passivamente atenta a isso e deixe que a verdade disso apareça.

“Haverá libertação do ciúme, do ódio, dessa batalha reprimida e constante?”

Quando você está esperando por algo, positiva ou negativamente, está projetando o próprio desejo; você terá sucesso, mas isso será apenas outra substituição, e assim a batalha estará de novo em atividade. Esse desejo de ganhar ou de evitar ainda está dentro do campo da oposição, não está? Veja o falso como falso, e então a verdade aparecerá. Você não tem de procurar por ela. Você encontrará o que procurar, mas não será a verdade. É como o homem desconfiado que descobre aquilo de que suspeitava, o que é relativamente fácil e estúpido. Apenas esteja passivamente consciente desse processo total do pensamento e também do desejo de se libertar dele.

Krishnamurti – Comentários sobre o viver

quarta-feira, 6 de março de 2013

A fuga do que é


Ele era um homem muito velho, com a barba branca, e o seu corpo magro mal estava coberto pelo hábito cor de açafrão de um saniasi. Tinha modos e fala tranqüilos, mas seus olhos eram repletos de tristeza — a tristeza de uma busca em vão. Com a idade de 15 anos, ele deixou a família e renunciou ao mundano, e por muitos anos vagou por toda a Índia, visitando ashrams, estudando, meditando, buscando sem cessar. Ele morou por algum tempo no ashram do líder político-religioso que trabalhara extenuamente pela liberdade da Índia, e viveu em mais outro, ao sul, onde os cânticos eram agradáveis. No salão onde um homem santo vivia silenciosamente, ele também buscara em silêncio, entre muitos outros. Ele esteve em ashams da costa leste à costa oeste, investigando, questionando, discutindo. No extremo norte, na neve e nas gélidas cavernas, ele também passou; e meditara o sofrimento físico e fez longas peregrinações a templos sagrados. Era versado em sânscrito, e se deleitara em cantar enquanto peregrinava de um lugar a outro.

“Busquei a Deus de todas as maneiras possíveis desde a idade de 15 anos, mas não O encontrei, e agora já passo dos 70. Venho a você como fui a outros, na esperança de encontrá-lo. Preciso encontrá-lo antes de morrer; a não ser, que Ele seja apenas mais um dos muitos mitos da humanidade.”

Se me permite perguntar, senhor, acha que o imensurável  pode ser encontrado na busca por Ele? Seguindo diferentes caminhos, por meio de disciplina e autoflagelaçao, do sacrifício e do serviço devoto, aquele que busca encontrará o eterno? Certamente, senhor, não importa se o eterno existe ou não, e podemos investigar a verdade disso mais tarde; o que é importante é compreender por que buscamos, e o que estamos buscando. Por que buscamos?

“Eu busco porque, sem Deus, a vida tem pouquíssimo significado. Eu O busco devido à tristeza e à dor. Eu O busco porque quero paz. Eu O busco porque Ele é o permanente, o imutável;  porque existe a morte, e Ele é imortal. Ele é ordem, beleza e bondade, e por essa razão eu O busco.”

Ou seja, estando em agonia pelo impermanente, buscamos cheios de esperança aquilo que chamamos de permanente. A razão de nossa busca é encontrar conforto no ideal do permanente, mas esse ideal nasce da impermanência, brota da dor da mudança contínua. O ideal é irreal, enquanto a dor é verdadeira; mas, ao que parece, não compreendemos o fato da dor, e nos apegamos ao ideal, à esperança da ausência de dor. Daí nasce em nós a dualidade entre fato e ideal, com seu conflito infindável entre o que é e o que deveria ser. A razão de nossa busca é escapar da impermanência, da dor, em direção àquilo que a mente acredita ser o estado de permanência, de êxtase perpétuo. Mas esse pensamento em si já é impermanente, pois nasce da dor. O oposto, independente do quão elevado, contém a semente do próprio oposto. Nossa busca, portanto, é apenas o anseio por escapar do que é.

“Quer dizer que temos de parar de buscar?”

Se dispensarmos nossa atenção integral à compreensão do que é, então a busca, como a conhecemos, talvez não seja necessária, de modo algum. Quando a mente está livre da dor, que necessidade tem de buscar a felicidade?

“É possível que a mente se liberte da dor?”

