terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O Florescer Interior

(Copyright “Krishnamurti Foundation Trust Ltd.”).
Tradução de Marina Brandão Machado

Não é de hoje que Krishnamurti se preocupa com os problemas da educação e, assim, em 1960 houve por bem fundar em Brockwood Park, Inglaterra, com substancioso auxílio de donativos, uma escola residencial.

Brockwood Park, Bramden, Hampshire, acha-se a meio caminho entre Winchester e Petersfield, cerca de dez milhas de cada um desses lugares. Está situado, sessenta e cinco milhas a sudoeste de Londres, num belíssimo distrito rural ainda incontaminado, com ondulantes colinas e bosques. A propriedade consta de trinta e cinco acres ao todo, inclusive parque e jardim, e de uma área de quatro acres, toda plantada de redodendros, azáleas, sequóias californianas e outras árvores típicas, com lindas clareiras, ideais para reuniões ao ar livre.

Uma alameda de faias conduz da rodovia Petersfield-Winchester à entrada do Parque, o qual é completamente murado. A mansão é um edifício longo e baixo, pintado de branco, que data, em sua maior parte, do século dezoito. Rodeada de extenso relvado, oferece, ao sul maravilhosa paisagem.

Esse colégio, onde Krishnamurti permanece mais tempo durante o ano, e como que é o seu próprio lar, constitui um centro educativo para meninos e meninas que concluem o curso primário, e de idades superiores, e um lugar onde se reúnem pessoas responsáveis, livres, educadas e ardorosas, para descobrir por si próprias o que significa viver inteligentemente e saírem depois para o mundo, transformando-se a si mesmas e a outras criaturas.

Foi nesse educandário (Escola Parque de Brockwood) que Krishnamurti manteve curiosa palestra com alunos e professores sobre o tema O FLORESCER INTERIOR, constante do folheto recentemente editado com este mesmo título – “Inward Flowering”, cuja tradução, para alegria dos nossos leitores, damos a seguir:

Creio que nesta manhã poderíamos conversar sobre se estamos realmente, aqui, nesta comunidade, florescendo, crescendo interiormente. Ou será que apenas seguimos uma vereda estreita e rotineira, para só mais tarde descobrirmos que jamais florescemos completamente e passarmos então a lamentá-lo pelo resto de nossa vida? Não poderíamos averiguá-lo?

Perguntaríamos, não, apenas como alunos de Brockwood, mas também como educadores, se estamos crescendo em nosso interior e talvez exteriormente (na verdade são crescimentos relacionados), se estamos crescendo, não no sentido físico, porém florescendo psicologicamente.

Uso o termo florescer para exprimir sem estorvo, sem bloqueio, sem nenhum óbice ao desenvolvimento interior. A maioria de nós raramente floresce, cresce, desabrocha. Algo acontece no decorrer da vida que nos frustra, nos embota, de modo que ficamos sem qualquer apoio íntimo.

Talvez seja porque o mundo à nossa volta exige que nos tornemos especialistas - médicos, cientistas, arqueólogos, filósofos, e assim por diante; talvez seja esta uma das razões por que, psicologicamente, não parecemos crescer... Imensamente.

Eis um dos assuntos que hoje aqui estudaremos. Se vivemos juntos nesta pequena comunidade de mestres e alunos, que nos impede de florescer? Estaremos tão marcadamente condicionados - pela sociedade, pelos nossos pais, pela nossa religião e até pelo saber? Estarão todas essas influências ambientais obstando, bloqueando esse desabrochar? Compreendem minha pergunta? Não compreendem?

Vejam bem! Se tenho alguma crença, minha mente, meu cérebro, toda minha estrutura psicológica já está condicionada. Dizem meus pais que sou católico. Vou à igreja aos domingos; assisto à missa, com toda sua beleza, incenso, aroma; há pessoas com vestidos e chapéus novos, observando-se umas às outras; lá está o sacerdote com sua entonação própria - tudo isso condiciona a mente, jamais surgindo o florescer. Sigo uma trilha, uma vereda, dentro de um determinado sistema, e é justamente essa trilha, esse sistema, essa atividade que limita - e desse modo jamais desabrochamos. Compreendem agora minha pergunta? Estará isso acontecendo aqui?

