domingo, 21 de novembro de 2010

UMA DIMENSÃO DIFERENTE

Krishnamurti - Paris, Abril 24, 1969

Temos estado a falar sobre o caos no mundo, a extrema violência, a confusão, não só exterior mas também interiormente. A violência é resultado do medo, mas já tratámos da questão do medo. Penso que devíamos agora tratar de algo que poderá ser um pouco estranho para a maioria de vós, mas que terá de ser considerado, e não meramente rejeitado, afirmando-se que é uma ilusão, uma fantasia, ou outra coisa qualquer.

Através da História, o homem -- vendo que a sua existência é muito curta, cheia de acidentes, dor, morte inevitável -- sempre formulou uma ideia a que chamou Deus. Percebeu, como nós agora, que a vida é transitória e quis experienciar algo que fosse imenso, supremo; algo não elaborado pela mente ou pela emoção.

Quis penetrar num mundo completamente diferente, que transcendesse este mundo, -- que estivesse para além de toda a infelicidade e aflição. E esperava encontrar esse mundo transcendente através da busca. Devemos investigar este assunto de haver, ou não, uma Realidade -- não importa o nome que se lhe possa dar -- que seja uma dimensão inteiramente diferente. Para penetrarmos na sua profundidade, temos naturalmente de perceber que não chega só uma simples compreensão ao nível verbal -- porque a descrição nunca é o descrito, a palavra nunca é a coisa. Poderemos nós entrar no mistério -- se é que é um mistério isso a que o homem tem tentado chegar, invocando-o, agarrando-se a isso, adorando-o, devotando-se a ele?

Sendo a vida aquilo que é -- muito superficial, vazia, tortuosa, sem grande sentido -- tenta-se inventar um significado, dar-lhe um sentido. Se se tem uma certa habilidade mental, o significado e o sentido dessa invenção tornam-se bastante complicados. E ao não encontrarmos a beleza, o amor, ou o sentido da imensidade, isso pode tornar-nos cépticos, descrentes de tudo. É claro que é absurdo e ilusório, sem significado, inventar uma ideologia, uma fórmula, afirmar que há Deus ou que não há, quando a vida não tem qualquer significado -- o que é verdade, vivendo nós como vivemos. Assim, não vamos nós agora inventar-lhe um sentido.

Era bom que pudéssemos fazer esta pesquisa juntos e descobrirmos, por nós próprios, se há, ou não, uma Realidade que não seja uma mera invenção intelectual ou emocional, uma fuga. O ser humano, através da História, tem afirmado que há uma Realidade para a qual temos que nos preparar, pela qual temos de fazer certas coisas (disciplinarmo-nos, resistir a qualquer forma de tentação, autocontrolar-nos, controlar o sexo, ajustarmo-nos a determinado padrão estabelecido pela autoridade religiosa, pelos santos, etc.); ou devemos rejeitar o mundo, afastando-nos para um mosteiro ou para alguma gruta onde possamos meditar, isolando-nos, para estarmos sozinhos e não termos, assim, tentações.

Vê-se, naturalmente, o absurdo de uma tal luta, e que não temos possibilidade de fugir do mundo, daquilo que é, do sofrimento, da loucura, e de tudo o que o homem tem descoberto no campo científico.

Obviamente que temos de pôr de lado todas as teologias e crenças. Se assim procedermos, então deixa de haver qualquer forma de medo.

Sabendo que a moralidade social não é moral mas imoral, percebemos que temos de ser extraordinariamente morais porque, afinal, moralidade é apenas criar ordem, tanto dentro como fora de cada um de nós; mas esta moralidade deve estar na ação, não sendo uma moralidade meramente baseada em ideias ou conceitos, mas termos uma conduta verdadeiramente moral.

Será possível disciplinarmo-nos sem repressão, sem controle, sem fugas? A raiz da palavra "disciplina" é "aprender", e não conformarmo-nos nem tornarmo-nos discípulos de alguém; não é imitar ou reprimir, mas aprender. O próprio ato de aprender exige disciplina -- uma disciplina que não é imposta nem é acomodação a qualquer ideologia, nem é a dura austeridade do monge. Contudo, sem uma profunda austeridade, a nossa conduta na vida diária apenas leva à desordem.

Podemos ver como é essencial ter completa ordem dentro de nós, tal como a ordem matemática, que não é relativa, que não é comparativa, nem resulta da influência do meio.

Tem de se estabelecer uma conduta correta, para que a mente esteja em completa ordem. Uma mente torturada, frustrada, moldada pelo que a rodeia, que se conforma à moral social estabelecida é, em si própria, confusa; e uma mente confusa não pode descobrir o que é a Verdade. Para a mente descobrir esse estranho mistério -- se tal coisa existe - - ela precisa de construir as bases de uma conduta moral, o que não tem nada a ver com a moralidade social, uma conduta sem medos e, portanto, livre. Só então -- depois de lançada esta base profunda -- a mente poderá prosseguir no sentido de descobrir o que é meditação, essa qualidade de silêncio, de observação, no qual o "observador" não existe. Se esta base de conduta correta não está presente na existência de cada um, na sua ação, então a meditação tem muito pouco significado.

No Oriente há muitas escolas, muitos sistemas e métodos de meditação - - incluindo o Zen e o Yoga -- e que foram trazidos para o Ocidente. Temos de compreender muito claramente esta idéa de que através de um método, de um sistema, ou do ajustamento a certo padrão ou tradição, a mente é capaz de descobrir essa Realidade. Podemos ver como isso é absurdo, seja importado do Oriente ou inventado aqui no Ocidente. Método implica conformismo, repetição; sugere que alguém alcançou uma certa "iluminação", que manda: "Faz isto, não faças aquilo". E nós, que estamos ansiosos por atingir essa Realidade, seguimos, conformamo-nos, obedecemos, praticamos aquilo que nos disseram, dia após dia, como se fôssemos máquinas. Uma mente embotada e insensível, que não é muito inteligente, é capaz de praticar um método tempo sem fim; vai-se tornando cada vez mais insensível, estupidificada. Terá a sua própria "experiência" dentro dos limites do seu próprio condicionamento.

Alguns de vós talvez tenham estado no Oriente e alí estudado meditação. Existe toda uma tradição por detrás disso. Na Índia, e por todo a Ásia, essa tradição "explodiu" nos tempos mais antigos. Ainda hoje, ela prende a atenção. Livros sem fim têm sido escritos sobre ela. Mas qualquer forma de tradição -- trazida do passado --, que é utilizada para se saber se existe uma Grande Realidade, é obviamente um esforço perdido. A mente tem de estar liberta de toda a espécie de tradição e preceitos espirituais; caso contrário, ficamos completamente privados de verdadeira inteligência.

Então, o que é meditação, se ela não é uma meditação tradicional? -- e ela não pode ser tradicional, ninguém no-la pode ensinar; não podemos seguir um determinado caminho e dizer: "Ao longo deste caminho, ficarei a saber o que é meditação". Todo o sentido da meditação reside na mente que se torna completamente quieta; quieta, não apenas no nível consciente, mas também nos níveis mais profundos, secretos e escondidos da consciência; tão completamente quieta que o pensamento fica silencioso e não anda a vaguear por todo o lado. Um dos ensinamentos da tradição relativa à meditação, a abordagem tradicional de que estamos a falar, diz que o pensamento deve ser controlado; mas isso tem que ser totalmente posto de lado, observando tudo isso de muito perto, objectivamente e de modo não emocional. A tradição diz que temos de ter um guru, um instrutor, para nos ajudar a meditar, que nos diga o que temos de fazer. O Ocidente tem a sua própria forma de tradição, -- prece, contemplação e confissão. Mas em todo o princípio de que alguém sabe e nós não sabemos, e que esse que sabe nos vai ensinar, nos vai dar a iluminação, nisso está implícita a autoridade, o mestre, o guru, o salvador, o Filho de Deus, etc..

Eles sabem, e nós não; dizem: "Segue este método, este sistema, pratica-o todos os dias, e eventualmente chegarás "lá" -- se tivermos sorte. Isto quer dizer, que estamos em luta conosco próprios durante todo o dia, tentando conformarmo-nos a um padrão, a um sistema, tentando reprimir os nossos desejos, apetites, invejas, ciúmes, ambições. E assim surge o conflito entre aquilo que somos e o que "deveríamos ser" de acordo com o sistema; isto significa que há esforço; e a mente que está fazendo esforços nunca poderá estar quieta; através do esforço a mente nunca pode tornar-se completamente tranquila.

A tradição também diz que devemos concentrar-nos, para controlarmos o pensamento. Concentrar-se é meramente resistir, é construir um muro à volta de si mesmo, para proteger uma focagem sobre uma ideia, um princípio, uma imagem, ou o que quer que seja, excluindo tudo o mais.

A tradição afirma que temos de passar por isso, para encontrarmos aquilo que desejamos. Ela também diz que não se deve ter relações sexuais, que não devemos olhar para este mundo, tal como todos os santos, mais ou menos neuróticos, sempre aconselharam. E quando compreendemos (não meramente ao nível verbal e intelectual, mas de fato) o que está envolvido em tudo isso -- e só podemos compreendê-lo se não estivermos apegados a isso, e pudermos olhá-lo objetivamente -- então, abandonamo-lo completamente. E precisamos de fazê-lo porque, então, a mente, no próprio ato de abandonar, se torna livre e, portanto, inteligente, atenta, não susceptível de se deixar prender em ilusões.

Para meditar, no sentido mais profundo da palavra, temos de ser íntegros, morais. Não se trata da moralidade de um padrão, de uma prática, ou da ordem social, mas sim da moralidade que brota naturalmente, inevitavelmente, suavemente, quando começamos a compreender-nos a nós próprios, quando estamos atentos aos nossos pensamentos e sentimentos, às nossas atividades, desejos, ambições, etc. -- atentos sem qualquer escolha, observando apenas.

Dessa observação nasce a ação recta, que não tem nada a ver com conformismo ou com uma ação de acordo com um ideal. Então, quando isso existe profundamente em nós, com a sua beleza e austeridade na qual não há nenhuma rigidez -- rigidez só existe quando há esforço -- quando tivermos observado todos os sistemas, todos os métodos, todas as promessas e olhado para eles objectivamente, sem gostar ou não-gostar, então podemos recusar tudo isso completamente, para que a mente fique liberta do passado; então podemos prosseguir na descoberta do que é meditação.

Se não tivermos construído, de fato, os alicerces, podemos entreter-nos com a meditação, mas isso não tem qualquer significado -- é como aquelas pessoas que vão para o Oriente à procura de um instrutor que lhes diga como devem sentar-se, como respirar, o que fazer, etc., e que regressam e escrevem um livro, o que é tudo uma pura insensatez.

Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas compreensão. A compreensão só é possível quando há observação sem um centro, o observador. Já alguma vez observastes, olhastes bem, procurando descobrir o que é compreender? Compreender não é um processo intelectual, não é uma intuição ou um sentir. Só se pode dizer "compreendo muito claramente" quando há uma observação nascida
de um silêncio total -- só então há verdadeira compreensão. Quando afirmamos: "Compreendo isto ou aquilo", queremos dizer que a mente escuta, em silêncio, sem concordar ou discordar; nesse estado escuta-se de uma forma completa -- e só então há compreensão, e essa compreensão é ação interior. Não há compreender primeiro e só depois ação; é algo simultâneo, é um só movimento. Assim, meditação -- esta palavra está pesadamente carregada de tradição -- é levar, sem esforço, sem qualquer forma de compulsão, a mente, incluindo o cérebro, à sua mais alta capacidade, que é inteligência, que é ser extremamente sensível. O cérebro fica silencioso; esse repositório do passado, que evoluiu durante milhares de anos e que está incessantemente ativo -- esse cérebro fica tranquilo.

Será mesmo possível para o cérebro, que está continuamente em reação, respondendo ao mais pequeno estímulo, de acordo com o seu condicionamento, ficar tranquilo? Os tradicionalistas dizem que ele pode ser aquietado, através de uma respiração adequada e praticando "vigilância". Mas, de novo, isto levanta a questão: "Quem é a entidade que controla, que pratica, que molda o cérebro?" Não será o pensamento, que diz, "Eu sou o observador e vou controlar o cérebro, parar o pensamento"? O pensamento cria o pensador.

