sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Sensibilidade


Era um lindo jardim, com gramados em vários níveis e velhas arvores frondosas. A casa era grande, com cômodos espaçosos, arejada e bem dividida. As arvores abrigavam muitos passarinhos e esquilos, e vinham pássaros de todos os tamanhos à fonte, às vezes águias, mas principalmente corvos, pardais e barulhentos papagaios. A casa e o jardim eram isolados, ainda mais que estavam cercados por altos muros brancos. Era agradável do lado de dentro desses muros, e do outro lado havia o barulho da estrada da aldeia. A estrada passava pelos portões e a alguns metros dela situava-se a aldeia, nos arredores de uma grande cidade. A aldeia era suja, com valões abertos ao longo da estreita rua principal. As casas tinham teto de sapê, os degraus da entrada estavam enfeitados e crianças brincavam na rua. Alguns tecelões esticaram longos cordões de fios de cores alegres para fazer tecidos, e um grupo de crianças os observava trabalhar. Era uma cena alegre, animada, barulhenta e repleta de odores. Os aldeões tinham acabado de se lavar e usavam pouca roupa, pois o clima era quente. Ao cair da noite alguns deles ficaram bêbados e tornaram-se vulgares e grosseiros.

Era apenas um muro estreito que separava o lindo jardim da agitada aldeia. Rejeitar a feiúra e agarrar-se à beleza é ser insensível. Cultivar o oposto sempre estreita a mente e tolhe o coração. A virtude não é um oposto; e se tiver um oposto, deixa de ser virtude. Perceber a beleza daquela aldeia é ser sensível ao jardim verde e florido. Queremos estar atento somente à beleza e nos desligamos daquilo que não é belo. Essa repressão simplesmente dá origem à insensibilidade, pois ela não realiza a apreciação da beleza. O bom não está no jardim, longe da aldeia, mas na sensibilidade que se encontra além de ambos. Rejeitar ou se identificar leva à imitação, que é ser insensível. A sensibilidade não é uma coisa para ser cuidadosamente nutrida pela mente, que só consegue dividir e dominar. Existe o bem e o mal; mas buscar um e evitar o outro não levar aquela sensibilidade que é essencial para a existência da realidade.

A realidade não é o oposto da ilusão, do falso, e se você tentar abordá-la como um oposto, ela jamais tomará forma.  A realidade só pode ser quando os opostos cessam. Condenar ou se identificar gera o conflito dos opostos, e conflito só produz mais conflito. Um fato abordado não-emocionalmente, sem rejeição ou justificação, não causa conflito. O fato em si mesmo não tem oposto; ele só tem um oposto quando existe uma atitude prazerosa ou defensiva. É essa atitude que constrói os muros da insensibilidade e destrói a ação. Se preferirmos permanecer no jardim, existirá uma resistência à aldeia; e onde há resistência  não pode haver ação, tanto no jardim quanto em relação à aldeia. Pode haver atividade, mas não ação. A atividade é baseada em uma idéia e a ação não o é. As idéias têm opostos e a movimentação entre os opostos é simples atividade, por mais prolongada ou modificada que seja. A atividade jamais pode ser libertadora. 

A atividade tem um passado e um futuro, mas a ação não tem. A ação está sempre no presente, e é portanto imediata. A reforma é atividade, não ação, e o que é reformado precisa de mais reforma. A reforma é inação, uma atividade nascida como um oposto. A ação é de momento para momento e, por estranho que pareça, ela não tem contradição inerente; mas a atividade, embora possa dar impressão de não ter intervalos, está cheia de contradições. A atividade da revolução é decifrada com contradições e, portanto, jamais pode libertar. Conflitos e escolhas jamais podem ser um fator libertador. Se há escolha, existe atividade e não ação; pois a escolha está baseada na idéia. A mente pode entregar-se a atividades, mas ela não pode agir. A ação surge de uma fonte bastante diferente.

A lua surgiu sobre a aldeia, criando sombras no jardim.


Krishnamurti – Comentários sobre o viver


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A liberdade do medo é mais importante que qualquer diploma acadêmico


Não é extremamente importante, enquanto somos jovens, sermos amados e também sabermos o que significa amar? Mas tenho a impressão que a maioria de nós não ama e nem é amado. E acho que é essencial, enquanto somos jovens, entrarmos nesse problema de forma muito séria e entende-lo; pois aí talvez possamos ser bastante sensíveis para sentirmos amor, para reconhecermos sua qualidade, seu perfume, para que quando ficarmos mais velhos isso não seja inteiramente destruído. Então, vamos considerar essa questão.

