terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A Unidade do Homem

Foi o livro de Carlo Suarès sobre Krishnamurti que me abriu os olhos para esse fenômeno que está entre nós. Eu o li primeiro em Paris e depois disso reli-o várias vezes. Dificilmente há outro livro que eu tenha lido tão intensamente e em que tenha feito tão copiosas anotações, exceto The Absolute Collective de Erich Gutkind. Depois de anos de luta e procura encontrei ouro.

Não acredito que esse livro tenha sido traduzido para o inglês; nem sei, ademais, o que o próprio Krishnamurti pensa dele. Jamais me encontrei com Krishnamurti, embora não haja ser humano vivo pelo qual eu sentiria o maior privilégio de encontrar do que ele. Muito curiosamente, seu local de residência não é muito distante do meu. Entretanto, parece-me que, se esse homem representa alguma coisa, o que ele representa é o direito de levar sua própria vida, que, com certeza, não é estar à disposição de cada José, João ou Joaquim, que deseje conhecê-lo, ou obter dele algumas migalhas de sabedoria. "Você não pode conhecer-me nunca" - diz ele em algum lugar. É suficiente saber o que ele representa, o que ele significa como ser e essência.

O livro de Carlo Suarès é inestimável. Está repleto das palavras do próprio Krishnamurti, selecionadas de suas palestras e escritos. Cada fase do desenvolvimento de Krishnamurti (até o ano em que o livro foi publicado) é exposta com lucidez, lógica e ênfase. Suarès mantém-se discretamente na sombra: tem a sabedoria de deixar Krishnamurti falar por si mesmo. Nas páginas 116 a 119 do livro de Suarès o leitor achará o texto do qual dou aqui a substância.

Depois de longa discussão de Krishnamurti com um homem em Bombaim, este lhe diz: "O que você fala poderia levar ao surgimento de super-homens, homens capazes de cuidar de si próprios, de estabelecer a ordem em si mesmos, homens que seriam seus próprios mestres absolutos. Mas, e o indivíduo que ainda está no início da escada, que depende de uma autoridade externa, que se vale de todo tipo de muletas, obrigado a submeter-se a um código moral, que, na realidade, pode não lhe ser adequado?".

Krishnamurti responde:

"Veja o que se passa no mundo. Os fortes, os violentos, os poderosos, os homens que usurpam e exercem o poder sobre os outros, estão no topo; no sopé estão os fracos e mansos, que lutam e se debatem. Em contrapartida, pense na árvore, cuja força e glória provêm de suas raízes profundas e ocultas; no caso da árvore, o topo está coroado pelas folhas delicadas, brotos tenros e os ramos mais frágeis. Na sociedade humana - pelo menos em sua atual constituição -, os fortes e os poderosos são sustentados pelos fracos. Na natureza, ao contrário, é o forte e o poderoso que suportam o fraco. Enquanto você insistir em ver cada problema com uma mente pervertida, distorcida, continuará aceitando o atual estado de coisas. Quanto a mim, encaro a questão sob outro ponto de vista... Como suas convicções não resultam de sua própria compreensão, você fica repetindo o que é dado pelas autoridades; você acumula citações, opõe uma autoridade a outra, o antigo contra o novo. Nada tenho a dizer. Mas se você encarar a vida de um ponto de vista que não seja deformado nem mutilado pela autoridade, nem amparado pelo conhecimento de outros, e sim que brote dos seus próprios sofrimentos, de seus pensamentos, de sua cultura, de seu entendimento, de seu amor - então você compreenderá o que digo. Pessoalmente - e espero que você entenderá o que digo agora -, não tenho crenças e não pertenço a nenhuma tradição". (2)

"Sempre tive esta atitude diante da vida. Sendo um fato que a vida varia de dia para dia, as crenças e tradições não são apenas inúteis para mim, como ainda, se eu me deixasse prender por elas, elas me impediriam de compreender a vida... Você pode alcançar a libertação, não importa onde você esteja e quais sejam as circunstâncias que o rodeiam, mas isso significa que você necessita ter a força do gênio. Porque o gênio não passa, afinal, da habilidade de livrar-se das circunstâncias nas quais se está enredado, habilidade de escapar-se do círculo vicioso... Você pode retrucar: 'Eu não tenho essa espécie de força'. É esse exatamente o ponto em que me detenho. A fim de que você descubra sua própria força, o poder que existe em você, você precisa estar preparado e disposto a enfrentar todo tipo de experiência. Ora é isso precisamente o que você se recusa a fazer."

Esse modo de falar é despojado, revelador e inspirador. Ele desfaz as nuvens de filosofia que confundem nosso pensamento e restaura as fontes da ação. Ele estabiliza as superestruturas vacilantes dos ginastas verbais e varre do chão os entulhos. Ao invés de uma corrida de obstáculos, ou de uma ratoeira, ele faz da vida diária um percurso agradável.

Em conversa com seu irmão Théo, disse certa vez Van Gogh:

"Cristo foi tão infinitamente grande porque nenhuma mobília ou outros quaisquer acessórios jamais atravessaram seu caminho".