Será possível o cérebro estar completamente quieto? Faz parte da meditação descobrir isso, em vez de sermos ensinados; ninguém nos pode dizer como fazê-lo. O nosso cérebro -- que está tão pesadamente condicionado pela cultura, por toda a espécie de experiências, que é resultado de uma longa evolução -- poderá ele estar tranquilo? -- porque sem isso, seja o que for que ele veja ou experiencie será distorcido, será traduzido de acordo com o seu condicionamento.

Que parte tem o sono na meditação, na vida? É uma questão muito interessante; se investigarmos nós próprios, faremos grandes descobertas. Como dissemos no outro dia, os sonhos são desnecessários. A mente, o cérebro, precisam de estar completamente despertos durante o dia -- atentos ao que se está a passar tanto dentro como fora de nós, sensíveis às reacções interiores, ao que se passa no exterior, com as suas tensões que provocam reacções, atentos aos sinais do inconsciente -- e, no fim do dia, o cérebro precisa de considerar tudo isso. Se assim fizermos quando estivermos a dormir, estaremos a aprender numa dimensão totalmente diferente; e isso faz parte da meditação.Se assim não procedermos no fim do dia, o cérebro terá de trabalhar durante a noite, quando estivermos a dormir, para trazer ordem a si próprio -- o que é óbvio.

Há a construção das bases da conduta, cuja acção é amor. Há o abandonar de todas as tradições, para que a mente fique inteiramente livre e o cérebro completamente quieto. Se fizermos isso, veremos que o cérebro é capaz de aquietar-se, não através de qualquer truque ou droga, mas sim por meio dessa ativa e também passiva atenção que tivermos durante o dia. E se, no fim do dia, examinarmos cuidadosamente o que aconteceu e assim criarmos ordem, então, durante o sono, o cérebro está em silêncio, aprendendo, com um movimento diferente.

Assim, todo o corpo, o cérebro, a mente estão calmos, sem qualquer forma de distorção. E se há, de fato, uma Realidade, só então a mente é capaz de a receber. Essa Imensidade, esse Inominável, esse Transcendente -- se é que existe -- não pode ser convidado. E só uma mente assim poderá ver a falsidade ou a verdade dessa Realidade.

Podemos perguntar: "Que tem tudo isto a ver com a nossa vida? Tenho de viver todos os dias, ir para o escritório, lavar pratos, viajar num autocarro barulhento e a abarrotar de pessoas -- o que tem a meditação a ver com tudo isto?" Mas, meditação e´, afinal, compreender a vida, a vida de todos os dias, com toda a sua complexidade, aflição, sofrimento, solidão, desespero, medo, inveja, vontade de se ser famoso, de ter sucesso -- compreender tudo isto é meditação.

Sem essa compreensão, a mera tentativa de um encontro com o mistério é totalmente infrutífero, sem valor. É como uma vida e uma mente em desordem, a tentar chegar à ordem matemática. A meditação tem tudo a ver com a vida; não é um mergulho num qualquer estado emocional e "extático". Há um êxtase que não é prazer e que acontece apenas quando em nós próprios há essa ordem matemática, que é total. A meditação é uma maneira de viver, todos os dias -- só então aquilo que é imperecível, que não tem tempo, poderá surgir.

Interlocutor: Quem é esse observador que está consciente das suas próprias reacções? Que energia é usada?

Krishnamurti: Será que já olhámos para alguma coisa sem reacção? Será que já olhámos uma árvore, um rosto de mulher, uma montanha, uma nuvem, ou a luz sobre a água, só observando, sem traduzir isso em "gosto" ou "não gosto", em prazer ou dor -- observando apenas?

Numa tal observação, quando se está mesmo atento, há algum observador? Fazei isso, não me pergunteis -- se o fizerdes, descobrireis. Observai as reações, sem as julgar, sem as avaliar ou distorcer, estando completamente atentos a todas as reações. Nessa atenção, vereis que não há nenhum observador, nem pensador, nem experienciador.

Agora a segunda questão: para mudarmos alguma coisa em nós, para provocarmos uma transformação, uma revolução na psique, que energia é precisa? Como se tem essa energia? Habitualmente, temos energia mas em tensão, em contradição, em conflito; há energia no confronto entre dois desejos, entre o que tenho de fazer e o que "deveria" fazer -- tudo isto consome muita energia. Mas se não houver contradição de qualquer espécie, então teremos energia em abundância.

Olhemos a nossa própria vida, olhemos, de fato, para ela: ela é contraditória; queremos ser pacíficos, mas odiamos alguém; queremos amar, mas somos ambiciosos. Esta contradição cria conflito, luta; esta luta é um desperdício de energia. Se não há qualquer contradição, temos imensa energia para nos transformarmos.

Perguntamos: "Será possível não haver contradição entre "observador" e "observado", entre o "experienciador" e a "experiência", entre amor e ódio? Será possível viver sem estas dualidades?" É possível quando há apenas o fato, e nada mais -- o fato de que se odeia, de que se é violento, e não o seu oposto, como ideia. Quando temos medo, desenvolvemos o oposto, a coragem, que é resistência, contradição, esforço e tensão. Mas quando percebemos completamente o que é o medo e não fugimos para o oposto, quando damos a nossa completa atenção ao medo, então não há apenas a sua cessação, psicologicamente, mas também temos a energia que é precisa para o enfrentar.

Os tradicionalistas dizem: "Devemos ter esta energia, portanto, não tenhamos atividade sexual, não sejamos mundanos, concentremo-nos, pensemos em Deus, fujamos do mundo, não nos deixemos tentar" -- tudo para se ter esta energia. Mas cada um de nós continua a ser uma criatura humana, com apetites, ardendo com desejos sexuais, tendo necessidades biológicas, querendo passar por isso, controlando, forçando, e tudo o mais -- portanto, dissipando energia. Mas se convivermos com o fato e nada mais; se somos coléricos, compreendamos isso e não pensemos em "como não sermos coléricos", investiguemos o fato, estejamos com ele, convivamos com ele, dando-lhe total atenção -- veremos, então, que temos energia em grande quantidade. É esta energia que mantém a mente lúcida e o coração aberto, havendo, assim, abundância de amor -- em vez de ideias ou de sentimentalismo.

Interlocutor.: O que quer dizer com êxtase, pode descrevê-lo? Disse que êxtase não é prazer; amor não é prazer?

Krishnamurti.: Que é êxtase? Quando olhamos uma nuvem, a luz que a ilumina, há beleza. Beleza é paixão. Para se reparar na beleza de uma nuvem ou na beleza da luz numa árvore, tem de haver paixão, intensidade. Nesta intensidade, nesta paixão, não há qualquer sentimento de gostar ou não gostar. O êxtase não é pessoal; não é teu nem meu, assim como o amor. Quando há prazer, ou é teu ou é meu. A mente meditativa tem o seu próprio êxtase -- que não pode ser descrito, nem ser posto em palavras.

Interlocutor.: Está a dizer que não há bom nem mau, que todas as reações são boas -- é isso?

Krishnamurti.: Eu não disse isso. Disse: "Observemos as nossas reações, não lhes chamemos boas ou más". Quando dizemos que são boas ou más, estamos a criar contradição. Cada um de vós já alguma vez olhou realmente a sua mulher -- desculpai a minha insistência -- sem a imagem que dela tem, a imagem que foi construindo durante trinta ou mais anos? Cada um tem uma imagem um do outro; são estas imagens que estão em relação, e não as pessoas. Estas imagens formam-se quando não se está atento ao relacionamento -- é a desatenção que cria imagens. Poderá cada um de vós olhar a sua mulher sem condenar, sem julgar, sem dizer que ela está certa ou errada, somente observar, sem a intromissão de preconceitos? Então, vereis que há uma ação de natureza completamente diferente, que nasce dessa observação.

*********************************************************
Site krishnamurti-br: http://br.groups.yahoo.com/group/krishnamurti-br
r

Uma Nova Maneira de Viver

PARIS -1
Krishnamurti - O Encontro com o Eterno - ICK - Páginas 68 a 77

Embora devamos desconfiar das semelhanças, não há muita diferença entre o Oriente e o Ocidente, os que vivem na Ásia e os ocidentais. Embora aqueles tenham filosofias e credos diferentes, diferentes costumes, hábitos e maneiras, são entes humanos como os do resto do mundo com seus sofrimentos, seus inumeráveis problemas, ansiedades, temores, entregues muita vez ao extremo desespero, em face da doença, da velhice e da morte. Estes problemas existem no mundo inteiro. Suas crenças e seus deuses não são diferentes dos deuses e crenças deste país ou de outros países ocidentais. Essas crenças não resolveram, fundamental, profunda e radicalmente, nenhum dos problemas humanos. Produziram uma certa cultura, boas maneiras, uma superficial aceitação de certas relações, porém, no fundo, na raiz, o homem não mudou muito nos últimos dois milhões de anos. O homem veio lutando através de todas estas idades, nadando contra a corrente da vida, sempre empenhado em batalha, conflito, luta, sempre a tatear, a buscar, a pedir, a exigir, a rogar, a procurar quem resolva para ele os seus problemas.

Vem isso ocorrendo há séculos e séculos e, como é bem evidente, não resolvemos os nossos problemas. Continuamos a sofrer; continuamos a tatear no escuro, a buscar, a pedir, a exigir que alguém nos venha mostrar o que devemos fazer, o que não devemos fazer, o que devemos pensar e o que não devemos pensar; a passar de uma crença para outra, de uma opinião ou extravagante ideologia para outra. Conhecemos bem isso, todos estes grupos e diferentes convicções, mas, interiormente, é a mesma e tremenda luta e ansiedade e desespero.

Talvez possamos abeirar-nos desses problemas de maneira diferente. Deve haver - e penso que há - um diferente acesso à existência, uma diferente maneira de viver, sem esta batalha, sem este medo, sem estes deuses já de todo insignificantes, sem estas ideologias - comunistas ou religiosas - que já quase nada significam. Provavelmente, elas nunca tiveram muita significação. Ajudaram o homem a civilizar-se, a tornar-se mais afável, mais amigável, porém, basicamente, o homem não foi domado, nem mudou fundamentalmente. Continuamos a ser brutais, a guerrear-nos, tanto exterior como interiormente. Houve quinze mil guerras nos últimos cinco mil anos - quase três guerras por ano! A humanidade foi sempre truculenta, odienta, sempre viveu a competir, a lutar por posição, prestígio, poder, domínio. Isso todos nós conhecemos e aceitamos como a norma de nossa vida - guerra, medo, conflito, uma existência superficial.

Parece-me que deve haver uma diferente maneira de viver, e é disto que vamos tratar nestas cinco reuniões: como promover uma revolução, não exterior, porém interior, já que a crise se verifica na consciência; não é econômica ou social. Estamos sempre a reagir superficialmente ao desafio exterior. Devemos, isso sim, reagir adequadamente à crise interior, que se veio avolumando através das idades. As filosofias e teologias - intelectuais, engenhosas e sutis, como são - e as diferentes fugas que oferecem as religiões por meio dos dogmas, não podem de modo nenhum resolver estes problemas. Quanto mais sério o indivíduo, tanto mais se lhe tornam patentes estes problemas. Entendo por "sérios" aqueles que são capazes de enfrentar e de fato estão enfrentado e resolvendo os problemas, sem adiá-los, sem fugi-los, sem tentar resolvê-los intelectual, verbal ou emocionalmente. A vida é só para os homens sérios, e não para os que tratam meramente de folgar, de reagir superficialmente, de fugir à profunda crise interior.

Agora que o problema está mais ou menos formulado, embora possamos examiná-lo mais profundamente - como talvez o façamos - qual a solução? Quanto mais claro se formula o problema, tanto mais clara se torna a solução. Não estou nada certo se estamos percebendo o problema muito claramente. Procuramos resolvê-lo de acordo com nosso temperamento, nossa educação, o condicionamento próprio da sociedade em que fomos criados. Procuramos solucionar a questão fracionariamente. Se somos muito intelectuais, procuramos resolvê-la intelectualmente, viver pelo intelecto. Se somos emotivos, sentimentais, piegas, ou se somos artistas, procuramos resolvê-lo à nossa maneira, considerando as coisas pelo ângulo emocional, sentimental. Estamos olhando o problema da existência fragmentáriamente, em seções, divisões. Não parecemos capazes de olhá-lo em sua totalidade, de olhar a vida como um todo; e uma solução fragmentária nunca é uma solução. Não podemos resolver todos estes problemas segundo nossos temperamentos, nossos conceitos e ideologias. O problema excede em muito a reação individual.