Estaremos tão fundamente condicionados pelos inúmeros acidentes, incidentes, pressões e assertivas - dos pais, da sociedade e de tudo o mais, a ponto de não podermos fluir facilmente, com alegria, de não podermos crescer? Se é assim, Brockwood então não nos ajuda a nos descondicionarmos? Atinam com meu ponto de vista? Se não ajuda, qual a sua valia? Qual a importância de Brockwood se vocês daqui saírem como milhões de pessoas que jamais sentiram, perquiriram, ou viveram essa enorme sensação de interiorização, de fluir, de florescer? Alcançam agora o que quero dizer?

Estudante - Como sabe, lá fora as pressões são imensas.

KRISHNAMURTI - Dizem vocês que há pressões demais. Pensem nisso com vagar, reflitam sobre o assunto. Se não houvesse pressões, fariam alguma coisa? Prestem atenção. Eu os estou pressionando, percebem? Na verdade, não os estou encurralando e, sim, mostrando-lhes algo - mas, para os ouvintes, isso também é pressionar, porque vocês não querem ver. Desejam gozar a vida, cada um acha ser uma pessoa especial, quer fazer algo diferente e por isso negligencia tudo o mais. Se não recebessem pressão de nenhuma espécie, seriam pessoas ativas? Ou se tornariam a cada dia mais preguiçosos, indiferentes, acabando por definhar completamente? Embora tenham marido ou mulher, filhos, casa, emprego, etc., haverá alguma vez, da parte de cada qual, um florescer íntimo real?

Assim, estarão recebendo aqui o tipo correto de pressionamento? Compreendem? O tipo correto, não o pressionar compulsivo, o pressionar para a imitação, para o sucesso, para galgar os degraus, a fim de tornar-se alguém, mas o pressionar que propicia o interno crescimento. Se não houver o desabrochar, o homem vive uma vida comum e mundana, morrendo aos 60 ou 80 anos. É essa a vida habitual da maioria das pessoas já repararam nisso? Quando o observam, qual é sua reação, que dizem sobre tal fato?

Estudante - Terá algum sentido viver dessa maneira?

KRISHNAMURTI - Escute, meu amigo. À medida que os indivíduos se tornam mais idosos, descobrem haver pouca gente feliz; a pressão é enorme, a competição, excessiva; milhares e milhares de pessoas procuram empregos; a terra está superpovoada. Tudo no mundo a cada dia se torna mais perigoso. Estão compreendendo? E, ao verificarem isso, como reagem?

Estudante - Vejo meus pais envelhecendo, a correrem de um lado para outro sem qualquer necessidade, porque temem enfrentar esse quadro.

KRISHNAMURTI - Diz um dos presentes que a maioria das pessoas procura segurança física e talvez também segurança psicológica. Será que a segurança, biológica ou psicológica, lhes dá a sensação de florescimento? Compreendem? Emprego a palavra “florescer” no sentido de crescimento - como uma flor cresce na terra sem nenhum empecilho. Estarão vocês procurando segurança, tanto externa como internamente? Dependem psicologicamente de alguém, de alguma crença, de identificar-se com uma nação, com um grupo, ou aprendem algum assunto técnico e estudam com tal entusiasmo, que também esse estudo lhes dá segurança interior? Buscam segurança psicológica em alguma espécie de conhecimento?

Interroguem-se a si próprios para descobrirem o que se passa. Cumpre investigar se existe o que se chama segurança psicológica. Compreendem o que, quero dizer? Reparem - dependo de meu marido ou de minha mulher por diversas, muitas razões - conforto, sexo, encorajamento; quando me sinto solitário, deprimido; e para ter alguém que me diga: “Está tudo bem. É assim mesmo que deve agir”; alguém que me incentive com dizer que sou bastante simpático; assim, sinto-me cada vez mais amparado e, por fim, mais apegado, a cada dia mais dependente dele ou dela. Nesse convívio me vejo seguro, mas haverá, nesse tipo de relacionamento, efetiva segurança?

