terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A salutar necessidade de solidão


Para o total desenvolvimento do ser humano, a solidão como meio de cultivar a sensibilidade se impõe. É preciso que se saiba o que significa estar só, o que significa meditar, o que significa morrer; e as implicações da solidão, da meditação, da morte só podem ser conhecidas se as procurarmos. Podemos indicá-las, mas a aprendizagem por meio de indicações não representa a experiência da solidão ou da meditação. Para vivenciar o que seja solidão e o que seja meditação, precisamos estar em sentido de busca; só a mente que está em estado de busca é capaz de aprender. Mas, quando a busca é suprimida pelo conhecimento antecipado, ou pela autoridade e experiência de outrem, então, a aprendizagem se torna uma simples imitação, e a imitação faz o ser humano repetir o que é aprendido, sem vivenciá-lo

Ensinar não é simplesmente comunicar informação; é, isto sim, o cultivo de uma mente inquisitiva. Tal mente penetrará a questão do que seja religião, e não se limitará a aceitar as religiões estabelecidas, com seus templos e rituais. A busca de Deus ou da verdade, ou o nome que tenha — e não a mera aceitação da crença e do dogma — é que é a verdadeira religião. 

Assim como o aluno escova os dentes todos os dias, toma banho todos os dias, aprende coisas novas todos os dias, assim também deve ocorrer a ação de sentar-se em silêncio com os outros ou sozinho. Esta solidão não pode ser produzida mediante instrução, nem pode ser pressionada pela autoridade externa da tradição, ou induzida pela influência daqueles que querem sentar-se e permanecer em silêncio, mas são incapazes de estar sós. A solidão ajuda a mente a ver com clareza, como num espelho, e a libertar-se do vão esforço da ambição, com todas as complexidades, medos e frustrações, que são o resultado da atividade centrada em si mesma. A solidão dá a mente uma estabilidade, uma constância que não deve ser medida em termos de tempo. Essa clareza mental constitui o caráter. A falta de caráter é o estado de autocontradição.

Krishnamurti

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Você é psicologicamente dependente?


Para se ter energia física, você deve naturalmente tomar alimentos adequados, ter a justa proporção de repouso, etc. Mas, há também a energia psicológica, a qual se dissipa de várias maneiras. Para ter essa energia psicológica, a mente busca por estímulos. Frequentar a igreja, assistir partidas de futebol, entregar-se à literatura, ouvir música, assistir reuniões do mesmo gênero desta aqui — todas essas coisas lhe estimulam; e se o que você deseja é ser estimulado, isso significa que, psicologicamente, você é dependente. A busca de estímulo, em qualquer forma que seja, implica dependência de alguma coisa — de uma bebida, uma droga, um orador, ou de entrar numa igreja; e, certamente, a dependência de estímulo não apenas embota a mente, mas também ocasiona dissipação de energia. Assim, para conservarmos nossa energia, deve desaparecer toda espécie de dependência ou estímulo; e, para ocorrer o desaparecimento da dependência, precisamos nos tornar conscientes dela. Se, para ter estímulo, uma pessoa depende de sua mulher ou de seu marido, de um livro, de seu cargo no escritório, de ir aos cinemas — qualquer que seja o gênero de estímulo — deve, em primeiro lugar, estar consciente disso. O aceitar simplesmente os estímulos e com eles viver, dissipa a energia e deteriora a mente. Mas, se a pessoa se torna consciente dos estímulos e descobre o significado que tem em sua vida, dessa maneira poderá ficar livre deles. Pelo autopercebimento — que não é autocondenação, etc., porém, estar simplesmente consciente, sem escolha, de si próprio pode um homem conhecer todas as formas de influência, todas as formas de dependência, todas as formas de estímulo; e esse próprio movimento da ação de aprender lhe dá a energia necessária para se libertar de todas as dependências e de todos os estímulos. 