O indivíduo é a "entidade local"; é o francês, o inglês, o indiano, etc. - uma entidade "localizada". Mas o ente humano, conquanto "localizado" num dado país, faz parte do mundo. Precisamos também de clareza a este respeito, isto é, sobre a diferença entre "indivíduo" e "ente humano". Se se compreende o ente humano, o indivíduo tem então seu lugar próprio, ou nenhum lugar. Mas, se meramente cuidamos de cultivar o "quintal" de nossa própria individualidade, conservando-o em boa ordem e limpo - isso é de muito pouca significação, em relação à existência humana total. Talvez, se se compreender o ente humano, seja possível compreender o lugar que cabe ao indivíduo, mas a compreensão individual não tem possibilidade de compreender o ente humano total. O problema se torna muito mais claro, se posso olhá-lo não fragmentáriamente - se não o olho como cientista, artista, filósofo, teólogo, etc., porém como um ente humano que tem de viver neste mundo e dele não deve fugir; se tenho a possibilidade de olhá-lo como um todo.

Como antes disse, vivemos uma vida de conflito, sempre a indagar e a buscar, sempre a pedir, a esperar; sem jamais por fim ao nosso sofrimento, sem jamais acabar com a violência, tanto no interior como no exterior. Há séculos e séculos que fazemos esse jogo. As religiões ensinaram ao homem que ele deve lutar, fazer tremendos esforços, lidar, batalhar entre o bem e o mal, seguir o que é nobre e evitar o que é ignóbil. Nossa vida, como a conhecemos - real, e não teóricamente - é uma série de conflitos, contradições, tensões, desejos opostos, e não parecemos capazes de escapulir desta rede. Existe alguma maneira completamente diferente de atender a este problema?

Penso que existe. Não sei de que maneira estais escutando o que se está dizendo. Estais meramente a ouvir uma série de palavras, idéias, conceitos, e a concordar ou discordar, a discutir mentalmente com o orador; ou estais, mediante o ato de escutar, tomando conhecimento do verdadeiro estado de vossa vida, como ente humano? Se estais reagindo apenas intelectualmente ao que se está dizendo, nesse caso só tentais indentificar-vos com o problema; por conseguinte, sois diferente do problema. Acho bom examinarmos isso um pouco.

Existe a questão da ansiedade. Examinemo-la, agora. Há em nossa vida um sentimento de desespero ante a futilidade, a monotonia da vida, de nossa existência rotineira, mecânica - e, em conseqüência, ansiedade. Intelectualmente, podemos perceber que estamos ansiosos e nos separamos dessa ansiedade. O observador é então diferente da coisa observada. Dizemos "Eu estou ansioso", sendo "eu" diferente da ansiedade. O pensador, o observador é diferente daquilo a que observa ou a cujo respeito reflete. Há uma divisão entre o observador, o pensador, e o pensamento, a coisa observada. Temos de averiguar de que maneira escutamos. Se escutamos como observadores, como pensadores, existe então uma coisa sobre a qual estamos pensando, ou que estamos observando. Coisa diferente é escutar com atenção. A atenção não é intelectual ou emocional; a atenção não se deixa dirigir. Se dizemos "Ficarei atento", trata-se então de um mero ato de vontade, que, por sua vez, separa. Mas, se escutamos com atenção, não há nem a atividade fragmentária do intelecto nem atividade sentimental; há atenção completa, que não é puramente intelectual, emocional ou física. A atenção é física, intelectual e emocional: uma atividade total. Nela, estão os nervos e as supersensíveis células cerebrais extraordinariamente despertos, atentos. Nesse estado de atenção, pode-se escutar. Tudo o que é falso é posto de lado, por ser completa mente sem valor. O que é verdadeiro fica e floresce, naquela atenção.

Espero estejais experimentando, ao mesmo tempo que esta mos falando. Foi por isso que eu disse que não deveis, meramente, concordar nem discordar do orador ou tentar interpretar o que está dizendo. Vereis, enquanto fordes ouvindo estas cinco palestras, que ele não vos estará oferecendo idéias, nem fórmulas, nem conceitos. E, se permanecerdes atentos, totalmente atentos, estabelecer-se-á a desejada relação entre o orador e vós; já não sereis meros ouvintes, pois estaremos viajando juntos. Isto é muito diferente de estar concentrado; a concentração é egocêntrica - a atenção não é.

A questão que estamos considerando alude à terminação deste nosso perene conflito. Estamos averiguando se alguma possibilidade existe de vivermos, neste mundo, inteiramente livres de conflito. Para descobrir se isso é possível, temos de prestar atenção. Não há atenção, se dizeis: "Estou de acordo", ou "Até aqui, de acordo, mas não irei mais longe", "Isto me agrada; isto não me agrada", "Sou escritor e preciso interpretar tudo isso de uma certa maneira". Se pudermos prestar atenção, será ótimo, pois estabeleceremos entre nós um estado de comunhão. Nessa comunhão, não há instrutor nem discípulo - pois isso também é infantil. Não há seguidor, nem ninguém que diz: "Fazei isto, fazei aquilo!". Como entes humanos, já passamos por tudo isso através de séculos e mais séculos. Tivemos salvadores, Mestres, deuses, crenças, religiões, às dúzias, e eles não resolveram os nossos problemas. Continuamos desditosos como sempre fomos, seres atribulados, confusos, sofredores, e nossa vida se tornou muito insignificante. Podemos ser altamente engenhosos, capazes de falar proficientemente sobre qualquer coisa, mas, interiormente, é só agitação, interminável solidão, confusão que se aprofunda e expande cada vez mais e sofrimento que parece nunca terá fim.

Formulado o problema - que nos é bastante familiar - existe uma maneira diferente de considerá-lo? A velha maneira não nos oferece, evidentemente, nenhuma solução. Isso temos de perceber com absoluta clareza, a fim de abandonar mos definitivamente a velha maneira, o velho caminho que nos oferecem as religiões, com suas crenças, dogmas, salvadores, Mestres, vigários, arcebispos, etc, etc. Quer se trate de religião católica, quer da protestante, hinduísta, budista, esse caminho tem de ser abandonado inteiramente, uma vez que não leva o homem à libertação. A libertação é coisa muito diferente da revolta. Na hora atual, o mundo inteiro se acha em revolta, principalmente a juventude, mas essa revolta não é libertação. Libertação é muito diferente disso; não é libertação de alguma coisa. Se é de alguma coisa, é revolta. Se me revolto contra a religião a que pertenço, essa reação me leva a abraçar outra religião que penso oferecer-me mais liberdade, mais inspiração, novas séries de palavras, de dogmas e ideologias; contudo, tal reação é incapaz de exame. Só a mente que está libertada, mas não em reação a alguma coisa, é capaz de examinar, não só o espírito humano tal qual é, mas também toda a estrutura psicológica da ordem social de que faz parte um dado indivíduo - capaz de questionar, de duvidar, de ser cética. Questionar, indagar, averiguar - tudo isso exige uma grande abundância de liberdade, e não uma grande abundância de reação. Onde há liberdade, há uma paixão, uma intensidade totalmente diversas da intensidade e da paixão da reação. A paixão, a intensidade, a vitalidade, o vigor que a liberdade proporciona não pode ter fim, ao passo que o entusiasmo, o interesse, a vitalidade da reação está sujeita a mudanças e variações.

Para descobrirmos se existe outro caminho, uma diferente maneira de viver - não uma diferente maneira de agir e proceder, porém de viver, que é agir - temos naturalmente de voltar as costas às coisas a que estamos escravizados. Penso ser esta a primeira coisa a fazer, porque, de outro modo, não há possibilidade de exame, observação. Como pode a mente a que se impôs tamanha carga de condicionamento, em dois milênios de propaganda, ou dez milênios de tradição, como pode essa mente observar? Só é capaz de observar através de seu condicionamento, de suas ambições, de suas ânsias de preenchimento. Tal exame é inteiramente sem vitalidade, sem nada; jamais descobrirá coisa nova. Mesmo no campo científico, ainda que se possuam prodigiosos conhecimentos, é necessário, para se poder descobrir coisa nova, pôr de parte, temporariamente, o "conhecido"; de contrário, nada de novo será descoberto. É perfeitamente óbvio que, para se poder ver o novo claramente, o passado, o conhecido, o sabido, tem de desaparecer.

Estamo-nos perguntando - vós e eu - se existe alguma maneira inteiramente nova de proceder, sem conflito, nem contradição. Onde há contradição, há esforço, e onde há esforço há conflito - que é resistência ou aceitação. Resistência é abrigar-nos atrás de idéias; aceitação é imitação. Estamos sempre a nadar contra a corrente; assim é nossa vida. Podemos mover-nos, viver, ser, funcionar de maneira tal, que não tenhamos de lutar contra nenhuma corrente? Quanto mais conflito existe, tanto mais tensão. Da tensão resultam neuroses e psicoses de toda espécie. Um ente humano em estado de tensão poderá ter uma certa capacidade, e essa capacidade criada pela tensão poderá expressar-se em literatura, música, de uma dúzia de maneiras diferentes. Estou procurando transmitir-vos ou, melhor, comunicar-vos(1) alguma coisa, não verbalmente; ainda que seja necessário o emprego de palavras, estas, como sabemos, não são fatos, coisas. Em vez de tentarmos sempre o acesso à realidade por meio de disciplinas,conflito, aceitação, rejeição, de todas as coisas que o homem tem praticado através dos séculos, a fim de descobrir uma "certa coisa", há possibilidade de "explodirmos" e dessa explosão, nascer uma mentalidade inteiramente nova? Pode nossa velha mente, que ainda conserva o "animal", essa velha mente que está sempre a buscar conforto e segurança, sempre medrosa, ansiosa, insulada, dolorosamente cônscia de suas limitações, pode essa mente acabar imediata mente e uma nova mente começar a operar? Está claramente enunciado o problema?

Em outras palavras: O pensamento criou estes problemas. O pensamento "pensou": "Tenho de achar Deus"; "Tenho necessidade de segurança"; "Esta é minha pátria, não é vossa pátria"; "Vós sois alemão"; "Eu sou francês"; "Sois russo; sois comunista; sois isto, aquilo"; "Meu Deus, vosso Deus"; "Eu sou escritor; vós não sois escritor"; "Sois inferior, e eu sou superior", "Sois espiritual e eu não sou espiritual". O pensamento construiu a estrutura social em que estamos encerrados, da qual fazemos parte. O pensamento é o responsável por toda esta confusão. O pensamento a criou, e se o pensamento "diz": "Tenho de modificar tudo isso, para ser diferente", criará ele uma estrutura talvez diferente a alguns respeitos, porém semelhante, porque se trata ainda de ação do pensamento. O pensamento dividiu o mundo em nacionalidades e grupos religiosos; o pensamento gerou o medo. O pensamento "diz": "Sou muito mais importante do que vós"; "diz" também: "Devo amar o meu próximo". O pensamento criou esta hierarquia de sacerdotes, salvadores, deuses, conceitos, fórmulas; e se o pensamento 'diz": "Isto está errado"; "Criarei uma nova ordem de atividades, uma nova ordem de crenças, uma nova ordem de estruturas" - elas serão semelhantes às velhas, embora um pouco diferentes. Pois são ainda resultado do pensamento.

O pensamento criou um mundo comunista e agora o está tornando diferente, está promovendo uma diferença no comunismo, que está virando burguês, menos revolucionário. O pensamento está tornando o comunismo mais brando, mais "gentil". Sempre o pensamento - a criar e a destruir.