Estudante - É um relacionamento fragílimo.

KRISHNAMURTI - Sim, mas haverá segurança permanente e qualquer tipo de relacionamentos? Vocês algum dia se sentirão apaixonados - não importa o significado dessas palavras - e durante alguns anos estarão presos um ao outro, dependerão um do outro de várias maneiras, tanto biológica como psicologicamente, e nessa convivência buscarão o tempo todo a continuidade desse sentimento, não é mesmo? Pelo menos, é o que desejam. Porém, antes de se amarrarem completamente nesse nó chamado “apaixonar-se”, conviria verificar se de fato há segurança em qualquer espécie de relação entre os seres humanos - o que não significa solidão desesperada, deprimente.

As criaturas sentem-se solitárias, infelizes, quando sós, incapazes, temerosas de não saberem viver sozinhas, e, aos poucos, começam a prender-se a outrem ou a alguma coisa, porque elas se amedrontam. Que acontece então? Quando vocês estão ligados, sentem-se igualmente assustados, porque podem perder o objeto de sua ligação. Essa pessoa pode afastar-se, passando a amar outra. Assim, julgo de grande relevância esclarecermos se existe segurança nas relações humanas.

Que é o amor no relacionamento? Estão prestando atenção? Dá o amor, nas relações, um sentido de prazer real, de segurança? Se acham que não há segurança no relacionamento, então devem investigar se existe segurança no amor. Compreenderam? Não, não compreenderam? Muito bem, consideremos de novo o problema.

Ligo-me a você, “amo” você, desejo casar-me, ter filhos. Mas, será esse um convívio estável? Ou será frágil, duvidoso, incerto? Desejaria fosse duradouro, mas na verdade é bem incerto. Correto? Eis um dos pontos do relacionamento. Todavia, nós dizemos haver amor nas relações. Ora, no amor existe segurança? Que entendemos por amor? Vamos aprofundar bem esse aspecto?

Voltemos, pois, à minha primeira pergunta: quero saber se é possível florir, crescer e viver integralmente - digamos: desfrutar a vida! Isto é o que realmente desejamos descobrir. Ou será que ela é sempre deprimente, solitária, desgraçada, violenta, sem sentido? Está claro? Eis a primeira coisa que nos cabe desvendar. E estará Brockwood colaborando para o desabrochar de cada um de vocês?

Aqui existe convívio de uns com os outros - como existe em toda parte. É inevitável. Vêem-se uns aos outros diariamente. E nessa convivência, alguém pode enamorar-se de outrem. É natural. E você se apega àquela pessoa. Quando alguém se prende a outro, deseja que o apego se prolongue, dure indefinidamente - até que, afinal, ambos desmoronam. Cumpre, então, descobrir se existe nesse relacionamento algo de permanente. Será tal relacionamento perdurável? Vocês acham que não é. E como sabem não ser ele permanente?

Podem casar-se em igreja ou cartório, mas haverá nessa convivência uma constante e real liberdade, sem qualquer conflito, disputas, isolamento, dependências, etc.? Vocês dizem “Não”, porém por que razão o fazem? Quero saber porque dizem isto. Dirão o mesmo quando estiverem apaixonados e casados, durante o primeiro ano? Dirão não haver segurança nesse período? Ou somente depois de alguns anos acrescentarão: “Oh! meu Deus! Não há segurança nenhuma!?”

Impende igualmente verificar se nessas relações de insegurança, incerteza com o temor sempre presente, o tédio, momentos de felicidade, a rotina - vendo constantemente o mesmo semblante durante dez, vinte, cinqüenta anos se nessa convivência poderão desabrochar e crescer. Serão vocês entes completos, de extraordinária beleza? Precisam também descobrir, quando se acham “apaixonados” - expressão muito usada, gasta, degradada - se, com esse sentimento, estão a florescer.