Krishnamurti — 26 de julho de 1964

sábado, 28 de janeiro de 2012

O que é meditação e a mente iluminada

Meditação é o total "esvaziamento" da mente — e não pode se esvaziar a mente à força, de acordo com um certo método, escola ou sistema. Mais uma vez, é necessário perceber a extrema falácia de todos os sistemas. A prática de um sistema de meditação é busca de experiência; é esforço para alcançar uma experiência mais elevada, ou a experiência final; e quem compreende a natureza da experiência rejeita tudo isso, que se acaba para sempre, porque sua mente já não está seguindo ninguém; ela não busca experiência, e não tem nenhum desejo de visões. Toda a busca de visões, todo intento de aumentar a sensibilidade por meios artificiais, — drogas, disciplinas, rituais, adoração, oração — constitui atividade egocêntrica.

Nossa questão, pois, é a seguinte: Como pode a mente que se tornou superficial, por influência da tradição, pela ação do tempo, da memória, da experiência — como pode essa mente se libertar, sem esforço, de sua superficialidade? Como pode se tornar tão completamente desperta que a busca de experiência nada mais signifique? Compreendem? A mente que está toda iluminada não pede mais luz — ela própria é luz; e toda influência, toda experiência que penetra nessa luz, nela se consome de instante a instante, de modo que a mente está sempre clara, imaculada, inocente. Só a mente iluminada, a mente inocente pode ver o que está fora dos limites do tempo. E como pode nascer esse estado mental?

Krishnamurti - Saanen, Suiça, 30 de julho de 1964

A forma suprema de segurança absoluta

O homem cego ao perigo é um tolo; há algo de errado com ele. Nós, entretanto, não vemos o perigo dessas ilusões nas quais buscamos segurança. O homem que age pela inteligência percebe o perigo. Nessa inteligência há segurança absoluta. O pensamento criou várias formas de ilusão - nacionalidades, classes, diferentes deuses, crenças, dogmas, rituais diferentes e as extraordinárias superstições religiosas que permeiam o mundo - e nelas ele tem procurado segurança. Não vemos o perigo dessa segurança, dessa ilusão. Quando percebemos esse perigo - não como uma idéia, mas como um fato real - esse ver é inteligência, a forma suprema de segurança absoluta. Portanto, existe uma segurança absoluta: é a de ver o verdadeiro no falso.

 Krishnamurti - erguntas e Respostas - Cultrix

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Como acabo com o conflito nas relações?


Tem o pensamento um lugar no relacionamento? Se tem, nesse relacionamento existe uma limitação, portanto, existe divisão, portanto, existe conflito. Certo? Na minha relação com uma esposa, ou com um marido, ou com uma garota, garoto ou assim por diante, se nessa relação o pensamento tiver grande participação, sendo o pensamento limitado, então, essa mesma limitação cria uma divisão entre ele e ela. Portanto, onde há divisão tem que haver conflito.  Como vocês sabem muito bem, em todas as nossas relações existe conflito, mesmo que você goste do outro — não usarei a palavra amor — por mais que goste do outro, ou tenha prazer com o outro isso é sempre limitado, portanto, cria conflito. Isso é lei, é lógica, é verdade. Então, o pensamento tem seu lugar adequado no mundo da tecnologia, no mundo comum mas, psicologicamente, interiormente, o pensamento não tem lugar algum. Então, existe um lugar que cria a personalidade, o "eu". E o "eu", o ego, a persona é muito limitada. Ela pode se imaginar como maravilhosa, pode imaginar que consegue fazer coisas extraordinárias. Mas, essa imaginação, essa imagem, ainda assim é muito, muito limitada, pequena. Ver a verdade disto — isso é tudo — não se deve fazer nada, além de apenas enxergar o fato. E, esse mesmo fato, a percepção do fato, como se percebe algo perigoso, como um animal perigoso, um precipício perigoso, se você percebe isto como um fato, uma realidade, então, você rompe com toda a cadeia de continuidade do ego. Só então é possível viver com o outro sem uma sombra se quer de conflito. Porque o conflito é a própria essência da violência. Pensamos que a violência está do lado de fora, os terroristas, os sequestradores, as guerras, as pessoas que andam armadas como neste país, onde é permitido que todos andem armados, um país extraordinário! Você entra numa loja e pode comprar uma arma. Então, a violência não está apenas do lado de fora mas, a violência no relacionamento existe enquanto houver divisão, como "eu" e o "você". O "eu" perseguindo minhas ambições, minha ganância, meus propósitos, meus objetivos, e ela fazendo o mesmo. Portanto, estamos sempre vivendo em conflito. E, percebendo o conflito, você diz: "Como resolvê-lo?" Então, voltamos, o cérebro sendo condicionado a solução dos problemas desde a infância, então dizemos, "Tudo bem, veremos como resolvo, ou mudo, ou produzo, o fim do conflito" Isso se torna um problema. Certo? É isso que vocês estão fazendo agora: como acabo com o conflito?  Mas, se você viu a raiz dele, a causa dele, o que possui uma causa, essa causa pode ser alterada, pode ser removida. A causa do conflito é a sensação de divisão trazida pelo pensamento, que é limitado. E o que é limitado, religiões são limitadas, suas crenças são limitadas, qualquer coisa construído pelo pensamento é limitada e, portanto, deve criar conflito. Se você perceber o fato disso, a verdade disso, então, a própria verdade é o catalisador que põe fim ao conflito. 