Concluir que ela pode ou não se libertar significa colocar um fim a todo o questionamento e compreensão. Temos de dedicar nossa atenção total à compreensão da dor, e não podemos fazê-lo se estivermos tentando escapar dela, ou se nossa mente estiver ocupada em buscar sua causa. Deve haver total atenção, e não uma preocupação oblíqua.

Quando a mente não busca mais, quando cessa de gerar conflito por meio de suas faltas e anseios, quando está silente em compreensão, somente então pode haver o imensurável.


Krishnamurti – Comentários sobre o viver

terça-feira, 5 de março de 2013

Não há pensador, apenas pensamento condicionado


“O que quer dizer com ação total?”

Para compreender a ação total, temos de explorar a divisão entre o pensador e seu pensamento.

“Existe um observador que está acima tanto do pensador quanto de seu pensamento, não acha? Eu sinto que há. Por um único momento de êxtase, experimentei tal estado.”

Essas experiências resultam de uma mente que foi moldada pela tradição, por mil influências. As visões religiosas de um cristão serão bastante distintas das visões de um hindu ou muçulmano, já que todas, essencialmente, se baseiam no condicionamento particular daquela mente. O critério da verdade não é a experiência, mas o estado em que nem o experimentador nem a experiência existem mais.

“Você fala do estado de samadhi?”

Não, senhor; ao usar essa palavra você está apenas citando a descrição da experiência do outro.

“Mas não existe um observador acima e além do pensador e de seu pensamento? Definitivamente, sinto que é assim.”

Começar com uma conclusão põe um fim a todo o pensar, não é?

“Mas não se trata de uma conclusão, senhor. Eu sei, senti a verdade disso.”

Aquele que diz que sabe, na verdade, não sabe. O que você sabe ou sente ser verdadeiro é o que lhe foi ensinado; outro, que por acaso foi ensinado de modo diferente pela sociedade, por sua cultura, afirmará com igual confiança que seu conhecimento e experiência lhe mostram que não há um observador final. Ambos, o crente e o descrente, estão na mesma categoria. Ambos começam com uma conclusão, e com experiências baseada em seu condicionamento, não é assim?

“Quando você coloca dessa forma, realmente parece que permaneci equivocado o tempo todo, mas ainda não estou convencido.”

Não estou tentando provar que você está equivocado, nem convencê-lo de nada; apenas estou destacando certos aspectos para que você os examine.

“Após consideráveis leituras e estudos, imagino que já examinei de modo bastante abrangente a questão do observador e do observado. A mim, parece que, se o olho vê a flor, e a mente observa através do olho, portanto, além da mente, deve haver uma  entidade que está consciente de todo o processo, ou seja, da mente, do olho e da flor.”

Vamos investigar o tema sem definições, pressa ou dogmatismo. Como surge o pensamento? Há a percepção, o contato, a sensação, e daí o pensamento, baseado em memória, diz: “Isto é uma rosa.” O pensamento cria o pensador; o que dá origem ao pensador é o processo do pensar. O pensamento vem primeiro; depois o pensador, e não o contrário. Se não percebemos que isso é um fato, seremos levados a todo tipo de confusão.

“Mas existe uma divisão, um hiato, estreito ou amplo, entre o pensador e o pensamento; esse fato não indicaria que o pensador surge primeiro?”

Vejamos. Ao perceber que é impermanente, inseguro, e ao desejar a permanência e a segurança, o pensamento gera o pensador, e, em seguida, empurra o pensador para níveis cada vez mais altos de permanência. Portanto, há um aparente hiato entre o pensador e o pensamento, entre o observador e o observado; mas todo o processo ainda pertence à esfera do pensamento, não é verdade?

“Senhor, o que quer dizer é que o observador não tem realidade, que é tão impermanente quanto o pensamento? Mal posso acreditar nisso.”

Você pode chamá-lo de alma, Atman, ou qualquer outro nome que queira, mas o observador ainda é o produto do pensamento. Enquanto o pensamento estiver ligado de alguma forma ao observador, ou este estiver no controle, moldando o pensamento, ele ainda estará dentro do campo do pensamento, dentro do processo do tempo.

“Como minha mente objeta a isso! E, mesmo assim, sem querer, estou começando a ver que é um fato; e se é um fato, então só há o processo do pensar, e nenhum pensador.”