Estudante - Ao nos relacionarmos com alguém, parece que não damos tempo suficiente para investigar se há segurança, ou não, nesse relacionamento; talvez seja porque o relacionamento se faz muito mais entre duas “imagens”.

KRISHNAMURTI - Está querendo dizer que temos imagens um do outro - como um homem e uma mulher - e delas tiramos conclusões? Mas nós desejamos que tais conclusões perdurem.

Estudante - É tão superficial esse relacionamento que não há tempo para uma investigação da realidade, e, assim, a imagem fica de lado.

KRISHNAMURTI - Estamos falando sobre se, antes de tudo, percebemos o quanto importa o florescer - o valor, a verdade, a realidade, a beleza do florescer. E as relações, como ora existem entre duas pessoas, propiciam o florescimento? Este é o ponto. Dizemos igualmente amarmo-nos uns aos outros. Contribuirá esse amor para o desabrochar da mente humana, do coração, das qualidades do homem? Estão compreendendo?

Perguntamos também se a estada aqui, em Brockwood, os ajuda a crescer, a florescer - não do ponto de vista tecnológico, não apenas para se tornarem especialistas nisso ou naquilo, e sim interiormente, psicologicamente, dentro de vocês. Percebem nada haver aqui que os bloqueie, os estorve; que não são neuróticos, desequilibrados e, sim, entes humanos completos, que se desenvolvem e desabrocham?

Vejamos agora o que é o amor. Que pensam sobre isso? Estamos aqui diante de um problema. Vocês amam seus pais e seus pais os amam. Pelo menos, é o que eles e vocês dizem. Pisamos agora em terreno perigoso! Não é mesmo? Minha indagação é: Eles de fato os amam?

Se seus pais os amam, cumpre-lhes agir, desde o momento de seu nascimento, de modo que não os condicionem e, assim, possam florescer, porque vocês são entes humanos, vocês constituem o mundo. Pois, se não florirem, serão presa do mundo, e destruirão outras criaturas. Se seus pais os amassem, procurariam educá-los de maneira apropriada, não do ponto de vista técnico, meramente para a obtenção de um trabalho - mas interiormente, para que não venham a ter conflitos. Tudo isso está implícito no dizer “amo meu filho, ou minha filha”. Compreendem o significado destas palavras? Não desejo que ele se torne um empresário da mais alta categoria, capaz de fazer fortuna. Para quê? Nem um extraordinário especialista - embora, aqui ou ali, possa ser útil à humanidade, seja construindo melhores pontes, seja tornando-se bom médico, ou outra coisa qualquer.

Deste modo, que é o amor? Não importa averiguar? Não desejam mesmo descobri-lo? Certamente, já observaram os que os rodeiam, pais, avós, o mundo em derredor. Todos usam a palavra “amor”. E, no entanto, discutem, são competitivos, querem destruir-se uns aos outros. Isso será amor? Então, para vocês, que significa amar?

Estudante - É difícil explicar.

KRISHNAMURTI - Como o sentem? Que entendem por amor? Sei que todos empregam a palavra “amor” - e quanto! Mas, que exprime ela? Conhecem a Palavra “ódio”, o significado desse termo. E mesmo o sentimento que provoca - antagonismo, raiva, inveja - tudo isso faz parte do ódio, não é verdade? Ele implica também competição. Não ignoram, pois, o que significa odiar alguém. E são capazes de explicá-lo perfeitamente. Ora, é o amor o oposto do ódio?

Estudante - Os sentimentos são contraditórios.

KRISHNAMURTI - Porém, podem coexistir, na mente e no coração, o amor e o ódio? Fixem nisso! Sentem ambos, amor e ódio, ao mesmo tempo? Ou não simultaneamente? O amor fica em um canto e o ódio noutro? Detesta-se alguém e ama-se outrem. É isso? Mas, se vocês têm amor, poderão odiar seja quem for? São capazes de matar gente, atirar bombas, e cometer as outras mais violências que estão ocorrendo no mundo?