Krishnamurti - Ojai, California, 1984 - Parte da palestra nº 1

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Tocando o Intocável

Extrato de uma de várias reuniões realizadas com um 
pequeno grupo em Malibu, Califórnia em 29/03/1970.

domingo, 22 de janeiro de 2012

O amor não é prazer

Sem a compreensão do prazer você nunca poderá compreender o amor. O amor não é prazer. Amor é algo completamente diferente. E, como disse, para compreender o prazer, você tem que aprender sobre ele. Para a maioria de nós, para cada ser humano, o sexo é um problema. Por que? Ouça isto com muito cuidadosamente. Porque não podendo resolvê-lo, você foge disso. O sannyasi foge disto fazendo voto de celibato, via negação. Por favor veja o que acontece com uma mente assim. Ao negar algo que é uma parte de seu todo - as glândulas e tudo o mais - suprimindo isto, você se torna ácido, e existe uma batalha constante em andamento dentro de você. Como já falamos, até parece que só há dois modos de abordar qualquer questão: suprimindo isto ou fugindo disto. Suprimir isto realmente é a mesma coisa que fugir para longe disto. E nós temos nas atividades do dia-a-dia toda uma rede de fugas - muito complexa, intelectual, emocional. Há várias maneiras de fugir, nas quais nós não entraremos agora. Mas nós temos este problema. O sannyasi escapa disto de uma forma, mas ele não resolve nada, ele suprime fazendo um voto, e o problema inteiro fica efervescendo dentro dele. Ele pode vestir a túnica da simplicidade, mas isso também se tornou um assunto importantíssimo para ele, tal como o é para o homem que vive uma vida comum. Como você resolve este problema?

Autor: Krishnamurti - O Livro da Vida

sábado, 21 de janeiro de 2012

Sobre o cultivo da virtude

A vida da maioria das pessoas é vazia, é pobre. Embora possam ter um cabedal de conhecimentos, sua vida é pobre, contraditória, incompleta, infeliz. Tudo isso é pobreza, e as pessoas disperdiçam a vida tentando enriquecer interiormente, cultivando diversos tipos de virtude e todo o resto de tolices. Não que a virtude não seja necessária, pois é ordem, e a ordem só pode ser comprendida quando vivemos na desordem. O fato é que conduzimos nossas vidas desordenadamente. Desordem significa contradição, confusão, desejos desencontrados, dizer uma coisa e fazer outra, ter ideais e o desacordo entre você e esses ideais. Tudo isso é desordem, e quando tomamos consciência e colocamos nesse fato toda nossa atenção, surge a ordem, que é uma virtude - algo vivo, não algo inventado, praticado e feio.