O que significa amar? Isso é um ideal, algo distante, inatingível? Ou o amor pode ser sentido por cada um de nós em momentos esporádicos do dia? Ter a capacidade da compaixão, do entendimento, de ajudar alguém naturalmente, sem qualquer motivo, de ser espontaneamente bondoso, de cuidar de uma planta ou de um cão, de ser solidário com o aldeão, generoso com seu amigo, com seu vizinho — não é isso que queremos dizer por amor? O amor não é um estado em que não existe sentimento de ressentimento e sim de uma benevolência permanente? E não é possível, enquanto somos jovens, sentirmos isso?

Enquanto somos jovens, muitos de nós experimentam esse sentimento — uma súbita compaixão cordial pelo aldeão, por um cachorro, por aqueles que são pequenos ou indefesos. E isso não deveria ser constantemente assim? Vocês não deveriam sempre dedicar parte do dia para ajudar os outros, para cuidar de uma árvore ou jardim, para ajudar na casa, para que, quando chegarem à maturidade, saibam o que significa ser naturalmente atencioso, sem imposição, sem motivação? Vocês não deveriam ter essa capacidade de afeição verdadeira?

A afeição verdadeira não deve ser induzida a existir artificialmente, vocês têm que senti-la; e seus tutores, seus pais, seus professores também precisam senti-la. A maioria não tem afeição verdadeira; está preocupada demais com suas realizações, seus anseios, seu conhecimento, seu sucesso. Eles dão importância tão colossal ao que fizeram  e ao que querem fazer que isso no fim acaba os destruindo.

Por isso é muito importante, enquanto vocês são jovens, que ajudem a cuidar de seus quartos, de árvores que vocês mesmos tenham plantado, ou prestar ajuda a algum amigo doente, para que haja um sutil sentimento de solidariedade, de preocupação, de generosidade — a generosidade verdadeira, a que não é somente da mente e que faz com que vocês queiram compartilhar com alguém o que quer que vocês tenham, por menor que isso seja. Se vocês não tiverem esse sentimento de amor, de generosidade, de bondade, de cortesia, enquanto forem jovens, será muito difícil de tê-lo quando forem mais velhos; mas se vocês começarem a sentir isso agora, então talvez consigam despertar isso em outras pessoas.

Ser solidário e ter afeição implica a libertação do medo, não é? Mas vejam, é muito difícil crescer neste mundo sem medo. As pessoas mais velhas nunca pensaram sobre esse problema do medo, ou só pensaram nisso de forma abstrata, sem ação prática na existência diária. Vocês ainda são muito jovens, estão observando, indagando, aprendendo, mas se não virem e entenderem o que causa o medo, se tornarão iguais a eles. Como uma erva daninha escondida, o medo crescerá, se espalhará e deformará suas mentes. Vocês devem, portanto, estar conscientes de tudo o que está acontecendo em torno de vocês e dentro de si mesmos — como os professores falam, como seus pais se comportam e como vocês reagem — para que essa questão do medo seja percebida e entendida.

A maioria das pessoas adultas pensa que ter algum tipo de disciplina é necessário. Vocês sabem o que é disciplina? É um processo de fazer vocês realizarem algo que vocês não querem. Onde há disciplina, há medo. Então, a disciplina não é o caminho do amor. É por isso que a disciplina a qualquer preço deve ser evitada — disciplina como coerção, oposição, compulsão, forçando vocês a fazerem algo que realmente não entendem ou persuadindo vocês a fazê-lo em troca de uma recompensa. Se vocês não entenderem algo, não o façam, e não sejam forçados a fazê-lo. Peçam uma explicação. Não sejam apenas obstinados, mas tentem descobrir a verdade da questão para que nenhum medo esteja envolvido e suas mentes se tornem bastante flexíveis.