Voltemos à primeira questão. Será que sentimos, educadores e educandos, a enorme relevância, a necessidade de cada ser humano crescer e florescer, não apenas fisicamente, mas com amadurecimento profundo, interior? Se não se percebe, onde está o valor de tudo isso? Que vale estarem sendo educados, instruídos? Ser aprovado em exames e obter um grau, conseguir trabalho, e, havendo sorte, instalar uma casa - terá isso grande significado, ajudará cada ser humano, cada um de nós, a desabrochar?

Se vocês fossem meu filho ou minha filha, essa seria a primeira coisa sobre a qual lhes falaria. Eu diria: vejam, olhem à sua volta, seus colegas de escola, seus vizinhos - não conforme o que gostam ou não gostam, mas olhem só ofato. Observem o que ora acontece, sem qualquer distorção: desentendimentos e infelicidades conjugais, luta infinita - ninguém ignora o que está ocorrendo. E o rapaz e a moça - também eles têm problemas. Vejam a divisão das pessoas em raças, grupos nacionais, religiosos, científicos, profissionais, artísticos. Está tudo dilacerado. Notam isso? Este é outro ponto: Quem dilacerou o mundo? Foram os homens. Foi o pensamento. O pensamento que diz: “Eu sou católico”, “Eu sou judeu”, “Eu sou árabe”, “Eu sou muçulmano”, “Eu sou cristão”. O pensar criou todas essas divisões. Assim, o pensamento, por sua própria natureza, sua própria ação, é divisionista, causa fragmentação. Percebem como o pensamento acarreta divisão, não somente dentro de vocês, mas também externamente? É isso muito difícil?

Volto a perguntar: percebem realmente o fato de que o pensamento, por sua própria natureza e atividade, tem de causar fragmentação? Se, dizem que sim, vêem isso como um fato, ou apenas como uma idéia? De que se trata? De uma idéia ou de um fato?

Estudante - De uma idéia.

KRISHNAMURTI - Porque o vêem como uma idéia? Digo-lhes: Olhem em redor de vocês as guerras, o terror, os bombardeios, a violência, e nos lares os constantes atritos na convivência - a sociedade competitiva, a sociedade comercial - vêem realmente tudo isso, tal como estão vendo esta mesa? Ou trata-se de uma abstração, chamada idéia? Por que razão o consideram uma idéia, quando obviamente se trata de um fato?

Estudante - Talvez o pensamento seja limitado pela estrutura em que atua. Vale-se das coisas do passado e as compara com outras e diversas experiências.

KRISHNAMURTI - Por que motivo é o pensamento intrinsecamente fragmentário, dividido? Em si mesmo - não meramente em seus resultados. O pensamento não resulta do tempo? Observem, verifiquem! Não deriva do movimento do tempo? O pensar, sem dúvida, originas-se da memória. Isso vocês vêem. É o resultado da memória, da experiência, do conhecimento; e tudo isso pertence ao passado, não é? Modifica-se no presente, e continua a modificar-se no futuro. É, pois, um movimento no tempo. E, por ser de natureza temporal, é em si incompleto. Não é, nem pode ser, o todo.

Escutem! Desde os nove anos estudo inglês - e outras línguas. Isso é memória. Levei alguns anos para aprendê-los e estão armazenadas na mente - as palavras, a sintaxe, a composição das frases - tudo isso exigiu tempo. Qualquer pensamento que surja desse aprendizado é limitado. Conseqüentemente, ele não é o todo, não é completo. O pensar não pode nunca ser completo, porque é sempre limitado. Vejam isso, não como uma idéia e, sim, como uma realidade. Dissemos ser o pensamento a resposta da memória. A memória está retida no cérebro; é a experiência e o acumular constante do conhecimento. Quando lhes perguntam algo, a memória responde. Assim, o pensamento tem de ser limitado, porque a memória é limitada, o saber é limitado, igualmente limitado é o tempo.