Krishnamurti - Nossa Luz Interior - Ed. Agora

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O problema da desigualdade


Nós, em geral, gostamos de conversas fúteis; e as conversas fúteis são extraordinariamente estimulantes, quer se trate de Mestres e devas, quer se trate de nossos vizinhos. Quanto mais embotados estamos, tanto mais adoramos uma conversa fútil. Quando estamos enfadados da tagarelice social, desejamos tagarelar a respeito de algo superior. Estamos interessados, não no problema da desigualdade, mas, sim, nas guloseimas servidas nas conversas sobre estranhas entidades que não vemos, que nos proporcionam um meio de fugirmos à nossa superficialidade. Afinal de contas, os Mestres e o devas são nossa própria projeção; quando os seguimos, estamos seguindo nossas próprias projeções. Se eles nos dissessem: “Abandonai o vosso nacionalismo, vossa sociedades, não sejais ganancioso, não sejais cruel”, trataríamos imediatamente de substituí-los por outros que nos dessem satisfação. Vós desejais que eu vos ajude a entrar em contato com os Mestres. A dizer a verdade, não tenho nenhum interesse pelos Mestres. Fala-se muito a respeito deles, e isso se tornou um meio engenhoso de explorar os outros. Criamos uma confusão no mundo, e queremos, agora, que um irmão mais velho venha ajudar-nos a sair dela. Há muita mistificação nisso. A divisão entre Mestre e discípulo, a ascensão da escala hierárquica do sucesso – isso é verdadeiramente espiritual? Toda essa idéia de transformação hierárquica, de luta para nos tornarmos o que chamamos espiritual, para alcançarmos a libertação – é espiritual isso? Quando nossos corações estão vazios, enchemos com as imagens de Mestres, o que significa que não existe amor. Quando amamos alguém, não temos o sentimento de igualdade ou desigualdade. Por que vos ocupais tanto com a questão dos Mestres? Os Mestres são importantes para vós, por causa da vossa noção da autoridade, e vós atribuis autoridade, porque vos agrada; isso é auto-lisonja.

O problema da desigualdade é mais fundamental do que o desejo de entrar em contato com os Mestres. Há desigualdade de capacidade, de pensamento, de ação – desigualdade entre o gênio e o ignorante, entre o homem livre e o que está preso a uma rotina. Já se tem tentado quebrar essa desigualdade, com revoluções de toda espécie, no processo das quais outras desigualdades foram criadas. O problema é como transcender a noção da desigualdade, do inferior e do superior. Isso é espiritualidade verdadeira - e não a busca de Mestres, que implica a manutenção da noção da desigualdade. O problema não é de como implantar igualdade, visto que a igualdade é uma impossibilidade. Vós sois inteiramente diferente de outro. Sois mais perspicaz, muito mais esperto do que outro; tem uma canção no vosso coração, o outro tem o coração vazio, e para ele uma folha morta é uma folha morta, que se lança ao fogo. Algumas pessoas são dotadas de capacidade extraordinária, são ágeis e eficientes. Outros são tardos, obtusos, desatentos. É um nunca acabar de diferenças físicas e psicológicas, e não podemos anulá-las - isso é uma impossibilidade. O mais que podemos fazer é proporcionar uma oportunidade aos de pouca inteligência, em vez de dar-lhes pontapés, e explorá-los.

O problema, pois, não é de como entrar em contato com Mestres e devas, e, sim, de como transcender a noção de desigualdade; a busca de contato com Mestres é ocupação de indivíduos extremamente obtusos. Quando conheceis a vós mesmo, conheceis o Mestre. Um Mestre verdadeiro não pode ajudar-vos, porque vós mesmos tendes de compreender-vos. Vivemos em busca de Mestres falsificados; buscamos conforto, segurança, e projetamos a espécie de Mestre que desejamos, esperando que esse Mestre nos dê tudo o que desejamos. Uma vez que não existe essa coisa chamada conforto, o problema é muito mais fundamental, isto é, trata-se de transcender essa noção de desigualdade. Sabedoria não é a luta para “vir a ser” mais e mais.

Ora bem, é possível transcender a noção de desigualdade? Porque a desigualdade existe, incontestavelmente. Que acontece quando não negamos a desigualdade, quando não nos chegamos a ela com preconceito na mente, mas a encaramos diretamente? Há o arraial sórdido e há também a casa bonita e limpa: um e outro são o que é. Qual a vossa atitude diante do feio e do belo? Disso depende a solução. Com o belo quereis identificar-vos, e o feio afastais para o lado. Para o que é inferior não tendes consideração alguma, mas para com o superior vos portais com a maior consideração e atenção. Nossa atitude é de identificação com o superior, e de rejeição do inferior; olhamos para cima, rastejando e para baixo com menosprezo.