Quando vocês não entendem e são simplesmente forçados pela autoridade do adulto, estão reprimindo suas próprias mentes, e aí aparece o medo; e esse medo lhes perseguirá como uma sombra pela vida toda. É por isso que é tão importante não ser disciplinado com qualquer tipo de pensamento ou padrão de ação. Mas a maioria das pessoas mais velhas só consegue pensar a partir dessa lógica. Elas querem força-los a fazer algo para o suposto bem de vocês. Esse processo destrói a sensibilidade, a capacidade de entender e, portanto, o amor em vocês. Recusarem-se a ser coagidos ou forçados é muito difícil, porque o mundo em torno de nós é muito forte; mas se nós simplesmente cedermos e fizermos as coisas sem entender, cairemos no hábito da desatenção e, assim, será ainda mais difícil de escaparmos disso.

Então vocês devem ter autoridade e disciplina na escola? Ou vocês devem ser estimulados pelos professores a discutirem essas questões, entrarem nelas, entende-las, para que quando forem adultos e saírem para o mundo, sejam indivíduos maduros e capazes de enfrentar de forma inteligente os problemas do mundo? Vocês não poderão ter inteligência profunda se houver qualquer tipo de medo. O medo apenas os torna insensíveis, ele reprime a iniciativa, destrói aquela chama que chamamos de solidariedade, generosidade, afeição, amor. Então, não permitam ser disciplinados para um padrão de ação, mas descubram — o que significa que vocês precisam ter o tempo para perguntar, para indagar. E os professores também precisam ter tempo. Se não houver essa disponibilidade, então, deverá ser criada. O medo é uma fonte de corrupção, é o início da degeneração, e estar livre do medo é mais importante que qualquer prova ou qualquer diploma acadêmico. 

Krishnamurti

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Por quê, praticamente todo mundo fala da vida dos outros?

Pergunta: A bisbilhotice tem valor na autorrevelação, principalmente porque revela como são os outros. Por que não usar a bisbilhotice como um meio de descobrir o que é? Não estremeço ao escutar a palavra “bisbilhotice” só porque ela tem sido condenada por muitas gerações.

Krishnamurti: Pergunto-me por que fazemos mexericos. Não é porque eles nos revelam como os outros são. E por que haveríamos de querer conhecer os outros? Por que esse tremendo interesse na vida de outras pessoas? Por que bisbilhotamos? É uma forma de inquietação, não é? Como a preocupação, isso também é indicação de uma mente inquieta. Por que temos esse desejo de interferir na vida dos outros, de saber o que eles estão fazendo, falando? A mente que se entrega a bisbilhotices é bem superficial, não é? Pode ser uma mente investigadora que tomou um rumo errado. A pessoa que me fez a pergunta parece pensar que, por causa de seu interesse pelos outros, eles se revelarão com seus pensamentos, ações e opiniões. Mas podemos conhecer os outros, se não conhecemos a nós mesmos? Podemos julgá-los, se nem sabemos por que razão pensamos, agimos e nos comportamos de um determinado jeito? Por que nos preocupamos tanto como os outros? Não será uma forma de fuga, esse desejo de saber o que os outros estão pensando, sentindo, sobre o que estão falando? Isso não será um meio de escapar de nós mesmos? Nesse hábito, não haverá também o desejo, puro e simples, de nos intrometermos na vida dos outros? Penso que a nossa vida já é bastante difícil, bastante dolorosa, sem que lidemos com a vida de outras pessoas. Como achamos tempo para pensar nos outros de modo tão bisbilhoteiro e cruel? Por que agimos assim? Todo mundo faz isso. Todo mundo, praticamente, fala da vida dos outros. Por quê?

Acho que nos entregamos a mexericos porque não estamos suficientemente interessados no processo do nosso próprio pensamento e de nossas ações. Queremos ver o que os outros estão fazendo e, para falar com delicadeza, queremos imitá-las. E por que queremos isso? tal desejo não indica superficialidade de nossa parte? É uma mente estúpida, essa, que sai de si mesma para ir em busca de excitação. Em outras palavras, bisbilhotice é uma forma de sensação à qual nos entregamos. Pode ser um tipo diferente de sensação, mas há sempre o desejo de excitação, de distração. É, de fato, uma pessoa bastante superficial, essa que busca excitação externa, falando dos outros. Preste atenção quando estiver bisbilhotando a respeito de alguém, porque isso lhe mostrará muita coisa sobre si mesmo. Não tente disfarçar, dizendo que só está curioso a respeito de outras pessoas. A verdade é que isso indica inquietação, desejo de excitação, superficialidade e falta de um verdadeiro e profundo interesse nas pessoas, que nada tem a ver com bisbilhotice.