Foi o pensamento que criou o divisão do mundo. Você é holandês e eu sou alemão, ele é inglês e o outro é chinês. O pensamento gerou essa divisão. Ele criou as religiões ao dizer: “Jesus é o maior salvador”; vá então à Índia e lá dirão: “Desculpe, mas quem é esse cavalheiro? Jamais ouvi falar nele. Temos nosso próprio Deus, que é o melhor de todos”. O pensamento criou as guerras e os instrumentos de guerra. É o responsável por tudo isso.

Estudante - Todas essas idéias, das quais nos está dando exemplos...

KRISHNAMURTI - Não são idéias, são fatos.

Estudante - Sim, inegavelmente, mas...

KRISHNAMURTI - Quero fixar-me nisto. Peço-lhes que vejam este fato - vocês são de um país e eu sou de outro. Temos cores diferentes, culturas diversas, etc. Vêem as divisões da Índia - os muçulmanos, os hindus. Quem as criou?

Estudante - Vejo essas divisões, mas eu, pessoalmente, não lhes dou importância, porque as considero superficiais.

KRISHNAMURTI - Você pode não dar importância, mas os outros dão, e se odeiam reciprocamente. E o que há por trás desse pensamento divisório? Condicionamento, não é? De meus pais ouvi: “Você é brâmane”, “Você é indiano”, e os seus disseram: “Você é cristão”.

Estudante - Por instinto, tendemos a pertencer a um grupo.

KRISHNAMURTI - Porque existe o instinto de pertencer a um grupo - porquê? Por ser mais seguro. Pertencer a uma comunidade, identificar-se com um pequeno grupo dá-lhes uma sensação de segurança. Mas, porque não se identificam com a humanidade, com o ser humano em geral? Porque só com o pequeno grupo?

Estou a mostrar-lhes que o pensamento criou todos esses problemas humanos, psicológicos e mundiais. Não podemos negá-lo. Vêem isto como um fato e não simplesmente como uma idéia? É um fato como ter dor de dente. Não se diz: “Tenho uma idéia de estar com dor de dente”!

Consideremos a questão diferentemente. O pensamento é amor? Pode o pensar criar amor?

Estudante - Se amamos alguém, temos de pensar.

KRISHNAMURTI - O que pergunto é: Pode o amor ser cultivado pelo pensamento? Disse que o pensamento é fragmentário - será sempre fragmentário.

Vejamo-lo de outro modo. Sendo fragmentário, o pensamento tem de causar, por sua própria atividade, fragmentação; pode então ele cultivar e criar o amor?

Ao dizerem “Não” - tenham cuidado, pois vou pegá-los aqui! Quando dizem “Não, o pensamento não é o amor”, trata-se outra vez de uma idéia ou de uma realidade? Se é uma realidade, algo que é bem... então, onde o amor existe, aí não atua o pensamento.
É excessivamente complicado? Compreendem isto, não aqui (tocando a cabeça), mas profundamente, interiormente?

Sejam muito, mas muito cautelosos. Se o amor não é pensamento, se não se baseia em pensamento, então que é relacionamento? Se pensamento não é amor, que farão com seus atuais relacionamentos?

Digo com os meus botões: “Vejo o fato, não a idéia, de que o pensamento não é o amor”. Mas alego: “Tenho esposa, filhos, mãe” - todos temos imagens um do outro. Nesse convívio o que existe é a ação das imagens - imagens que eu crio deles e as imagens que eles criam de mim. E a isso chamo “amor”. E digo: “amo minha mãe”, “amo minha mulher”, “amo meus filhos”.

Ora, eu tenho para mim que essas relações se baseiam em pensamentos, em conceitos. Observo também, com toda a clareza, que o amor não é o produto do pensamento, que o amor não pode ser pensamento. Que acontece então com o convívio existente entre mim e os meus?

Estudante - Como vê o senhor tudo isso?

KRISHNAMURTI Não existe “como” - não se trata de algo mecânico. Não o percebem? O amor nada tem que ver com o pensamento - e pronto! Sem dúvida, o pensamento é uma atividade em fragmentação. Vejo-o muito bem. Trata-se de um fato, uma realidade - não de uma idéia.