A desigualdade só pode ser transcendida quando compreendemos a nossa atitude perante ela. Enquanto resistirmos ao feio e nos identificarmos com o belo, será inevitável toda esta miséria. Mas se consideramos a desigualdade com uma atitude isenta de condenação, de identificação, ou de julgamento, então nossa reação é de todo diferente. Experimente e verá como se opera uma extraordinária transformação em sua vida. A compreensão do que é traz o contentamento – que não é o contentamento da estagnação, o contentamento causado pela posse de bens, pela posse de uma idéia, de uma mulher. O contentamento é o estado em que procuramos conhecer o que é, tal como é, sem nenhuma barreira de permeio. Só então existe amor, o amor que destrói a noção de desigualdade; e esta é a única coisa que é revolucionária, o único fator de transformação. Uma vez que não possuímos aquela chama da revolução, enchemos os corações e a s mentes com idéias de revolução da esquerda ou da direita,de modificação do que foi. Daí nada há que esperar. Quanto mais reformamos, maior se torna a necessidade de novas reformas.

Não é de importância saber a maneira de entrar em contato com os Mestres, porque eles nenhuma significação tem na vida. O que importa é compreendermos a nós mesmos, pois o Mestre é uma ilusão. Pela vossa falta de compreensão própria, está criando cada vezmais infelicidade no mundo. Olhai o que está acontecendo no mundo, e vê a estreiteza espirtual que ostentam os zelosos devotos da paz, dos Mestres, do amor e da fraternidade. Estão todos empenhados em vosso próprio proveito, embora o disfarceis com belas palavras. Desejais que os Mestres vos ajudem a vos tornardes mais glorificados e mais egocêntricos.

Sei que já respondi a esta mesma pergunta em ocasiões diferentes e de maneiras diferentes. Sei também que, apesar de tudo o que digo, vós ireis executar os vossos rituais e fazer ressoar as vossas espadas, pelo rei e pela pátria. Não desejais compreender e resolver o problema da desigualdade. Já me tem escrito cartas, dizendo: “Sois muito ingrato para os Mestres, que vos educaram”. É fácil dizer tais coisas. São palavras ocas. Cada um deve descobrir por si próprio que nenhum Mestre pode ajudá-lo. É ingratidão perceber aquilo que é falso e declará-lo falso? Quereis que eu seja grato à vossa idéia, à vossa formulação de um Mestre; e quando vossas idéias estão perturbadas, chamai-me de ingrato. O problema não é o de mostrar gratidão para com os Mestres, mas sim o de compreendermos a nós mesmos.

Há uma grande alegria no compreendermos e descobrirmos o que somos, o integral conteúdo de nós mesmos, minuto por minuto. O auto-conhecimento é o começo da  sabedoria. Sem auto-conhecimento nada podeis conhecer – ou se conheceis algo, dele fareis mau uso. Seguir o Mestre é fácil; mas ter auto-conhecimento, observar passivamente cada pensamento e cada sentimento, isso não é fácil. Não podeis observar, se há julgamento ou identificação; porque a identificação e o julgamento impedem a compreensão. Se observais passivamente, a coisa que observais começa a desdobrar-se, e há então compreensão, a qual se renova momento por momento.

Krishnamurti - O que estamos buscando?

A ordem não é mensurável, só o é a desordem

Voávamos suavemente a trinta e sete mil pés de altura e o avião estava repleto. Havíamos passado o mar e nos aproximávamos da terra; ambos, o mar e a terra, estavam muito abaixo de nós, os passageiros nunca pareciam deixar de falar ou de beber ou de folhear as páginas duma revista; depois projetaram um filme. Constituíam um grupo muito barulhento que devia ser alimentado e entretido; dormiam, roncavam e estavam de mãos dadas. Massas de nuvens que se estendiam de horizonte a horizonte, prontamente cobriram completamente a terra, o espaço, a profundidade e também o ruído da fala. Entre a terra e o avião se viam intermináveis nuvens brancas e acima estava o delicado céu azul. No assento junto à janela ele se achava intensamente desperto observando a forma cambiante das nuvens e a branca luz que se refletia sobre elas.