Outro problema é como parar com os mexericos. Quando percebemos que estamos falando de alguém, como paramos? Se isso se tornou um hábito, uma coisa feia que se repete dia após dia, o que fazer para acabar com esse comportamento? Quando você se pega bisbilhotando e está cônscio de todas as implicações dessa ação, não diz a si mesmo para parar? E não pára, no mesmo instante em que percebe que está sendo bisbilhoteiro? Experimente isso na próxima vez em que estiver falando de alguém, e verá como pára de bisbilhotar, quando percebe o que está fazendo, quando se conscientiza de que sua língua o domina. Não é preciso ter força de vontade para isso, basta que você esteja cônscio do que está falando e veja as implicações. Não é preciso condenar ou justificar a bisbilhotice. Esteja alerta, perceba o que está dizendo, e verá como pára rapidamente de falar, porque o que você fala lhe revela como age, como se comporta e qual é o seu padrão de pensamento. Nessa revelação, descobrirá a si mesmo, o que é muito mais importante do que falar dos outros, fazer comentários sobre o que eles fazem, o que pensam e como se comportam.

Muitos de nós lemos jornais que estão cheios de mexericos, numa bisbilhotice global. É um modo de fugirmos de nós mesmos, de nossa mesquinharia, do que há de feio em nossa vida. Pensamos que, por meio de um interesse superficial nos acontecimentos do mundo, tornamo-nos mais sábios, mais capazes de lidar com nossos próprios problemas. E isso não é um meio de fuga? Somos tão vazios, tão pouco profundos, temos tanto medo de nós mesmos! Somos tão pobres que a bisbilhotice torna-se uma forma de rico entretenimento, uma fuga de nós mesmos. Tentamos preencher nosso vazio interior com conhecimento, rituais, intrigas, com uma infinidade de meios de fuga que se tornam de vital importância, quando o mais importante deveria ser a compreensão do que é. Essa compreensão exige atenção. Saber que somos vazios, que estamos sofrendo, pede total atenção, não meios de fuga, mas são muitos os que gostam desses meios porque eles são muito mais prazerosos. Quando me vejo como realmente sou, acho muito difícil lidar comigo mesmo, e esse é um problema com os quais todos nós nos confrontamos. Sabemos que somos vazios, que estamos sofrendo, mas não sabemos o que fazer, não sabemos como lidar com isso. Então, recorremos a todos os tipos de fuga.

Assim, a pergunta é: o que fazer? É óbvio que não podemos escapar, pois seria um absurdo, uma infantilidade. Mas, quando você vê diante de si mesmo, quando se vê como é, o que deve fazer? Primeiro, é possível você não negar ou justificar o que vê, mas conservar-se como é? Isso é extremamente difícil, porque a mente busca explicação, condenação, identificação. Se ela não faz nada disso, é possível aceitar alguma coisa. Se aceito que sou escuro, está acabado, mas se lamento não ter a pele mais clara, isso é um problema. É muito difícil aceitar o que é, só conseguimos isso quando não há fuga, e condenação ou justificação são formas de fuga. Assim, quando entendemos por que falamos tanto dos outros, e como esse comportamento é absurdo, cruel e tudo o mais o que ele envolve, ficamos frente a frente com o que somos e, ou tentamos destruir o que vemos, ou tentamos transformá-lo em algo diferente. Se não fizermos nenhuma dessas coisas, mas decidirmos compreender e aceitar completamente o que vemos, descobriremos que não é mais aquilo que temíamos. Então, existe a possibilidade de transformamos aquilo que é.

Krishnamurti - A primeira e última liberdade

terça-feira, 6 de novembro de 2012

O que acontece quando não há esforço para fugir?


Para a maioria de nós a vida se baseia no esforço, em algum tipo de vontade. Não é possível imaginar uma ação sem vontade, sem esforço. A vida social, a econômica e a que chamam espiritual são uma série de esforços que sempre produzem um certo resultado. E, assim, pensamos que o esforço é necessário, imprescindível.

Por que fazemos esforço? Falando simplesmente, não é porque queremos alcançar algum resultado, uma meta, nos tornarmos alguma coisa? Se não fazemos esforço, achamos que estamos estagnados. Formamos uma ideia a respeito do objetivo pelo qual estamos constantemente lutando, e essa luta torna-se parte de nossa vida. Se queremos nos modificar, efetuar uma mudança radical em nós mesmos, fazemos um tremendo esforço para eliminar antigos hábitos, para resistir às habituais influências do meio, e assim por diante. Então, estamos acostumados a essa série de esforços para encontrarmos ou realizarmos alguma coisa, enfim, para viver.