Para se descobrir alguma coisa totalmente diferente, não só é necessário compreender a origem do pensamento, o começo do pensamento, mas também descobrir se é possível o pensamento cessar, a fim de que se ponha em movimento um novo processo. Esta é uma questão importantíssima. Não há concordar nem discordar, a respeito dela; nada se sabe; talvez, mesmo, nunca tenhais pensado nela e, portanto, ninguém pode dizer que compreende ou que não compreende. Pode-se dizer: "Sim, compreendo; quer dizer, verbalmente, intelectualmente, estou-vos compreendendo" - mas isso é coisa totalmente diferente da real compreensão do fato. O pensamento criou guerras, com dividir os homens em franceses, alemães, italianos, indianos, russos. Dividiu o mundo em campos antagônicos, áreas de crença, com seus salvadores e deuses - cada uma com seu Deus próprio! Os homens têm lutado uns contra os outros. Tudo isso foi o pensamento que criou; e "diz", então: "Estou vendo isto; é um fato; agora criarei um mundo diferente". Foi o que se tentou fazer, no mundo comunista. Toda revolução fez igual tentativa, para acabar no mesmo círculo de antes.

O pensamento criou filosofias e fórmulas, em conformidade com as quais procuramos viver. Criou uma estrutura psicológica de prazer, estabeleceu certos valores baseados no prazer. Isso não significa que sou contra o prazer, porém, sim, que de vemos investigar, em seu todo, a estrutura do prazer. O pensamento não pode criar um mundo novo. Mas isso não significa que o sentimento o criará; pelo contrário, não pode criá-lo. Temos de encontrar uma energia nova, energia não criada pelo pensamento, uma energia diferente, que funcione numa nova dimensão. As próprias atividades dessa energia deverão desenvolver-se naquele mundo diferente, não num mundo-refúgio, nos mosteiros, nos píncaros do Himalaia, numa caverna, em alguma atividade absurda. Vamos averiguar isso. Estou bem certo de que há uma diferente maneira de viver, porém não num mundo em que o pensamento funciona. Temos de remontar às origens do pensamento, aos começos do pensamento, descobrir o que significa pensar, qual a sua origem, o seu mecanismo. Quando a mente, a entidade total, aplica toda a sua atenção a compreender a estrutura do pensamento, começamos então a adquirir uma energia de espécie diferente. Isso nada tem que ver com autopreenchimento, com buscar, desejar; tudo isso desaparece. Nosso principal interesse, aqui, é compreendermos juntos. Não ficareis apenas a ouvir, e o orador a proferir certas palavras. Vamos investigar juntos a origem do pensar.

Não sei se já notastes como o pensamento fortalece o prazer. Quanto mais pensamos numa coisa que consideramos aprazível, tanto mais lhe damos vitalidade, energia, força variável. Quando o pensamento luta contra um hábito - não importa, se bom, se mau - a energia criada por esse pensar é inteiramente diversa daquela energia que compreende a inteira estrutura do pensamento.

Vamos descobrir juntos, por nós mesmos. Não precisamos de ser ensinados por alguém, o que seria absoluta falta de madureza. Vamos, juntos, descobrir a origem do pensamento e averiguar se é possível o pensamento cessar quando necessário, e funcionar com precisão, racional e claramente, quando também necessário. Transbordamos agora do conhecido para o desconhecido, e nos vemos confusos. Onde o pensamento tem de funcionar vigorosa e não emocionalmente, como quem executa um trabalho técnico, não há reações emocionais. Ensina-se-vos uma técnica, e nela funcionais com precisão. Essa precisão não tem entrada na esfera em que se compreende a origem do pensar. Lá, ela introduz a confusão. O pensamento pode funcionar plena e completamente, racional e sãmente, livre de estados neuróticos, onde isso é necessário; mas, há uma esfera na qual o pensamento não funciona, em absoluto; nessa esfera pode realizar-se uma revolução, surgir o novo. É o que iremos descobrir, por nós mesmos, no correr destas palestras.

(1) Comunicate: comunicar, e comungar. (N. do T.)

Krishnamurti - O Encontro com o Eterno - ICK - Páginas 68 a 77

Uma Radical Revolução

Pergunta : Falais da necessidade de uma radical revolução na vida do indivíduo. Se ele não desejar revolucionar o seu ambiente pessoal externo, por causa do sofrimento que acarretaria para a família e os amigos, poderá uma revolução interna conduzi-lo à libertação de qualquer conflito?

Krishnamurti: Primeiramente, senhores, não achais também necessária uma revolução radical na vida do indivíduo? Ou estais satisfeitos com as coisas tais como são, com vossas idéias de progresso e evolução, vossos desejos de realizações, vossos anseios é vossos prazeres precários? No momento em que começardes a pensar realmente, a sentir realmente, sereis empolgados desse ardente desejo de modificação profunda, revolução radical, completa reorientação do pensar. Pois bem. Se sentirdes necessária tal coisa, então, nem família, nem amigos constituirão empecilhos Porque, nesse caso, não haverá revolução externa nem revolução interna; haverá, simplesmente, revolução, modificação. Mas, se começais a estabelecer restrições, dizendo: "não devo magoar minha família, meus amigos, meu pároco, meu explorador capitalista ou meu explorador político" - não vedes então a necessidade de mudança radical e apeteceis apenas mudança de ambiente. Isso é evidente letargia, a qual criará outro ambiente falso, fazendo continuar o conflito.
Parece-me um tanto falaz o pretexto de não devermos magoar nossas famílias e amigos. Por certo, quando desejais fazer algo de capital importância, vós o fazeis, sem considerações de família nem de amigos, não é verdade? Não receais, então, prejudicá-los. Isso já não está sob vosso controle: sentis tão intensamente, pensais tão completamente, que sois transportados para fora das limitações dos círculos de família, das obrigações de qualquer classe. Mas só começais a levar em conta a família, os amigos, os ideais, as crenças, as tradições, a ordem estabelecida - só começais a tomá-los em consideração quando ainda vos apegais a uma determinada segurança, quando vos falta aquela riqueza interior de que vos falei há pouco, e, em lugar dela, existe apenas a dependência de estímulos exteriores. Assim, pois, se existe plena consciência do sofrimento, despertada pelo conflito, não estais, então, tolhidos pelos vínculos de qualquer ortodoxia, amigos ou família: quereis achar a causa do sofrimento, quereis descobrir o significado do ambiente que recria esse conflito; apagou-se a personalidade, desapareceu a idéia limitada do "eu". É somente quando vos apegais a essa idéia limitada do "eu", que sois obrigados a considerar até onde vos podeis transportar e até onde não deveis ir.
Certo, não se pode encontrar a verdade, ou essa faculdade divina da compreensão, enquanto estivermos apegados à família, à tradição, ou ao hábito. Ela só poderá encontrar-se quando estiverdes em plena nudez, despidos de vossos desejos, esperanças e cautelas. Nessa simplicidade direta está a riqueza da vida.

Pergunta: Como posso agir livremente e sem auto-repressão, quando sei que minha ação deverá magoar os que amo? Num caso desses, de que maneira podemos reconhecer a ação justa?

Krishnamurti: Creio haver respondido a essa pergunta, há dias, mas como é possível que não estivesse presente o seu autor, responderei de novo a ela. O característico da ação justa é a espontaneidade, mas proceder espontaneamente é revelar profunda inteligência. A maioria dos indivíduos têm somente reações, desvirtuadas, desfiguradas, sufocadas, pela falta de inteligência. Quando opera a inteligência, é espontânea a ação.
Deseja também saber o interrogante como poderá proceder livremente e sem refreamento, quando saiba que sua ação deverá magoar os que ama. Ora, amar é ser livre. No amor, são livres ambas as partes. Se existe a possibilidade de sofrimento, não se trata então de amor, mas, sim, puramente, de uma forma sutil do instinto de posse, do instinto de aquisição. Se amais, se realmente amais alguém, não há possibilidade de lhe causardes dor, fazendo algo que julgueis justo. É somente quando queremos levar a pessoa amada a fazer o que desejamos, ou esta nos quer levar a fazer o que ela deseja, é somente então que existe dor. Isto é, amais a posse. Com ela vos sentis abrigados, seguros, confortáveis. Embora saibais transitório esse conforto, buscais abrigo nele, na sua transitoriedade. Toda luta em busca de conforto, incitamento, denuncia falta de riqueza interior, e, por conseguinte, cada ação incompatível com um dos amantes cria-lhe na mente perturbação, dor e sofrimento. Assim, um dos amantes tem de reprimir o que realmente sente, a fim de ajustar-se ao outro. Em suma, essa constante repressão, ocasionada por isso que chamam amor, destrói os dois indivíduos. Em tal amor não existe liberdade; ele é apenas uma forma sutil de escravidão. Quando sentis ardentemente a necessidade de fazer alguma coisa, vós a fazeis, às vezes com astúcia e sutileza, mas a fazeis de qualquer maneira. Existe sempre esse impulso a operar, a agir independentemente.

Krishnamurti - Ojai, Califórnia, 1938
Do Livro: A Luta do Homem - Suas causas seus efeitos seu fim - ICK

Um Modo de Viver Plenamente

Onde quer que se vá, Europa, Índia, Austrália ou América, encontra-se basicamente os mesmos problemas humanos. A maior parte das pessoas está confusa, vivendo contraditoriamente, totalmente infelizes, miseráveis e submetidos a um considerável grau de sofrimento. Do nascimento até a morte, a vida parece um verdadeiro campo de batalha. Pelo mundo afora, com base em diferenças nacionalistas, lingüísticas e religiosas, os homens opõem-se uns aos outros, cada um afirmando que sua forma de vida é a melhor. Há divergências resultando em conflito e guerra. Há discórdia no mundo dos negócios, no mundo espiritual, religioso, científico e acadêmico.

Diante de tanta desunião, profundo caos e miséria de tal magnitude, uns se perguntam, e estou certo de que você também o faz, que atitude tomar, que direção seguir - a esquerda, o centro ou a direita? Porventura o caminho seria aquele ditado por alguma ideologia, crença ou sentença de autoridade? Ou deveríamos seguir uma direção independentemente de qualquer autoridade, que não seria a direita, nem a esquerda, nem o centro; desvinculada de qualquer guru, padre ou organização religiosa? Deveríamos, talvez, seguir nossa própria inclinação, tendência, com base em nossa própria experiência e conhecimento, sendo autoconfiantes, ousados e determinados? Há tantas contradições exterior e interiormente! O que fazer? Certamente você já se questionou várias vezes a respeito. Se você é uma pessoa séria, que não está apenas procurando diversão, realmente vai se fazer essa pergunta diante de um mundo tão caótico, contraditório, dividido, sabendo muito bem que, uma vez perdida a fé, não se confia em ninguém, nem em professores, nem em padres, nem em qualquer impositiva utopia. Se você é tão sério - e eu espero que seja - deve não só ter-se feito essa pergunta como também ter encontrado uma resposta para esse desafio de descobrir o que fazer sem apoiar-se em ninguém. Onde procurar por luz e entendimento, sem tornar-se dependente de nenhum salvador, professor ou autoridade? Se a vida é um fluxo contínuo de ação, o que fazer?

Esses encontros não são um entretenimento filosófico, uma diversão religiosa e, de forma alguma, uma investigação filosófica da existência. Não estamos aqui - pelo menos não eu - para nos debruçarmos sobre as suas ou as minhas idéias particulares. O que estamos tentando fazer é, confrontados com essa extraordinária questão existencial, com todas as suas contradições e complexidades, encontrar a nós mesmos, encontrar um curso de ação que não seja contraditório, mas que seja pleno, completo e não produza mais agonia, mais prejuízo e confusão. Esse é o nosso problema e eu penso que o único problema da vida: encontrar uma forma de vida não fragmentada, não contraditória, mas contínua, plena, total e completa, que não traga mais desordem e sofrimento.