É isso, não é mesmo? O pensamento gera o observador, o pensador, o censor consciente ou inconsciente que está perpetuamente julgando, condenando, comparando. É esse observador que está sempre em conflito com seus pensamentos, sempre se esforçando por guia-los.

“Por favor, vá um pouco mais devagar; realmente quero avançar o assunto passo a passo. Você está indicando que todas as formas de esforço, nobres ou ignóbeis, resultam dessa divisão artificial e ilusória entre o pensador e seus pensamentos. Mas está tentando eliminar o esforço? O esforço não é necessário para qualquer mudança?

Logo abordaremos esse assunto. Nós vimos que só existe o pensar, que inventa o pensador, o observador, o censor, o controlador. Entre o observador e o observado existe o conflito do esforço de um para ultrapassar ou, ao menos, modificar o outro. Esse esforço é vão, jamais pode produzir mudança fundamental no pensamento, porque o pensador, o censor, é, em si mesmo, parte daquilo que deseja mudar. Uma parte da mente não tem a menor possibilidade de transformar outra parte, que não passa de uma continuação de si mesma. Um desejo pode, e muitas vezes consegue, superar outro desejo. Mas o desejo vitorioso gera outro desejo ainda, que por sua vez se torna o perdedor ou o vencedor, e assim o conflito da dualidade se põe em movimento. Não há movimento. Não há fim para esse processo.

“A mim parece que você está dizendo que é somente por meio da eliminação do conflito que há possibilidade de mudança fundamental. Não compreendo muito bem. Poderia tratar um pouco mais disso?”

O pensador e seu pensamento são um processo unitário, nenhum deles tem uma continuidade independente; o observador e o observado são inseparáveis. Todas as qualidades do observador estão contidas em seu pensamento; se não há pensamento, não há observador, não há pensador. Isso é um fato, não é?

“Sim, até aí, entendi.”

Se a compreensão é apenas verbal, intelectual, ela tem pouco significado. É preciso haver uma experiência real do pensador e de seu pensamento como um só, uma integração de ambos. Desse modo, há apenas o processo do pensar.

“O que quer dizer com o processo do pensar?”

É a forma ou a direção na qual o processo foi posto em movimento: pessoal ou impessoal, individual ou coletivo, religioso ou mundano, hindu ou cristão, budista ou muçulmano e assim por diante. Não há pensador que seja muçulmano, mas apenas o pensar que recebeu um condicionamento muçulmano. O pensar é o resultado do próprio condicionamento. O processo ou maneira de pensar deve, inevitavelmente, gerar conflito, e quando é feito um esforço para superar esse conflito por diversos meios, ele apenas constrói outras formas de resistência e conflito.

“Isso está claro — ou pelo menos acho que sim.”

Essa forma de pensar deve cessar por completo, pois gera confusão e infelicidade. Não há forma de pensar melhor ou mais nobre. Todo pensamento é condicionado.

“Parece que você está insinuando que somente quando o pensamento cessa é que ocorre uma mudança radical. Mas isso é verdade?”

O pensamento é condicionado. A mente, por ser o armazém das experiências, memórias, das quais o pensamento se origina, é, em si mesma, condicionada; e qualquer movimento da mente, em qualquer direção, produz os próprios resultados limitados. Quando a mente se esforça para se transformar, apenas constrói outro padrão, diferente, talvez, mas ainda um padrão. Todo esforço da mente em se libertar é a continuação do pensamento; pode estar num nível mais elevado, mas ainda se encontra no próprio círculo, o círculo do pensamento, do tempo.

“Sim, senhor, estou começando a entender. Por favor, prossiga.”

Qualquer movimento de qualquer tipo por parte da mente apenas dá força à continuidade do pensamento, com suas buscas invejosas, ambiciosas, acumulativas. Quando a mente está totalmente desperta para esse fato, assim como fica completamente alerta para uma cobra venenosa, então você vê que o movimento do pensamento chega ao fim. Só assim há uma revolução total, e não a continuidade do velho sob uma forma diferente. Esse estado não deve ser descrito; aquele que descreve não está ciente dele.

“Realmente, acho que entendi não apenas suas palavras, mas a implicação total daquilo que vem dizendo. Se, de fato, entendi ou não, será revelado em minha vida cotidiana.”


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