Todo esse esforço não é atividade do eu? Não é uma atividade egocêntrica? Se fizermos um esforço a partir do eu, isso inevitavelmente produzirá mais conflito, mais confusão, mais infortúnio. No entanto, continuamos a fazer esforço após esforço. Poucos de nós compreendem que a atividade egocêntrica do esforço não soluciona nenhum dos nossos problemas. Ao contrário, ela aumenta a nossa confusão e infelicidade. Sabemos disso, mas continuamos a achar que podemos progredir por meio dessa atividade egocêntrica do eu, dessa ação da vontade.

Penso que entenderemos o significado da vida se compreendermos o que significa fazer esforço. A felicidade vem por meio do esforço? Você já tentou ser feliz esforçando-se? Isso é impossível, não é? Você luta para ser feliz, e a felicidade não vem. A alegria não vem por meio da opressão, do controle, nem da complacência. Você pode ser complacente, mas o que encontra no fim é amargura. Pode oprimir ou controlar, mas nisso também há sempre conflito. Assim, a felicidade não vem pelo esforço, nem a alegria por meio da opressão e controle, mas, apesar disso, nossa vida é uma sequencia de atos repressores, controladores e de lamentável complacência. Há também um constante processo de superação, de luta contra as nossas paixões, contra a nossa ganância e estupidez. Não lutamos, então, não nos esforçamos, na esperança de encontrar a felicidade, de encontrar alguma coisa que nos dê um senso de paz e de amor?  Mas amor e compreensão vem pela luta? Penso que é muito importante esclarecermos o que entendemos por luta ou esforço.

Esforço não significa uma luta para transformar o que é no que não é, ou no que deveria ser? Estamos constantemente lutando para não encarar o que é, ou tentando fugir dele ou modifica-lo. Um homem que se sente verdadeiramente contente é aquele que compreende o que é e lhe dá o significado correto. O verdadeiro contentamento é esse, é não estar preocupado por ter poucas ou muitas posses, é compreender o total significado do que é. E isso só pode acontecer quando reconhecemos o que é, quando o percebemos, não quando estamos tentando modifica-lo.

Assim, vemos que o esforço é uma tentativa, uma luta, para transformar aquilo que é em algo que desejamos que seja. Estou falando apenas de luta psicológica, não da luta com uma situação física, como na engenharia, numa descoberta ou numa transformação, pois isso é puramente técnico. Só estou falando da luta psicológica, que sempre supera a da técnica. Pode-se construir uma sociedade maravilhosa usando o infinito conhecimento que a ciência nos dá. Mas enquanto o esforço e a luta psicológicos não forem compreendidos, as nuances e as tendências psicológicas não forem superadas, a estrutura da sociedade, apesar de maravilhosamente construída, correrá o risco de ruir, o que tem acontecido repetidas vezes.

O esforço desvia a nossa atenção do que é. No momento em que aceitamos o que é, a luta termina. Qualquer forma de luta ou conflito indica desvio, e esse desvio, que é esforço, obrigatoriamente existe quando nós, psicologicamente, desejamos transformar o que é em algo que não é.

Primeiro, precisamos ser livres para ver que a alegria e a felicidade não vêm por meio do esforço. A criação se dá por meio do esforço, ou apenas quando ele cessa? Quando é que criamos? Sem dúvida, quando não há esforço, quando estamos completamente abertos, quando, em todos os níveis, estamos completamente integrados. Então há alegria, e começamos a cantar, ou escrever uma poesia, ou pintar, ou criar alguma coisa. O momento da criação não nasce da luta.

Talvez, se compreendermos a questão da criatividade, possamos compreender o que queremos dizer com “esforço”. A criatividade resulta do esforço? Estamos cônscios de nós mesmos quando estamos sendo criativos?