Se você quiser, abordaremos juntos essa questão, tendo em mente que o orador não tem, em absoluto, qualquer autoridade, porque nós ambos vamos examinar juntos, observar esse fenômeno denominado vida e descobrir a verdade a respeito da existência de uma ação, de um modo de vida - não apenas nos momentos críticos ou nas grandes crises, mas a cada dia, a cada minuto - onde haja júbilo, onde não haja violência, brutalidade, contradição e obviamente, submissão e dependência. Podemos encontrar uma maneira de viver, não uma idéia abstrata, uma concepção filosófica, uma teoria, mas efetivamente um modo de vida que seja uma ação completa, plena e totalmente não contraditória? Sinto que essa forma de vida é a única forma religiosa, e nenhuma outra. Estamos usando a expressão religiosa ou religiosidade não no sentido comum da palavra, que significa acreditar em alguma coisa, acreditar ou não em Deus ou em alguma concepção conceitual. Estamos usando a expressão para nos referirmos a um modo de viver pleno, completo e cheio de êxtase. Vamos partir daí.

Primeiramente, para compreender tudo isso, devemos estabelecer claramente a relação que existe entre nós, entre vocês e o orador. Ele não está ensinando no sentido usual da palavra, não está dizendo o que você deve fazer. A expressão ensinar é fornecer informação, fazer com que alguém compreenda, indicar, informar. Quem ensina matemática, fornece informação científica, mas aqui não há professor e precisamos enfatizar isso, porque cada um de nós deve ser o próprio professor e o próprio discípulo - esse é um ponto fundamental - então a maneira de ouvir é diferente. Vocês ouvem o orador, as palavras que ele usa e, entendendo tais palavras e atentando para as suas próprias reações, respostas e situação, então você mesmo pode, por sua própria observação, aprender, e então o orador se torna um espelho no qual você observa a si próprio.

Então, a relação entre você e o orador baseia-se na comunicação, comunicação partilhada, entendimento conjunto, trabalho conjunto. Isso é o que a palavra comunicação significa: comungar. Por favor, tenha isso em mente durante nossos diálogos. Isso significa que você trabalha tanto quanto o orador; você está observando, ouvindo. E observar e ouvir não implica concordar ou discordar, porque não estamos lidando com teorias e idéias, mas ouvindo para descobrir e entender a nós mesmos. Porque nós somos o mundo. Quer vivamos neste maravilhoso país de sol adorável e brilhante, montanhas e a beleza da terra, prósperos, brutais ou violentos, pertencentes a este ou àquele grupo, com apenas um assim chamado mestre espiritual ou com inúmeros professores, nós somos como ninguém mais na Europa, América ou Índia. Somos seres humanos, não rótulos. Na Índia, a explosão demográfica é inacreditável e a pobreza inimaginável. Há ruína, violência, brutalidade e há também a beleza da terra, a luz e as pessoas que, como aqui, agonizam em problemas, num sofrimento que parece não ter fim.

Portanto, não estamos lidando com uma filosofia asiática, uma religião exótica, ou criando algum significado para dar sentido à vida. Podemos deixar isso aos intelectuais; eles podem inventar todos esses sentidos e significados para a vida, porque eles próprios percebem a total falta de sentido dessa existência. Mas vendo tudo isso, não como uma teoria, não como algo alheio a você, mas vendo que, efetivamente, trata-se de sua vida, de sua contradição diária, de sua batalha diária, de suas irritações diárias, raiva, ódio, brutalidade, podemos notar, se tudo isso puder terminar, que poderemos então, viver um tipo de vida realmente diferente, livre e que não resulte em miséria; uma vida que seja verdadeiramente completa e totalmente pacífica.

Percebendo tudo isso, o que faremos, cientes de que nós somos a sociedade e a sociedade somos nós? Nós somos o mundo e vice-versa. Não é apenas uma idéia, é um fato. Você criou este mundo, com sua ganância, ira, ambição, competição, violência. Interiormente você é isso e exteriormente você é suas lutas, todas essas divisões, os negros e os brancos, preconceito, antagonismo, brutalidade.

Você sabe disso. Quer você tenha apenas uma noção, quer você efetivamente saiba, você tem conhecimento disso através de uma revista, um jornal ou do que dizem as pessoas. Você pode ter observado isso em si mesmo, afinal não há necessidade de que outra pessoa lhe descreva como é o mundo. Você não precisa ler sequer um jornal ou revista, nem ouvir o que diz qualquer pessoa, se você próprio sabe o que é. Quando você assimila o que você é, então a questão sobre o que fazer assume outra dimensão, totalmente diferente, porque você percebe que está confuso, assim como o mundo está; você vive em contradição e divisão, tal qual vive o mundo. Quando você atinge a compreensão de si mesmo, não apenas no nível consciente, mas também muito, muito profundamente, não porque concorda com algum psicanalista, mas porque entende a si mesmo como você é, então a questão sobre o que fazer torna-se completamente diferente. Você colocava a questão em relação ao mundo, como se o mundo fosse algo exterior a você. Mas quando você assimila, não verbalmente, não simplesmente como uma idéia, mas verdadeiramente, que você é o mundo, então sua responsabilidade para com esse mundo é a responsabilidade de compreender completamente a si mesmo. Daí a questão do que fazer assume uma dimensão diferente.

Como perceber-se, observar-se, enquanto ser humano? Você não é um americano, embora possa ostentar esse rótulo. Um homem que veio da Índia, com suas crenças e superstições particulares pode intitular-se indiano, mas quando você descarta tudo o que está em volta, ele é apenas um ser humano, como você, eu e inúmeros outros.

Portanto, a questão é: como observar, perceber a si mesmo como mundo e não somente como indivíduo. A palavra indivíduo significa uma entidade una, indivisível. Indivíduo significa um ser humano onde não habita a contradição, divisão, separação. Ser humano que é pleno, harmonioso, uno. Essa palavra "o indivíduo" significa isso: indivisível. Você não é indivíduo, porque está fragmentado, contraditório em si mesmo. Como ver a si mesmo? Por favor, ouçam, isso é absolutamente interessante e demanda um razoável grau de inteligência. É realmente curioso, mais que qualquer livro, espetáculo religioso, qualquer filosofia. Como seres humanos fragmentados em nós mesmos, cheios de desejos contraditórios, sentimentos de inferioridade e superioridade, covardes, sem amor, solitários, realmente despedaçados, não apenas superficial, mas profundamente, como vamos nos perceber, nos testemunhar? Um fragmento, uma parte observa as demais? Um se torna o julgador, o examinador, o observador dos fragmentos restantes? E o que lhe daria esta autoridade sobre as demais partes?

Você percebeu em si mesmo que é um ser humano dividido, fragmentado. Sabendo disso, pergunta-se: quem é o observador, quem é o censor que define: "Eu farei isso, não farei aquilo; isso é certo, isso é errado; esse caminho seguirei e não trilharei aquele outro; serei um pacifista com relação a essa guerra, mas a outras favoreço; seguirei este líder e não aquele outro; acredito nisso e não naquilo; este preconceito manterei e rejeitarei aquele"? Fragmentados, contraditórios, vivendo em constante conflito, observando esse conflito como um fragmento entre tantos, muitos assumem o comando, tornam-se autoridades, censores e suas observações serão, inevitavelmente, contraditórias. Se uma parte assume o papel de analisar as demais, de onde lhe vem tal autoridade? Pode um fragmento julgar os demais?

Veja quão terrivelmente complexo isso se tornou! Se você é analisado por um profissional ou por si mesmo é ainda o mesmo padrão. Portanto, é importante descobrir como observar todas essas contradições que constituem nossas vidas. Como observar a totalidade desses fragmentos sem faltar qualquer deles. Está claro? Por favor, tentem solucionar essa questão, porque enquanto há contradições, divisões em cada um, haverá conflito, violência que se refletirá no mundo exterior, na sociedade. Enquanto a divisão existir em uma parte, não haverá paz e quem realmente, profundamente, desejar entender e viver uma vida de paz e amor, deve compreender essa questão completamente. É um tema muito sério, não se trata de ler umas poucas palavras. Estamos abordando a questão da existência e só a mente que puder atentar seriamente para ela poderá resolvê- la. Faz-se portanto imperativo que se entenda o questionamento.

Como observar? Testemunhar a si mesmo, como um espectador alheio, um julgador que aponta o certo e o errado, justificando, condenando, aprovando? Se assim for, permanece a contradição, o conflito e a violência. Então como proceder? Como perceber não apenas a si mesmo mas ao mundo em você? Os pássaros, as árvores, animais, flores... Como percebê-los? Você é o observador separado do objeto de sua observação? Por favor, acompanhe-me, dedique algum tempo e atenção, porque se pudermos comungar juntos, partilhar juntos, entender juntos, então vocês verão, no fim das contas, que o seu panorama, sua perspectiva da vida será totalmente diferente, se você compreender essa questão fundamental.

Como observar? Através de uma imagem? Quando se observa uma árvore, você a observa com o conhecimento anteriormente adquirido de que é uma árvore. O conhecimento separa você da árvore, divide, cria um espaço entre você e ela. Como, então, você a percebe? Como você percebe seu marido, sua esposa, seu filho ou filha? Por favor, faça isso enquanto falamos. Não tome notas, não vagando por aí com um gravador. Observe. Como você olha para o outro? Como o percebe? Você não o olha através de uma imagem que já construiu dele ao longo de anos ou mesmo de alguns dias? A imagem torna-se o observador e é através dela que você vê. Então o observador - que é apenas uma das partes, um dos fragmentos - tem uma noção de certo e errado, do que deve ou não deve ser feito, porque ele ainda funciona como uma parte, ele ainda está fragmentado.

Daí emerge a questão: será alguém capaz de observar a si mesmo, ao mundo, sem qualquer divisão? O que conduz à fragmentação, não apenas em cada um, mas no mundo em que cada um se constitui? O que leva a isso? Por que a fragmentação, por que os desejos contraditórios? Por que a violência brota como fruto dessas contradições? Deve haver causas pelas quais os seres humanos são violentos. Pode ser carência de espaço físico. O homem evoluiu do animal e animais são muito agressivos. As pessoas adoram ser agressivas. Sentindo-se inferiorizadas, querem ser superiores, etc. Há muitas causas. A maioria de nós despende tempo discutindo as causas, explicando-as. Cada professor, cada especialista, cada escritor explica tais causas, de acordo com seu condicionamento. Volumes são escritos sobre o porquê da violência humana, mas, a despeito deles, o homem permanece violento.

Então a definição não corresponde ao definido e, portanto, é de pouca valia. Vocês sabem muito bem porque são violentos. Não têm que gastar tempo tentando descobrir a causa dessa violência. Seria um desperdício. Observe a violência, perceba-a tal como ela é, sem separar o censor, sem separar a si mesmo do fato de que é violento.

Veja, é fundamental entender isso, portanto vamos aprofundar mais um pouco... Suponha que eu seja agressivo, furioso, ciumento, embrutecido, movido pela ambição, que leva à competição e assim, estou sempre me comparando com alguém. Essa comparação faz com que eu me sinta inferiorizado diante de vocês. Então ocorre uma luta, violência e todas essas coisas. E eu digo a mim mesmo: "Tenho que me livrar disso. Quero viver em paz. Apesar de o homem viver assim por milhares de anos, é preciso que haja uma mudança. Deve haver uma mudança na sociedade, por pior que ela esteja." Daí eu me lanço ao trabalho social, esquecendo, conseqüentemente de mim mesmo. Mas o trabalho social e a sociedade são eu mesmo e então percebo os truques que a mente faz. Agora vejo a mim mesmo e percebo que sou violento.

Como perceber essa violência? Como o julgador que a condena? Ou justificando-a? Como alguém incapaz de lidar com essa violência e que por isso foge dela? Como perceber a mim e a essa violência? Por favor, experimente. Você está olhando como um observador alheio à violência, que condena, justifica e diz: "Isso é bom", então faço? O observador percebe a violência, distanciado dela e a condena? Ou o observador é observado? Ele reconhece a violência e a separa de si mesmo, a fim de fazer algo a respeito, mas essa separação é apenas um dos truques de seu pensamento. O observador é o observado e é a violência. Enquanto houver essa fragmentação, esse distanciamento entre observador e observado, haverá violência.Quando eu captar, não verbalmente, mas realmente com o coração, a mente, com todo o meu ser, então o que ocorre?

Você sabe que quando observa algo, há sempre não somente a separação e o distanciamento do observado, mas também o desejo de identificar-se com o que é bonito, nobre e de não identificar-se com o que não é. Então a identificação é parte de um truque da mente que separa a si mesma, tornando-se o censor e tenta identificar- se com o que observa. Considerando que, quando o observador torna-se consciente de que é parte do que é observado, e ele é, conseqüentemente, não há imagem, representação entre observador e observado, então percebe-se que o conflito se extingue por completo.

