terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Sobre solidão

Acredito que a maioria de nós sabe o que é ser solitário. Conhecemos esse estado quando todos os relacionamentos foram cortados, quando nem o passado e nem o futuro têm sentido, quando há uma completa sensação de isolamento. Ainda que você esteja com um grande número de pessoas, num ônibus cheio, ou simplesmente sentado ao lado do seu amigo, do seu marido ou da sua mulher, essa onda subitamente passa por você, essa sensação de incrível vazio, um abismo, um vácuo. E a reação instintiva é fugir dela.

Para isso você liga o rádio, conversa, ou se filia a determinada sociedade, ou prega sobre Deus, sobre a verdade, o amor e tudo o mais. Você pode escapar através de Deus, ou através do cinema; todos os modos de escape são o mesmo. E a reação é o medo desse completo senso de isolamento e de fuga. Você conhece todos os meios de fuga através do nacionalismo, da pátria, dos filhos, do seu nome, da sua propriedade, em nome dos quais você está disposto a lutar, a brigar, a morrer.

Entretanto, se verificar que todos os meios de fuga são o mesmo, e se você realmente percebe o significado de escapar, você pode ainda assim escapar? Ou melhor, existe fuga? E se você não estiver fugindo, haverá ainda conflito? Você compreende? É a fuga daquilo “que é”; é o desejo de atingir algo diferente daquilo “que é” que acaba criando o conflito. Assim, para que a mente possa ir além desse senso de solidão, desse súbito cessar de toda lembrança de qualquer relacionamento, onde se inclui a inveja, o ciúme, o desejo de aquisição, a tentativa de ser virtuoso e tudo o mais — ela deve primeiro enfrentar isso, passar por isso, de sorte que o medo, em qualquer forma que se apresente, se dissolva. Pergunto: pode a mente perceber a futilidade de todos os meios de fuga através de uma fuga? Então não haverá conflito, não é verdade? Pois não haverá observador da solidão; não haverá o vivencial da solidão. Você está me acompanhando? Essa solidão é a cessação de todo relacionamento; idéias não importam mais; o pensamento perdeu todo o seu significado. Estou descrevendo, mas, por favor, não se limitem a ouvir porque depois vocês serão deixados com as cinzas. Afinal, o objetivo destas conversas é realmente livrar desses terríveis emaranhados, ter na vida algo mais que o conflito, algo mais que o medo, o aborrecimento e a monotonia da existência.

Onde não existe o medo há a beleza, não a beleza de que falam os poetas, a que é pintada pelos artistas, e assim por diante, mas algo bastante diferente. E para descobrir a beleza é preciso passar por esse completo isolamento; ou melhor, você não precisa passar por ele; ele está presente. Você escapou dele, mas ele está aí, sempre a persegui-lo. Está aí, no seu coração, na sua mente, nas profundezas e recessos do seu ser. Você o encobriu, escapou dele, fugiu; mas ele está aí. E a mente precisa vivenciá-lo como uma purgação pelo fogo. Pode a mente fazer isso sem uma reação, sem dizer que se trata de um estado horrível? No momento em que você tem uma reação, há o conflito. Se você o aceita, ainda assim carrega o seu peso e, quando o nega, o encontrará logo adiante. Sem nenhuma reação, a mente é essa solidão; ela não precisa passar por ela, é ela. No momento em que você pensa em termos de superar isso e atingir algo diferente, você de novo está em conflito. No momento em que você diz, “Como irei superar isso, como deverei realmente encarar isso?”, você está novamente em conflito.

Assim, há o vazio, há esta extraordinária solidão que nenhum Mestre, nenhum guru, nenhuma idéia, nenhuma atividade pode afastar. Você brincou com todas elas, experimentou todas elas, mas elas não podem preencher este vazio; é um poço sem fundo. Mas não é um poço sem fundo no momento em que você o está experimentando. Compreende?

Percebem, se a mente ficar inteiramente livre de conflitos, totalmente, completamente sem apreensões, sem medo e ansiedade, deve haver o experimentar deste extraordinário senso de ter relacionamento com nada. E daí decorre uma sensação de solidão. Por favor, não imagine que você a tem; é tarefa muito árdua. E é apenas então, nesse senso de solidão em que não há medo, que ocorre um movimento em direção ao imensurável, pois então não há ilusão, não há o produtor de ilusões, não há o poder de criar ilusão. Enquanto houver conflito, haverá poder de criar ilusão, e com a total cessação do conflito todo medo terá cessado, e portanto não há mais busca.

Fico a me perguntar se vocês entenderam. Afinal, vocês todos estão aqui por estarem procurando. E, se examinarem bem, o que estão procurando? Estão procurando algo além desse conflito, dessa desgraça, sofrimento, agonia, ansiedade. Estão em busca de um meio de sair disso. Mas quando se compreende o que foi dito, cessa toda a busca, o que é um estado extraordinário da mente.

Sabem, a vida é um processo de desafios e respostas, não é? Há o desafio de fora — o desafio da guerra, da morte, de dúzia de coisas diferentes — e respondemos. E o desafio é sempre novo, mas nossas respostas são sempre antigas, condicionadas. Não sei se isto está claro. No intuito de responder ao desafio preciso reconhecê-lo, não é verdade? E se eu o reconheço, o faço em termos do antigo, então é o antigo, obviamente. Peço que percebam isto, pois pretendo avançar um pouco mais.

Para um homem muito voltado para dentro, os desafios de fora não mais interessam, mas ainda assim ele tem seus próprios desafios interiores e respostas. No entanto, estou falando da mente que não está mais a procurar, e, portanto não mais está tendo um desafio e resposta. Este não é um estado satisfeito, que se contentou, acovardado. Quando você tiver compreendido a significação do desafio exterior e a resposta, e o significado do desafio interior que se atribui a si mesmo e à resposta, e tiver percorrido tudo isso com docilidade, sem perder meses ou anos com isso, então a mente não mais está moldada pelo ambiente; não é mais influenciável. A mente que atravessou essa extraordinária revolução pode enfrentar qualquer problema sem que este deixe qualquer marca, qualquer raiz. Então, qualquer sentido de medo terá desaparecido.

Não sei até onde me acompanharam nisso. Sabem, ouvir não é meramente escutar; ouvir é uma arte. Tudo isso é parte do autoconhecimento; e se alguém realmente ouviu e mergulhou em si mesmo com profundidade, é uma purificação. E aquilo que está purificado recebe uma bênção que não é a bênção das igrejas.

Krishnamurti - Londres, 18 de Maio de 1961 – Sobre Relacionamentos – Ed. Cultrix

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