Ou a criatividade é um senso total de esquecimento de nós mesmos, um estado que não há tumulto algum, em que estamos inteiramente inconscientes do movimento do pensamento e há apenas um rico senso de plenitude do ser? Esse estado é fruto de trabalho árduo, de luta, de conflito, de esforço? Não sei se você alguma vez notou que, quando faz algo com facilidade, rapidamente, não há esforço; ao contrário, há uma completa ausência de luta. Mas como a nossa vida é quase sempre uma série de batalhas, conflitos e esforços, não conseguimos nos imaginar vivendo um estado de ser em que toda luta cessou completamente.
Para que se entenda esse estado de ser sem luta, esse estado de existência criativa, é preciso analisar o problema do esforço. Por “esforço” queremos dizer a luta pela realização pessoal, pela satisfação do desejo de ser alguém, não é? Eu sou isto, quero ser aquilo. Não sou aquilo e quero ser. Querer ser “aquilo” gera luta, conflitos, batalhas. Nessa luta, invariavelmente nos preocupamos com nossa realização relativa a alcançar um certo fim. Buscamos realização pessoal em um objeto, uma pessoa, uma ideia, e isso exige batalha constante, exige que nos esforcemos para nos tornarmos alguma coisa, para nos sentirmos realizados. Então, consideramos esse esforço inevitável, e eu me pergunto se essa luta para nos tornarmos alguma coisa é inevitável. Qual o motivo dessa luta? Onde há o desejo de realização, em qualquer grau, a luta. Realização é o motivo, o impulso por trás do esforço e, seja um grande executivo, uma dona de casa, ou um homem pobre, todos estão batalhando para para ser alguma coisa, para se sentirem realizados.

Bem, por que existe esse desejo de autorrealização? É um desejo, obviamente, que surge quando a pessoa acha que não é nada. Como eu não sou nada, como sou insuficiente, vazio, pobre internamente, luto para me tornar alguma coisa, por dentro e por fora, luto para me realizar por intermédio de uma pessoa, uma coisa, ou uma ideia. Preencher esse vazio é todo o processo de nossa existência. Ao percebermos que estamos vazios, pobres por dentro, lutamos para conquistar coisas exteriores, ou cultivarmos a riqueza interior. Existe esforço apenas quando há uma fuga desse vazio interior, por meio de contemplação, aquisição, realização, poder, e por aí adiante. Essa é a nossa existência diária. Estou cônscio de minha insuficiência, dessa minha pobreza interior, e luto para fugir disso, preencher esse vazio. Essa fuga, ou essa tentativa de preencher o vazio, causa luta, conflito, esforço.

O que acontece quando não fazemos esforço para fugir? Vivemos com essa solidão, com esse vazio, e, ao aceitarmos isso, vemos surgir um estado criativo, que não tem nada a ver com luta, com esforço. Existe esforço apenas enquanto tentamos evitar a solidão interior, mas quando a examinamos, quando aceitamos o que é, sem tentar evita-lo, alcançamos um estado de ser em que toda luta cessou. Esse estado de ser é criatividade, e não resulta de esforço.

Quando compreendemos o que éou seja, o vazio, a insuficiência interior, e vivemos com essa insuficiência e a compreendemos completamente, encontramos a realidade criativa — a inteligência criativa —, que, por si só, traz felicidade.

Assim, a ação, como a conhecemos na verdade é reação, uma transformação incessante, e isso é negação do que é. Mas quando há uma conscientização do vazio, sem condenação ou justificativa, com compreensão do que é, então, sim, a ação é criatividade. Você compreenderá isso se estiver cônscio de si mesmo, quando em ação. Observe-se quando estiver agindo, veja a si mesmo não apenas externamente, mas procure perceber também o movimento de seus pensamentos e sentimentos. Quando perceber esse movimento, verá que o processo do pensamento, que também é de sentimento e ação, baseia-se em uma ideia de transformação. Essa ideia surge apenas quando há um senso de insegurança, e esse senso vem quando se está cônscio do vazio interior. Se você estiver cônscio desse processo de pensamento e sentimento, verá que há uma batalha em constante andamento, um esforço para mudar, alterar o que é. Esse é o esforço de transformação, e transformar é evitar diretamente o que é. Por meio do autoconhecimento, da constante conscientização de si mesmo, você descobrirá que a luta pela transformação leva à dor, ao sofrimento e à ignorância. Só quando estiver cônscio de sua insuficiência interior e viver com ela, sem tentar fugir, aceitando-a integralmente, é que você descobrirá uma maravilhosa tranquilidade, uma tranquilidade que não é fabricada, não é construída, mas que vem com a compreensão do que é. E é só nesse estado de tranquilidade que pode haver existência criativa.

Krishnamurti

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