Isso é verdadeira meditação. Não apenas um truque. Portanto, é muito importante, imperativo compreender-se profundamente, todas as reações, todos os condicionamentos, os vários temperamentos, características, tendências. Apenas testemunhar, sem o observador. Observar sem o observador. Esse é o ato de aprender e, portanto, essa é a ação (Krishnamurti aqui se refere à "ação que é completa", mencionada no quarto parágrafo do texto).

Aqui há uma dificuldade. Alguém se testemunha, alguém quer aprender sobre si mesmo e, quanto mais você descobre, quanto mais entende, maior é a liberdade. Estou usando a palavra "mais" propositalmente, "mais" representa uma avaliação comparativa. Eu quero me compreender, aprender sobre mim mesmo. Observe-se. Por favor, faça isso enquanto o orador discursa. Faça-o realmente, não deixe escapar. Pense a respeito agora. Este não é um grupo de terapia, um confessionário e todas essas coisas sem sentido, mas testemunhe-se enquanto trabalhamos juntos.

Eu quero aprender sobre mim mesmo e eu sou movimento dinâmico. Cada desejo contradiz o outro, eles estão vivos, movimentam-se, são vitais. Eu observo e durante a observação, aprendo. Com o que aprendi vou olhar para o minuto seguinte. Vou olhar e observar com o que adquiri através da observação anterior. Estarei aprendendo, isso é aprender enfim? Porque quando a mente observa com o conhecimento acumulado de suas análises, esse conhecimento obsta a percepção, impede a liberdade de olhar. Veja a dificuldade. A mente pode observar sem a acumulação? A acumulação, o que foi acumulado é o observador, é o censor, é o ente condicionado. Portanto, olhar sem o que foi acumulado.

Veja, alguém o lisonjeia dizendo quão agradável você é, quão bonito, inteligente e quão estúpido. Você pode ouvir o que ele diz, que você é estúpido ou esperto, ou muito isso ou muito aquilo, sem a bagagem acumulada? Isto é, sem o acumulado insulto ou elogio, porque se você ouve considerando a bagagem de conhecimento que já tem, então o outro se torna seu amigo ou seu inimigo. O que você ouve e como você ouve criam uma imagem e essa imagem separa e causa conflito. A imagem que você tem dos comunistas, da burguesia, dos católicos se você é protestante, e a dos católicos a respeito dos protestantes, a imagem que você tem de seu marido, de sua esposa ou do que quer que seja. Você crê, outro não crê e então, há controvérsia. Como perceber sem separar? Você pode testemunhar no instante da violência, em seu momento de ira, sem o julgador?

Perceba como isso é difícil se você não está alerta no momento, porque você já terá criado a imagem. Então observe uma nuvem, sua beleza, sua luz, observe as adoráveis colinas nesse país, a luz incidindo na água, apenas observe, sem classificar, porque a classificação, o conhecimento, a experiência, impedem a mente de observar na totalidade. Quando a mente pode olhar sem o observador, toda a cisão desaparece em si mesma. E alcançar essa compreensão é muito importante. Isso não pode ser ensinado, vem de testemunhar a si mesmo, de perceber-se todo o tempo. Sabe, é curioso você não justificar ou condenar, apenas observar o que é, não apenas o que é politicamente - toda a chicana dos políticos - mas também todos os dogmas religiosos, os sistemas e superstições, apenas percebendo-os dentro e fora de você. Essa mente que testemunha torna-se extraordinariamente sensitiva, viva, porque não está produzindo conflitos. E aí podemos abordar a questão do medo, do que é o amor, do que é a morte, mas sem compreender esse tópico fundamental, a simples averiguação, a investigação do medo permanece sem solução. E então pararei.

Talvez agora, se desejarem, vocês possam fazer perguntas a respeito de nossa conversa. Uma das coisas no que se refere a perguntas é que vocês devem perguntar corretamente, fazer a pergunta certa e isso é bem difícil. Mas devemos perguntar, não apenas a nós mesmos, mas a todos que podem pensar. E devemos duvidar, ser céticos e também saber quando não ser cético. É como um cão na coleira, você sabe quando soltá-la e quando puxá-la. Mas a maioria de nós teme até mesmo fazer perguntas, a respeito de nós mesmos primeiramente e também dos outros, porque no perguntar nós nos expomos e preferimos que essa exposição não ocorra. Essa é uma das causas do medo. Tudo isso não significa que o orador os esteja impedindo de perguntar.

Pergunta: Quando o objeto de observação se torna o observador, como você remove a contradição ou o conflito?

K: Nós jamais dissemos que o observador se torna o observado. O observador de uma árvore não se torna uma árvore. Deus não o permita! Mas, quando o observador entende sua própria natureza e estrutura, então ele observa sem separação e então há a observação sem o observador. Ficou claro? Veja, no momento em que tento identificar-me com algo, aí já há a divisão, caso contrário eu não me identificaria com outra coisa. Porque existe divisão, oposição, brecha, discussões, ódio, eu tento superar essa divisão através da identificação. Considerando que dissemos que o observador é a causa da divisão, o observador é a divisão. Há violência pelo mundo todo, crescendo mais e mais a cada dia. Enquanto um ser humano é violento e sabe disso, outro cultiva um ideal de não-violência, um ideal. Por favor, acompanhe só por um momento , se lhe interessa. Então há o fato, "o que é", o que é a violência, a violência atual da vida e há uma idéia de não-violência - o que "é" e o que "devia ser". Certo? Então há contradição. O homem violento tem um ideal de não-violência e portanto ele está o tempo todo tentando ser "não- violento", está fingindo, sendo hipócrita. Mas o fato é que ele é violento e ele confia no seu ideal para deixar a violência. E veja, há espaço entre "o que é" e "o que devia ser". Por favor, acompanhe, perceba o disparate dessa situação. Ele está sempre tentando mudar. Está gastando sua energia para transformar-se em algo que não é. Agora, quando a mente está completamente livre do ideal - e, de qualquer modo, todos os ideais são estúpidos - então você encara e a mente pode enfrentar "o que é" a violência . E aí como você percebe a violência? Você a percebe com a imagem que tem, que diz que você não deve ser violento ou a mente observa sem o observador? O que significa não identificar-se a si mesmo, a mente não se ocupando em identificar-se com a violência, mas sendo livre para olhar e, portanto findando o conflito entre o observador e o que é observado. A extinção do conflito é a extinção da violência.

Pergunta: Você está dizendo que devemos observar sem o observador?

K: Eu sei. A senhora pergunta: "Você está dizendo que devemos observar sem o observador?". Tente, faça isso. Você pode perceber uma flor, um pássaro, as águas, a beleza da região, sua esposa, seu marido, sem o observador, o que significa dizer sem as imagens que você tem deles? Faça isso e você verá quão extraordinariamente atento você tem de ser, não apenas agora, mas quando a imagem está sendo construída, então sua mente será livre para olhar. Você já olhou realmente para alguém? Não para um estranho que não é importante para você, mas você já olhou para alguém de quem você goste? Ou ame? Já? Você olhou para a pessoa através da imagem que tem dela ou dele. E a relação aconteceu entre estas duas imagens. E é por isso que há tanto antagonismo. E esta é a causa de não haver realmente nenhum relacionamento.

Isso suscita a questão: O que é o amor? Talvez este não seja o momento apropriado para falarmos disso, mas o faremos. Quando alguém diz "eu te amo", o que está amando? Veja isso. Quando você diz para o outro "eu te amo", o que você está amando? A imagem que tem dela ou dele, que pensamento brota? E o amor é o cultivo do pensamento? Quando você diz "eu amo música", o que é que você ama? O seu prazer?

Então torna-se extremamente importante entender as relações, porque toda a vida é relacionamento, viver é relacionar-se. Nós fizemos destas relações tal horror e a este horror batizamos de amor, porque nele, ocasionalmente, há ternura, talvez no sexo ou quando você vê algo lastimável. Portanto, tem-se que descobrir o que significa relacionamento, não pelo dicionário, pelo professor, não pelo analista ou por alguma organização religiosa, grande ou pequena, mas tem-se que descobrir por si mesmo, descobrir para si mesmo e em si mesmo. E você verá que o mundo inteiro está em você, você não tem que ler algo, porque você é a plenitude da humanidade. Até que você compreenda isso profundamente, o amor não existe, só o prazer existe.

Pergunta: Como alguém pode libertar-se do conhecimento acumulado de forma a ser capaz de observar?

K: Veja, se você não tivesse qualquer conhecimento acumulado, você não poderia voltar para casa, não seria capaz de reconhecer sua mulher, amigo ou marido. Por favor, perceba a dificuldade disso. Você precisa desse conhecimento para trabalhar, para falar inglês, italiano ou o que quer que seja, para ir para casa. Mas perceba como esse conhecimento destrói os relacionamentos, sendo a imagem que você construiu do outro em anos de convivência, ou mesmo num único dia - as reclamações, as feridas, a agressividade, a irritação, os prazeres, o companheirismo, o bem estar. Essa imagem, que é conhecimento, está impedindo o correto relacionamento. Então você precisa de conhecimento para seu desempenho no escritório, no laboratório, na matemática, mas esteja ciente do perigo desse conhecimento, da acumulação e da construção de imagens nas relações. Estar consciente de onde esse conhecimento é essencial e também do perigo que ele representa é ter inteligência. Tem-se que estar extraordinariamente alerta.

Pergunta: Tentando observar inteligentemente, olhando para tudo com muita clareza, descubro que é muito doloroso e a dor é muito dispersiva, isso destrói a observação.

K: Eu não compreendo porque seria doloroso. Alguém observa. Veja, senhor, eu observo a mim mesmo e vejo que sou estúpido. Por que isso seria doloroso? Porque estou me comparando com outra pessoa que é muito inteligente e, portanto essa comparação me faz sofrer, porque eu me descubro inferior?

Participante: Isso pode ser verdade, mas é doloroso.

K: Vamos continuar, senhor, veja bem. É doloroso porque eu me comparei com outra pessoa? Comparação - por que eu comparo afinal, comparar "o que é" com "o que deveria ser"? Por que eu comparo? Comparando, eu me descubro inferior e isso me faz sofrer. E, conseqüentemente, eu não examinarei, não olharei, eu apenas seguirei em frente. Eu vou fugir. Então a questão é por que eu comparo afinal?

Suponha que eu diga a mim mesmo que sou estúpido. Como eu sei que sou estúpido se não comparar? Eu só sei que sou estúpido porque me comparei com alguém que é esperto. Então a comparação me traz dor e conflito. Haveria estupidez se eu não me comparasse? Posso viver sem comparações? Queremos dizer comparação psicologicamente, porque eu tenho que fazer comparações entre duas cores, entre muitas coisas, mas interiormente, psicologicamente, qual é a necessidade de comparação entre "o que é" e "o que devia ser"? Por que deveria haver tal comparação? Não seria a comparação um desvio, uma distração de "o que é" e portanto, impedindo a compreensão deste mesmo "o que é"?

Então viva - faça isso, e você descobrirá - viva sem a comparação, que não significa presunção, convencimento. Ao contrário, a totalidade de sua mente está testemunhando tudo. Nós pensamos que compreendemos apenas através da comparação, mas você realmente entende qualquer coisa através dela? Você entende seu segundo filho, porque o compara com o primeiro? Quando compara A com B, você não destrói A? Você não quer moldá-lo a B? E essa é toda a estrutura da nossa educação, ser como alguma outra pessoa, ser o herói, ainda que você destrua, negue o herói, você copia alguém, o que é sempre comparativo.

Experimente. "Experimentar" significa tentar, testar isso na vida prática. Viva sem qualquer comparação psicológica e veja o que acontece com você.

Pergunta: Em uma sociedade autoritária como se pode fazer isso?