Mas as pessoas se casam, têm parentes e ao verificarem que as relações se alicerçam em imagens, no pensamento, que acontece?

Estudante - Ao relacionamento entre imagens sempre denominamos “amor”, mas diz o senhor que o amor é outra coisa.

KRISHNAMURTI - Dizemos: “Apaixonei-me. Há anos me casei e tenho filhos. Faço uma imagem de minha mulher, imagem criada por mim. Mas ela me aborrece, me oprime, me domina. Ela também tem uma imagem de minha pessoa, que a oprime e a domina. E essa ação recíproca prossegue, tanto no setor sexual como nos demais. Fiz um conceito dela e ela fez outro de mim. Eis a realidade. Vejam isso! Verifiquem que, a imagem construída é aatividade do pensamento. Não se afastem disso, a menos que o vejam! Não abandonem este fato”.

Agora vocês vêm e dizem que o pensar é um movimento de fragmentação. Explicam-me muito cuidadosamente porque é - porque é vinculado pelo tempo, pela memória, vinculado pelo conhecimento, e, portanto, bem limitado. Percebo isso. O passo seguinte é: quando compreendo isso em relação a minha mãe, minha mulher, meus filhos - que fazer?

Que acontece então? Quando compreendo ser o relacionamento mantido com minha mulher, meu marido, com uma garota ou um rapaz, seja quem for, um movimento de tempo e fragmentação - que acontece?

Se o vêem - que é então o amor? É ele a mesma coisa? O amor é um quadro, uma imagem feita pelo pensamento, uma lembrança?

Estudante - Quando nos enamoramos, vemos tudo no início muito belo. Então, nosso desejo seria que aquilo se cristalizasse.

KRISHNAMURTI - Vocês vêem algo belo? Vêem realmente alguma coisa bela?
Ao contemplarem aquela linda arvore, um rosto de mulher, uma nuvem, uma gota d'água, notando-lhes a extrema beleza - podem ficar apenas com aquela visão? Ou a transformam em idéia, a idéia de que o quadro é belo? Que acontece no instante da contemplação?

Estudante - Não há palavra que o descreva.

KRISHNAMURTI - Que significa isso? Não havendo palavra, não há pensamento. Portanto, surge a beleza com a imobilidade do pensamento. Concordam com isso? Todos concordam! Ótimo!

Então, quando vêem algo grandioso, há ausência de pensamento. Pois bem; são capazes de permanecer com aquela visão sem dela se desviarem? Observando aquela nuvem, a mente não tagarela, porque não existe pensamento em ação. O pensamento está de todo ausente ao descortinarmos alguma coisa supremamente bela!

Agora observem cuidadosamente, escutem bem, atentem para isto. A nuvem, com sua luz, seu esplendor, sua imensidão, arrebatou-os. Percebem-no? A nuvem os absorveu. O que significa que vocês, nessa absorção, encontram-se ausentes. Outro ponto. Uma criança está entretida com um brinquedo. Retirem-lhe o brinquedo e - ela retomará às travessuras. Eis exatamente o que aconteceu. A nuvem os absorveu, e, quando ela desaparece, vocês retornam a si próprios. Sem estarem absorvidos pela montanha, pela nuvem, pela árvore, pelo canto de um pássaro ou pela beleza do campo, serão capazes de permanecer vazios?

Retirem o brinquedo, e a criança volta a suas artimanhas - Chorando e gritando - mas, se lhe devolverem o brinquedo, este tornará a absorvê-la. Pergunto-lhes agora: se não existir o brinquedo e, portanto, nada para absorvê-los – vocês ficarão como que ausentes de si? Oh, vejam a beleza disto! Estão compreendendo?

Então, a beleza existe quando vocês, psicologicamente, não existem. A beleza surge com a ausência do pensamento.

Porém, o amor, já o vimos, não é o pensamento. Estão começando a perceber a conexão?