Tem a consciência alguma profundidade, ou somente uma agitação superficial? O pensamento pode imaginar sua profundidade, pode afirmar que a consciência é profunda ou pode considerar só as ondas da superfície? O pensamento mesmo, tem alguma profundidade? A consciência está cheia de seu conteúdo, seu conteúdo é sua total limitação. O pensamento é a atividade do externo; em certos idiomas, ‘pensamento’ quer dizer ‘o de fora’. A importância que lhe é dada às camadas ocultas da consciência segue estando na superfície, não tem profundidade alguma. O pensamento pode dar-se a si mesmo um centro como o ‘ego’, o ‘eu’ e esse centro não tem em absoluto nenhuma profundidade; as palavras, por aguda e sutilmente que tem sido elaboradas, não são profundas. O ‘eu’ é uma fabri¬cação do pensamento – em palavra e em identificação. O ‘eu’ que busca profundidade na ação, na existência, não tem significado algum; todos seus intentos de estabelecer uma profundidade na relação, terminam nas multiplicações de suas próprias imagens; o ‘eu’ con¬sidera que as sombras dessas imagens são profundas. As atividades do pensamento carecem de profundidade; seus prazeres, seus temores, sua dor estão na superfície. A mesma palavra ‘superfície’ indica que há algo debaixo, ou um grande volume de água ou muito pouca profundidade. Mente superficial ou mente profunda, são palavras do pensamento, e o pensamento em si mesmo é superficial. O volume que existe detrás do pensamento é a experiência, o conhecimento, a memória, as coisas que se foram, as que só são para recordar-se, as coisas sobre as quais se pode ou não se pode atuar.

Muito abaixo de nós, distante sobre a terra, corria um rio, enroscando em amplas curvas entre granjas espaçadas aqui e lá, e nos sinuosos caminhos havia formigas que reptavam. As montanhas estavam cobertas de neve, e os vales luziam verdes e cheios de sombras profundas. O sol se achava diretamente frente a nós e descia penetrando no mar à medida que o avião aterrizava entre a fumaça e os ruídos de uma cidade em expansão.

Existe profundidade na vida, na existência? Existe em absoluto? É superficial toda relação? Pode alguma vez o pensamento descobrir isto? O pensamento é o único instrumento que o homem tem cultivado e aguçado, e quando este instrumento é negado como meio para compreender a profundidade da vida, então a mente busca outros meios. Levar uma vida superficial, prontamente se torna fatigante, aborrecida, sem significado algum, e disto emerge a constante perseguição do prazer, os temores, o conflito e a violência. Ver os fragmentos que o pensamento tem criado e suas atividades, ver isso como uma totalidade, é o cessar do pensamento. A percepção do total é possível somente quando o observador, que é um dos fragmentos do pensamento, não se acha ativo. Então a ação é relação e jamais conduz para o conflito e a dor.

Só o silêncio tem profundidade, como o amor. O silêncio não é o movimento do pensar, nem o é o amor. Só então as palavras, as profundas e as superficiais, perdem seu significado. Não há medida para o amor, nem o há para o silêncio. O que é mensurável, é pensamento e tempo o pensamento é tempo. A medida é necessária, porém quando o pensamento a leva para a ação e para as relações, começam então o mal e a desordem. A ordem não é mensurável, só o é a desordem.

O mar e a casa estavam tranqüilos, e atrás deles os morros, com as flores silvestres da primavera, permaneciam silenciosos.

13 de Outubro de 1973

Autor: Krishnamurti

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Existe segurança psicológica?



2º Diálogo realizado entre David Bohm (Físico), David Shainberg (Psiquiatra), e J.Krishamurti em Brockwood Park em Maio de 1976

K: Vamos continuar a falar sobre o que conversamos ontem ou vocês gostariam de começar algo novo?