K: Nós dissemos que a sociedade é você, você criou a sociedade. Você louva a autoridade. Então novamente tem-se que abordar essa questão da autoridade; a autoridade da lei, que é manter-se do lado esquerdo da rodovia, pagar taxas e tudo o mais, e a liberdade da autoridade psicológica da qual você depende. Você sabe, nós, seres humanos, somos estranhos. Nós negamos a autoridade externa na política ou, lamentavelmente, neste país você cospe na face de alguém denominado policial - é terrível cuspir no rosto de qualquer pessoa - e até agora você está apegado a sua própria autoridade particular interiormente. Novamente há a contradição. Porque sempre se começa por desprezar a autoridade externa? Se você despreza a autoridade, porque você não começa desprezando e cuspindo em seu próprio autoritarismo interior! Você não começa por ele, provavelmente, porque interiormente você não está num grupo, você está só, não há ninguém para manifestar-se com você. Você está sozinho e provavelmente você tem medo de viver tão profundamente, na beleza da solitude interior. Portanto, você começa negando a autoridade do lado de fora.

Nós sempre fazemos isso. Nós todos queremos viver uma vida de simplicidade e todos começamos pelo final - uma refeição no dia e tudo o mais, simulando um show, exibicionismo como num circo, mas viver uma vida de simplicidade interiormente é muito difícil. E somente uma vida profunda e simples - no sentido de ausência do medo e da ambição - apenas a mente realmente simples pode observar e amar.

J. Krishnamurti falando em San Diego, em 5 de abril de 1970.

Krishnamurti Foundation Trust - Boletim 84 - 2003

Vida Criadora

 BOMBAIM — VII

Em todos os passados séculos, o homem sempre procurou a paz, a liberdade, um estado de bem-aventurança a que chama “Deus”. Tem-no buscado, sob diversos nomes, em diferentes períodos da história; parece, entretanto, que só pouquíssimos têm encontrado aquele estado interior de suprema paz e liberdade, o estado que o homem denominou “Deus”. Isso se tornou nos tempos modernos bem pouco importante; empregamos a palavra “Deus” com muito pouca significação. Andamos sempre a buscar um estado bem-aventurado, um estado de paz e liberdade, fora deste mundo; de várias maneiras estamos a fugir do mundo, em busca de algo que seja permanente, que nos dê asilo e salvação; que nos dê profunda paz interior. A crença ou não-crença em Deus depende de influências mentais, tradicionais, climáticas. Para encontrar aquele estado de bem-aventurança, de liberdade, de paz infinita, viva, precisamos compreender porque não somos capazes de enfrentar um fato, transformá-lo e, por conseguinte, ultrapassá-lo.

A meu ver, somos completa e totalmente responsáveis pela sociedade em que vivemos. Por toda a angústia, e confusão, e brutalidade da moderna existência somos inteiramente responsáveis, cada um de nós. E como não podemos de modo nenhum furtar-nos a essa responsabilidade, cabe-nos transformar nossa existência. A transformação do ente humano, como parte integrante da sociedade e ao mesmo tempo seu criador — é urna obrigação que cada um tem de assumir. E só poderá o ente humano operar, em si mesmo, uma mutação, uma transformação, sem fugir à sociedade, quando se libertar das idéias.

Deus é uma idéia, dependente do clima, do ambiente, da tradição em que foi criado o indivíduo. No mundo comunista, não se crê em Deus — o que é também um resultado das circunstâncias. Aqui, dependeis das vossas circunstâncias, da vida que viveis, da tradição que seguis e, por conseguinte, formastes aquela idéia (Deus). Cumpre ao indivíduo libertar-se dessas circunstâncias, da sociedade; porque só então, em liberdade, tem o ente humano a possibilidade de descobrir o que é verdadeiro. Mas, a mera fuga para uma idéia chamada “Deus” não resolve de modo nenhum o problema.
Deus — ou qualquer outro nome — é uma engenhosa invenção do homem, a qual mascaramos com incenso, rituais, várias formas de crenças e dogmas que estão a separar os homens em católicos, hindus, muçulmanos, parses, budistas. Essa, é a engenhosa estrutura erguida pelo homem. E o próprio homem, seu inventor, nela se acha aprisionado. Sem compreender o mundo atual, o mundo em que vive, esse mundo de agonias, de confusão, de sofrimentos, de ansiedades, desespero, aflição, solidão total e o sentimento da absoluta inutilidade da vida — se não compreender tudo isso, a mera aquisição de idéias e mais idéias, por mais satisfatórias que sejam, nenhum valor terá.

Muito importa compreender porque criamos ou formulamos uma idéia. Por que é que a mente formula uma idéia? Por “formulação” entendo toda estrutura de idéias filosóficas ou racionalistas, humanistas ou materialistas. Idéia é pensamento organizado; e na base desse pensamento organizado, dessa crença, dessa idéia, vive o homem. É isso o que todos fazemos, religiosos ou não-religiosos. Considero importante averiguar por que razão os seres humanos, através das idades, têm dado tão exagerada importância às idéias. Por que é que formulamos idéias? Por que não nos é possível agir sem a idéia — agir sempre? Se nos observamos, podemos verificar que formamos idéias quando não há atenção. Quando estamos ativos, totalmente — e isso requer completa atenção — não há idéia nenhuma; estamos simplesmente em atividade.

Deixai-me sugerir-vos que, nesta tarde, vos limiteis a escutar. Nada aceiteis nem rejeiteis; não levanteis barreiras ao escutar, com vossos pensamentos, crenças, contradições, etc. Escutai, simplesmente. Não pretendemos convencer-nos de coisa alguma. Não queremos de modo nenhum forçar-vos a aceitar uma dada idéia, padrão ou maneira de agir. Estamos apenas expondo fatos, sem levar em conta se deles gostais ou não gostais; o importante é que se aprenda a respeito do fato. Aprender significa escutar totalmente, observar completamente. Se escutais o barulho dos corvos, não o escuteis de mistura com vossos próprios barulhos, vossos temores, pensamentos, vossas idéias, vossas opiniões. Vereis então que não haverá idéia nenhuma, que estareis escutando realmente.

Desse mesmo modo deveis escutar-me nesta tarde. Escutai, simplesmente, tanto consciente como inconscientemente (o que talvez seja muito mais importante). Quase todos nós estamos sujeitos a influências. Podemos rejeitar as influências conscientes, porém muito mais difícil é rejeitar as influências inconscientes. Quando se escuta da maneira a que nos referimos, esse escutar já não é consciente nem inconsciente. Está-se então completamente atento. E a atenção não é coisa minha nem vossa; não é nacionalista; não é religiosa; não é divisível. Por conseguinte, quando estais escutando completamente, não há idéia: há só o estado de escutar. Em geral é o que fazemos quando estamos escutando (ou olhando) algo que tem certa beleza: boa música, o espetáculo de uma montanha, da luz crepuscular, seus reflexos na água ou numa nuvem; não há então, nesse estado de atenção, nesse estado de escutar, de ver, idéia nenhuma.

Se puderdes escutar dessa maneira, com essa facilidade, essa atenção sem esforço, talvez percebais quanto é importante a questão da idéia e da ação. Como já disse, de ordinário formulamos idéias quando há desatenção. Criamos, ou concebemos idéias, quando essas idéias nos dão segurança, um sentimento de certeza. Esse desejo de certeza, esse desejo de segurança gera idéias; nessas idéias buscamos refúgio e, por isso, não há ação. E, ainda, criamos e formulamos idéias quando não compreendemos completamente o que é (o fato). As idéias, por conseguinte, se nos tornam muito mais importantes do que o fato.

Para se descobrir realmente o fato — se há Deus, se não há Deus — as idéias nada significam. Não importa se credes ou não credes, se sois teísta ou ateísta. Isso nada exprime. Para o descobrimento, necessitais de toda a vossa energia — vossa energia completa, total; energia sem mácula, sem arranhadura; sem tendências nem corrupção. Assim, para se compreender, para se descobrir se existe essa Realidade que o homem anda buscando há milhões de anos, necessita-se de energia — energia integral e completa, incontaminada. E para criar essa energia, precisamos compreender o esforço.

A maioria de nós passa a vida a fazer esforços, a lutar; e o esforço, a luta, é uma dissipação, um desperdício de energia. O homem, em toda a sua existência histórica, sempre disse que, para encontrar a Realidade ou Deus — ou o nome que se lhe quiser dar — o indivíduo tem de ser celibatário — isto é, fazer um voto de castidade e passar o resto da vida a recalcar-se, a controlar-se, a batalhar consigo mesmo, para se manter fiel a esse voto. Quanto desperdício de energia! Também é desperdício de energia soltar as rédeas ao desejo. E isto é mais significativo quando reprimis o desejo. O esforço despendido no recalcar, no controlar, no repelir o desejo, deforma a mente e, em virtude dessa deformação, o indivíduo adquire uma certa austeridade que se torna rude. Escutai, por favor! Observai esse fato em vós mesmo e nas pessoas que vos cercam. Observai esse desperdício de energia, essa batalha. Não é o sexo, em seus diferentes aspectos, nem o próprio ato sexual, porém os ideais, as imagens, o prazer, e o constante pensar neles, que constituem o desperdício de energia. Assim, a maioria das pessoas desperdiça energia ou pela negação do desejo ou mediante o voto de castidade e o constante pensar nele.

E, como já dissemos, cada homem é responsável — vós eu somos os responsáveis pelas condições da sociedade em que vivemos. Nós, e não os políticos — pois fomos nós que os fizemos ser o que são: desonestos, vangloriosos, ambiciosos de posição e de prestígio; é precisamente o que somos em nossa vida diária. Somos os responsáveis pela sociedade. A estrutura psicológica da sociedade é muito mais importante do que o seu aspecto orgânico; está ela baseada na avidez, na inveja, na ânsia de aquisição, na competição, na ambição, no medo, na incessante exigência de segurança de todo ente humano — segurança em todas as suas relações: com a propriedade, as pessoas, as idéias. É essa a estrutura social que criamos. E a sociedade, psicologicamente, impõe essa estrutura a cada um de nós. Ora, a avidez, a inveja, a ambição, a competição, constituem desperdício de energia, porquanto encerram sempre conflito; conflito interminável — como, por exemplo, o de uma pessoa que é ciumenta.

O ciúme é uma idéia. A idéia e o fato são duas coisas diferentes. Tende a bondade de escutar! Se procuramos observar o sentimento chamado “ciúme” através da idéia respectiva, não podemos entrar diretamente em contato com o sentimento; estamos a observá-lo através da memória de uma certa palavra que fixamos em nossa mente com o significado de “ciúme”. O ciúme se torna uma idéia e essa idéia nos impede de entrar diretamente em contato com o sentimento que se chama “ciúme”. Isso é também um fato. Assim, a fórmula, a idéia nos veda o contato direto com o sentimento; portanto, a idéia faz--nos dissipar energia.

Visto que somos nós os responsáveis pela aflição, pela pobreza, pelas guerras, pela absoluta falta de paz que se observa no mundo — visto isso, o homem religioso não busca Deus, porém o que o interessa é a transformação da sociedade, ou seja, de si próprio. O homem religioso não é o que pratica rituais diversos, que segue tradições, que vive numa cultura passada morta, a interpretar incessantemente o Gita ou a Bíblia, a entoar intermináveis litanias, o que vive como sanyasi; esse não é um homem religioso, porque está a fugir dos fatos. Religioso é o homem que tem o máximo interesse em compreender a sociedade, ou seja a si próprio, pois não é uma entidade separada da sociedade. O operar em si próprio uma mutação completa, total, significa a total cessação da inveja, da avidez, da ambição. Aquele homem, por conseguinte, não depende das circunstâncias, embora seja resultado das circunstâncias — dos alimentos que toma, dos livros que lê, dos cinemas que freqüenta, dos dogmas, crenças, ritos religiosos, etc. etc. O homem religioso é um ente responsável e, portanto, deve compreender a si mesmo, como produto da sociedade que ele próprio criou. Por conseguinte, para encontrar a Realidade deve ele começar aqui, e não num templo, nem numa imagem — não importa se esculpida pela mão ou pela mente. Do contrário, como poderá descobrir algo total mente novo, um novo estado?