Amo-a - você me absorve quero-a, você é simpática, perfumosa, seu cabelo é bonito, você me atrai sexualmente e em todos os sentidos. De fato, me conquistou. Sinto-me apaixonado. Isso é absorção, apego. Amo-a. Mas, com o tempo, meu antigo eu ressurge e diz - é, foi tudo muito bom dois anos antes, mas já não gosto dela. Estava realmente apaixonado, porém agora nada mais existe, tudo acabou!

Peço-lhes, sintam a verdade de que, havendo beleza, há total ausência de pensamento. Assim, o amor é a própria ausência do “eu”. Perceberam? Se o compreenderam, acabam de beber da fonte da vida.

Estudante - O sentimento inclui o ser absorvido?

KRISHNAMURTI - Que é sentimento? Se não há pensamento, haverá sentimentos? Atentem bem para isto. Reparem! A beleza é sentimento? Dissemos que a beleza é sem pensamento. Mas existe algum sentimento quando não há pensamento? Procurem o cerne, a luz de tudo isto. Abandonem os detalhes; estes virão mais tarde. Percebam a verdade de que, havendo beleza, não existe pensamento. Onde há amor, há ausência do “eu”... do “eu”, que tagarela, fala cheio de ansiedade, problemas, temores. Estando ausente o “eu”, o amor está presente.

Estudante - Se olhamos para uma nuvem, e ela desaparece, caímos de novo em nós mesmos.

KRISHNAMURTI - Já viram uma criança dar uma boneca a uma menininha? Ela fica perfeitamente feliz, calma, sem chorar. Dê ao menino um brinquedo complicado e ele passará horas a brincar. Deixou toda a desobediência de lado. A boneca, o brinquedo, tornaram-se de máxima importância. Analogamente, quando vêem a nuvem, o pássaro voando, quando vêem isso, que ocorre? Cessa o tagarelar da mente. Se assistem a um filme do faroeste, ou de outro gênero, vocês o olham atentamente. Não pensam em seus problemas, não há preocupações, temores. Estão simplesmente entretidos com o filme. Ao terminar a projeção, voltam ao estado habitual.

Como verão, se forem mais além, as idéias, tal como os ideais, representam os brinquedos que os dominam. As religiões são esses brinquedos. Ao aprofundarem estas coisas, retornam a si próprios e sentem-se perturbados, amedrontados.

Estudante - Não haverá uma só coisa fora dessa situação, fora do mundo de brinquedos?

KRISHNAMURTI - Já lhes mostrei. Ouçam atentamente. Dissemos que o pensamento criou este mundo. As guerras, o empresário, o político, o artista, o negocista - a sociedade criou tudo isso. A sociedade são as nossas relações com outrem - baseadas em pensamento. Eis porque o pensamento é responsável por toda esta confusão.

Não é verdade? Ou é, uma idéia? Se disserem ser uma idéia, então não estão olhando para o fato real.

Afastem-se dessa atitude. O pensamento, já o vimos, é fragmentário; faça o que fizer, ele trará fragmentação. Percebem isso tão realmente como o fato de estar eu aqui sentado?

Estudante - Isso é tudo pensamento mecânico, porém haverá alguma coisa por trás que o dirige?

KRISHNAMURTI - Não existe mais nada além do pensamento mecânico. Com o cessar desse pensamento, então alguma coisa mais existirá. Contudo, não se pode dizer: “Sim, isso é pensamento mecânico, vejamos então a outra coisa”. O pensamento tem de parar. Ele cessa, por exemplo, quando vemos a beleza, ao descortinarmos uma imensa cordilheira com picos cobertos de neve; sua majestade, sua grandeza nos transporta. Mas, quando a montanha já não se encontra ali, retornamos às costumeiras disputas e o pensar atua novamente. Descubram isso vocês mesmos. Sentem-se, meditem, aprofundem a matéria.

(Copyright “Krishnamurti Foundation Trust Ltd.”).
Tradução de Marina Brandão Machado


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