Sente se o mesmo a respeito de Krishnamurti. Nada se interpõe em seu caminho. Sua trajetória, única na história dos líderes espirituais, lembra-nos a do épico Gilgamesh. Aclamado em sua juventude como o futuro Salvador, Krishnamurti renunciou ao papel que lhe preparavam, recusou todos os discípulos, rejeitou todos os mentores e preceptores. Não deu início a nenhuma nova fé ou dogma, questionou tudo, alimentou dúvidas (especialmente em momentos de exaltação), e, à custa de luta e perseverança heróicas, livrou-se da ilusão e encantamento, do orgulho, da vaidade, e de toda forma sutil de domínio sobre os demais. Caminhou para a verdadeira fonte da vida em busca de sustento e inspiração. Resistir aos ardis e armadilhas dos que procuravam escravizá-lo e explorá-lo exigiu dele permanente vigilância. Ele libertou sua alma, por assim dizer, do mundo inferior e do mundo superior, e dessa forma abriu-lhe "o paraíso dos heróis".

Será preciso definir essa situação?

Existe algo nas afirmações de Krishnamurti que faz a leitura de livros parecer completamente supérflua. Há também outro fato, ainda mais impressionante, ligado a suas afirmações, como oportunamente assinala Suarès, a saber: que "quanto mais claras suas palavras, menos compreendida é sua mensagem".

Krishnamurti disse um dia:

"Tenho-me expressado de modo vago; poderia ser perfeitamente explícito, mas não é minha intenção ser assim. Pois, definida uma coisa, ela está morta..."

Não, Krishnamurti não define, não responde Sim, ou Não. Ele remete quem o interroga de volta a si próprio, forçando-o a buscar a resposta dentro de si. Ele repete constantemente:

"Não peço que vocês acreditem no que digo... Não quero nada de vocês, nem seu bom conceito, sua concordância, nem que vocês me sigam. Não peço para vocês acreditarem no que digo, e sim para que o compreendam".

Colaborar com a vida - eis o que ele enfatiza permanentemente. Vez ou outra ele impinge verdadeira chicotada - sobre os presumidos.

"O que vocês conseguiram - pergunta ele - com todas as suas belas frases, seus slogans e rótulos, seus livros? Quantas pessoas vocês tornaram felizes, não num sentido passageiro, mas duradouro?".

E assim por diante.

"É uma grande satisfação alguém atribuir-se títulos, nomes, isolar-se do mundo e julgar-se diferente dos outros! Mas, se tudo que vocês dizem é verdade - salvaram vocês um único companheiro de sua tristeza e sofrimento?"

Todos os recursos de proteção - sociais, morais, religiosos - que dão a ilusão de apoio e ajuda aos fracos, de sorte que eles se orientem para uma vida melhor, são precisamente os que impedem os fracos de tirarem proveito da experiência direta da vida. Ao invés da experiência pura e imediata, os homens procuram usar proteções e assim se mutilam. Tais recursos tornam-se instrumentos de poder, de exploração material e espiritual. (Interpretação de Suarès).

Uma das diferenças marcantes entre um homem como Krishnamurti e artistas em geral situa-se nas suas respectivas atitudes em relação ao papel que representam. Krishnamurti salienta que existe uma oposição constante entre o gênio criativo do artista e seu ego. O artista imagina - diz ele - que é o seu ego que é grande e sublime. Esse ego quer usar em proveito e engrandecimento próprios o momento de inspiração, quando entra em contato com o eterno, momento esse precisamente em que o ego está ausente, substituído pelo resíduo de sua própria vívida experiência. É a intuição da pessoa - insiste Krishnamurti - que deveria ser seu único guia. Quanto aos poetas, músicos e artistas em geral, deveriam eles de fato desenvolver o anonimato, deveriam distanciar-se de suas criações. Com a maioria dos artistas, porém, ocorre exatamente o contrário: eles querem ver suas assinaturas presentes em suas criações. Numa palavra: enquanto o artista se agarrar ao individualismo, ele jamais conseguirá tornar permanente a sua inspiração ou seu poder criativo. A qualidade ou condição de gênio é apenas a primeira fase da libertação.

Não sou tradutor; tive dificuldade para transcrever e resumir as observações e reflexões anteriores. Não estou tentando dar a totalidade do pensamento de Krishnamurti, conforme revelado no livro de Carlo Suarès. Fui levado a falar dele porque - por mais solidamente que Krishnamurti possa estar ancorado na realidade - involuntariamente ele criou um mito e uma lenda de si mesmo. As pessoas não admitem sem mais nem menos que um homem, que se tornou simples, franco e confiável, não esteja escondendo algo muito mais complexo, muito mais misterioso. Alegando que desejam livrar-se das dificuldades cruéis em que se encontram, o que eles realmente adoram é tornar tudo difícil, obscuro e passível de realizar-se somente num futuro remoto. A última coisa que em princípio admitiriam é que eles próprios criam suas dificuldades. Se em algum momento se permitem aceitar que a realidade existe - no cotidiano - é sempre referindo-a como a "cruel" realidade. Falam dela como oposta à realidade divina ou, podemos dizer, como um paraíso diáfano, escondido. A esperança de que poderemos um dia acordar para uma condição de vida completamente diferente da que experimentamos todos os dias transforma as pessoas em vítimas propensas a todo tipo de tirania e repressão. O ser humano é estupidificado pela esperança e pelo medo. Vive no dia-a-dia o mito de que poderá um dia escapar da prisão que criou para si mesmo, e que ele atribui à maquinação dos outros. Todo verdadeiro herói constrói sua própria realidade, e, ao libertar-se, destrói o mito que nos prende ao passado e ao futuro. Essa é a verdadeira essência do mito: esconder o maravilhoso aqui e agora.

HENRY MILLER
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