A paz não é simplesmente o predomínio da Lei ou da soberania. É coisa bem diversa: um estado interior que de modo nenhum pode ser estabelecido pela alteração das circunstâncias externas, conquanto seja necessária a mudança das circunstâncias externas. Mas, a paz deve nascer em nosso interior, para que se possa criar um mundo diferente. E a criação de um mundo diferente exige uma tremenda soma de energia, energia que ora está sendo dissipada num conflito constante. Por conseguinte, temos de compreender esse conflito.

A causa primária do conflito é a fuga — fuga através da idéia. Observai a vós mesmos; vede como, em vez de fazer frente, digamos, ao ciúme, à inveja, em vez de entrar diretamente em contato com tal sentimento, dizeis: “Como livrar-me disso?” Que devo fazer? Que métodos devo seguir para não ser ciumento?” — Tudo isso são meras idéias e, por conseguinte, uma fuga ao fato de serdes ciumento, um afastamento desse fato. A fuga aos fatos através das idéias não só dissipa a energia, mas também impede o contato direto com o fato. Ora, deveis dar toda a atenção ao fato, em vez de procurardes observá-lo através de uma idéia, pois, como já dissemos, a idéia impede a atenção. Se observardes, se vos tornardes cônscio do sentimento chamado “ciúme”, e lhe derdes toda a atenção, sem a interferência de idéias, não só estareis diretamente em contato com o sentimento, mas também, em virtude da atenção que lhe dispensastes, ele deixará de existir; haverá então maior energia para enfrentardes o próximo incidente, a próxima emoção ou sentimento.

Para descobrir, para realizar uma mutação completa, necessitais de energia — não a energia criada pelo recalcamento, porém aquela que vos vem quando não estais a fugir através de idéias ou pela repressão. Com efeito, se a esse respeito refletimos, percebemos que só conhecemos duas maneiras de enfrentar a vida: ou dela fugindo completamente (o que leva à insanidade ou neurose), ou recalcando tudo o que não compreendemos. Só essas duas maneiras conhecemos.

Recalcar não é apenas abafar um sentimento ou sensação; toda explicação intelectual ou racionalização é também uma espécie de recalcamento. Observai-vos e vereis como o que se está dizendo é real. E necessário, pois, que não fujais. Esta é uma das coisas mais importantes que cumpre compreender: que não devemos fugir. É-nos dificílimo compreendê-la, porque estamos acostumados a fugir através das palavras. Fugimos ao fato, não só indo ao templo etc., mas também através de palavras, de argumentos, opiniões, juízos, avaliações... de uma infinidade de maneiras. Consideremos, por exemplo, um indivíduo insensível. Ser insensível é um fato. Se ele se torna cônscio de ser insensível, a maneira de fugir ao fato é procurar tornar-se sensível. Mas uma pessoa só pode tornar-se sensível se aplicar toda a atenção ao estado mental de insensibilidade.

Assim, necessitamos de energia - energia não resultante de contradição ou tensão, porém gerada sem esforço algum. Compreendei, por favor, este fato muito simples e real: que desperdiçamos nossa energia no esforço, e esse desperdício nos impede o direto contato com o fato. Quando faço um esforço enorme para escutar, toda a minha energia se consome nesse esforço, de modo que não posso escutar realmente. Quando me encolerizo ou impaciento, minha energia se consome toda no esforço que faço para reprimir a cólera. Mas, se presto toda a atenção à cólera, ou outro estado mental, em vez de fugir através de palavras, da condenação, do julgamento — então, nesse estado de atenção, liberto-me da coisa chamada “cólera”. Por conseguinte, aquela atenção que é a reunião de toda a energia, aquela atenção não é esforço. Religiosa é apenas a mente que está livre do esforço e, por conseguinte, só ela pode descobrir se há ou se não há Deus.

Outro fator: somos entes humanos imitadores. Nada temos de original. Somos o resultado do tempo, de muitos milhares de dias passados. Desde a infância, fomos educados para imitar, copiar, obedecer, repetir a tradição, seguir as Escrituras, obedecer à autoridade. Não nos referimos à autoridade da lei, que deve ser obedecida, porém à autoridade das Escrituras, à autoridade espiritual, ao padrão, à fórmula, espirituais. Obedecemos e imitamos.

Quando imitais — ou seja, ao vos ajustardes interiormente a um padrão imposto pela sociedade ou por vós mesmo, baseado em vossa própria experiência — esse ajustamento, essa imitação, essa obediência, não têm a claridade da energia. Vós imitais, vos ajustais, obedeceis à autoridade, porque tendes medo. O homem que compreende, que vê claramente, que está muito atento, não teme; por conseguinte, não tem razão nenhuma para imitar. Ele é “ele próprio” (o que quer que “ele próprio” seja) em todos os momentos.

Assim, a imitação, o ajustamento a um padrão religioso ou, em vez de um padrão religioso, à própria experiência, é sempre conseqüência do medo. E o homem que tem medo — seja de Deus, seja da sociedade, seja de si próprio — não é um ente religioso. Só é livre o homem que não teme. Portanto, temos de entrar em contato com o medo, diretamente e não através da idéia relativa ao medo.

E, ainda, a reunião daquela energia imaculada, impoluta, vital, só é possível pelo rejeitar. Não sei se já notastes que, quando rejeitamos uma coisa, não em reação a essa coisa, essa própria rejeição cria energia. Quando rejeitais, por exemplo, a ambição, não por desejardes tornar-vos espiritual, por desejardes viver em paz, por desejardes Deus, por desejardes o que quer que seja, porém por causa dela própria (da ambição) — quando percebeis a natureza perniciosa do conflito que a ambição engendra, e a rejeitais, esse próprio ato de rejeição é energia. Não sei se já rejeitastes alguma coisa. Ao renunciardes a um certo prazer — por exemplo, ao prazer de fumar, não por vos ter dito o médico que fumar é nocivo aos pulmões, ou por não terdes dinheiro para poderdes fumar uma infinidade de cigarros por dia, ou por desejardes libertar-vos de um hábito que vos escraviza, porém porque percebeis quanto ele é absurdo — quando rejeitais esse hábito, sem ser em reação a ele, esse próprio rejeitar traz consigo energia. De modo idêntico, quando rejeitais a sociedade, mas não fugindo dela, como o sanyasi, o monge, os indivíduos chamados “religiosos” — quando rejeitais totalmente a estrutura psicológica da sociedade, dessa rejeição vos vem uma formidável energia. O próprio ato de rejeitar é energia.

Bem; já vistes ou compreendestes por vós mesmo, ou ouvistes falar nesta tarde sobre a natureza do conflito, do esforço, que dissipam energia; e compreendestes ou percebestes, não verbal porém realmente, o significado dessa energia que não resulta de conflito, porém nasce quando a mente compreendeu todas as suas fugas — recalcamento, conflito, imitação, medo. Daí podeis então partir, começar a descobrir por vós mesmo o que é real, não como um meio de fuga, como meio de evitar vossas responsabilidades neste mundo. Não tereis possibilidade de compreender o que é real, o que é bom — se existe “bom” — por meio de crença, porém, tão-só, se vos transformardes em vossas relações com a propriedade, as pessoas, as idéias e dessa maneira vos tornardes livre da sociedade. Só então, e não pela fuga ou recalcamento, tereis a energia necessária ao descobrimento.

Se chegastes até este ponto, deveis agora tratar de descobrir a natureza da disciplina, da austeridade segundo a tradição e da austeridade criada pela compreensão. Há um “processo” natural de austeridade, um “processo” natural de disciplina, sem rigores, sem ajustamento, sem mera imitação de um dado hábito agradável. Desse processo resulta uma inteligência sumamente sensível. Sem essa sensibilidade, não conhecereis a beleza.

Deve o indivíduo de mentalidade religiosa tornar-se cônscio desse extraordinário estado de sensibilidade e beleza. O indivíduo religioso a que nos referimos difere inteiramente do religioso ortodoxo. Porque, para este último, a beleza não existe: é um homem totalmente alheio ao mundo em que vive: à beleza do mundo, à beleza da terra, à beleza da colina, à beleza de uma árvore, à beleza de um rosto sorridente. Para ele, a beleza é tentação; é a mulher, que ele tem de evitar a todo custo, a fim de encontrar Deus. Não é um indivíduo religioso, esse homem, porque insensível ao mundo — a sua beleza e fealdade. Não se pode ser sensível só à beleza; deve-se ser sensível também ao esqualor, à sordidez, à desorganizada mente humana. Sensibilidade significa “sensibilidade em todos os sentidos”, e não num único sentido. A mente que não está cônscia da beleza em si própria manifestada, não pode alcançar mais longe. Essa sensibilidade é de todo em todo necessária.

E essa mente — que é então a verdadeira mente religiosa — pode compreender a natureza da morte. Pois, sem a compreensão da morte, não há compreensão do amor. A morte não é o fim da vida. Não é uma conseqüência de doença, senilidade ou acidente. A morte é uma coisa com que temos de viver todos os dias, morrendo para tudo o que conhecemos. Se não conhecerdes a morte, jamais conhecereis o amor.

O amor não é memória; também não é símbolo, imagem, idéia; não é o amor um ato social; o amor não é uma virtude. Havendo amor, há virtude; não se precisa lutar para se tornar virtuoso. Se não conheceis o amor, é porque ainda não compreendestes o que é morrer — morrer para vossa experiência, morrer para vossos prazeres, morrer para qualquer memória oculta, inconsciente. E, quando tudo trouxerdes à luz e morrerdes a cada minuto — para vossa casa, vossas lembranças, vossos prazeres morrerdes voluntária e facilmente, sem esforço, sabereis então o que é o amor.

E, também, sem a beleza, sem a compreensão da morte, sem o amor, jamais encontrareis a Realidade; podeis fazer o que quiserdes — ir aos templos, seguir todos os gurus criados pelos homens ininteligentes — por esse caminho jamais encontrareis a Realidade. Essa Realidade é criação.

Criação não significa gerar filhos, pintar quadros, escrever versos ou preparar pratos apetitosos: nada disso é criação, porém apenas produto de um certo talento ou dom, ou de uma técnica aprendida. Invenção não é criação. Só se torna possível a criação quando estamos mortos para o tempo, isto é, quando não há mais amanhã. Só pode haver criação quando há uma completa concentração de energia, sem movimento algum, interno ou externo.

Prestai atenção a isto, por favor. Se o compreenderdes ou não — não importa. Nossa vida é tão banal, tão aflitiva; há tanto desespero, tanto sofrimento! Há dois milhões de anos que vivemos, e nada existe de novo. Só conhecemos repetição, tédio e a total futilidade de cada ato que praticamos. Para ser criada uma mente nova, um estado de inocência, de juvenilidade, necessita-se daquela sensibilidade, daquela morte e amor, e daquela criação. Aquela criação só pode verificar-se quando há a energia completa, sem movimento e sem direção.

Vede, sempre que tem de enfrentar um problema, a mente procura uma saída; esforça-se para o resolver, superar, contornar, ultrapassar ou transcender; fica a fazer alguma coisa com o problema, a mover-se, exterior ou interiormente. Se não se movesse em direção alguma; se nenhum movimento houvesse, nem interno nem externo, porém apenas o problema — ocorreria então uma “explosão” no problema. Experimentai-o, uma vez, e vereis a realidade do que se está dizendo — realidade que não requer crença, nem explicação, nem aceitação sem discussão. Aqui, não há autoridade alguma.

Assim, quando há aquela concentração de energia, não resultante de esforço, e essa energia não está em movimento em direção alguma, nesse momento há criação. E essa criação é a Verdade, Deus — o nome que quiserdes (o nome nada significa). E aquela “explosão”, aquela criação, é paz; não é necessário pro curar a paz. Aquela criação é beleza. Aquela criação é amor.

Só a mente religiosa pode promover a ordem neste mundo cheio de confusão e sofrimento. E vossa obrigação — vossa e de ninguém mais — é promover, enquanto estais vivendo neste mundo, aquela vida criadora. Só essa é a mente religiosa, a mente bem-aventurada.

Krishnamurti - 3 de março de 1965.
Do livro: A Suprema Realização – Ed. Cultrix – páginas 162 à 172


Participe do nosso grupo no Facebook

Participe do nosso grupo no Facebook
Grupo Jiddu Krishnamurti
Related Posts with Thumbnails

Vídeos para nossa luz interior

This div will be replaced