Bohm: Acho que havia um ponto que não estava totalmente claro quando discutimos ontem. Qual seja, nós admitimos mais propriamente que a segurança psicológica era errada, era ilusão, mas em geral, acho que não tornamos muito claro o por que de ser uma ilusão. A maioria das pessoas considera que a segurança psicológica é uma coisa real e muito necessária e quando ela é perturbada ou quando a pessoa está com medo, ou infeliz ou mesmo tão perturbada que pode ficar psicologicamente perturbada e precisar de tratamento. Ela sente que a segurança psicológica é necessária antes mesmo que possa c começar a fazer alguma coisa.

K: Sim, certo.

Bohm: E acho que não está de todo claro por que se deveria dizer que ela não é realmente tão importante quanto a segurança física. 

K: Sim. Não acho que deixamos isso razoavelmente claro, não? Mas, vamos examinar. 

Bohm: Sim.

K: Existe realmente segurança psicológica absoluta?

Bohm: Acho que não discutimos isso completamente da última vez.

K: Claro. Ninguém aceita isso. Mas estamos examinando, entrando nesse problema.

Shainberg: Mas acho que dissemos algo ainda mais profundo ontem e é que — pelo menos foi como resumi para mim mesmo e é que sentimos — corrijam-me se acharem que estou errado aqui, que o condicionamento estabelece o nível de importância da segurança psicológica e isso por sua vez cria insegurança. E é  o condicionamento que cria a segurança psicológica como um foco. Vocês concordariam com isso?

K: Acho que queremos dizer uma coisa diferente.

Shainberg: O que querem dizer?

K: Em primeiro lugar, senhor, tomamos como certo que existe segurança psicológica.

Shainberg: Ok. Bem, pensamos que podemos alcançá-la.

K: Sentimos que existe.

Shainberg: Certo. Está certo.

Bohm: Sim, acho que se você dissesse a alguém que estivesse se sentindo muito perturbado mentalmente, que não existe segurança psicológica, ele apenas se sentiria pior.

K: Colapso. Naturalmente.

Shainberg: Certo.

K: Estamos falando de pessoas razoavelmente sensatas, racionais.

Shainberg: Ok.

K: Estamos questionando se existe alguma segurança psicológica de fato, permanência, estabilidade, um sentimento de existência psicologicamente bem fundamentada, bem arraigada, estável.

Shainberg: Talvez, se pudéssemos falar mais, o que seria segurança psicológica?

K: No final, eu creio. Creio em alguma coisa. Pode ser a crença mais tola, uma crença neurótica. Acredito nisso.

Shainberg: Certo.

K: Isso lhe confere uma tremenda sensação de existência, vida, vitalidade e estabilidade.

Bohm: Acho que você podia pensar em dois exemplos, um é que se eu pudesse realmente acreditar que depois de morrer iria para o céu e estar totalmente certo disso, então eu ficaria muito seguro internamente, não importa o que aconteça.

Shainberg: Isso faria você se sentir bem.

Bohm: Eu diria, não preciso realmente me preocupar, pois tudo é um problema temporário e então fico bastante seguro que com o tempo tudo vai ficar muito bem. Entendem?

K: Essa é mais ou menos a atitude dos asiáticos.

Bohm: Ou, se me considero um comunista, então digo com o tempo o comunismo vai resolver tudo e vamos passar por muitos problemas agora mas, tudo vai valer a pena e vai funcionar, e no fim tudo ficará bem.

Shainberg: Certo.

Bohm: Se eu pudesse estar certo disso então, eu diria que me sinto muito seguro internamente, mesmo se as condições forem difíceis.

Shainberg: Ok. Certo.

K: Assim, estamos questionando, embora a pessoa tenha estas fortes crenças que lhe conferem uma sensação de segurança, permanência, se isso existe na realidade, de fato...

Shainberg: Não é possível. A pergunta é: isto é possível?

K: Isto é possível? Posso acreditar em deus e isso me dá tremenda sensação da impermanência deste mundo mas, pelo menos, existe permanência em outro lugar.

Shainberg: Sim. Mas quero perguntar uma coisa ao David. Você acha que, por exemplo, um cientista, um sujeito que vai todo dia ao seu laboratório, ou pegamos um médico, ele está obtendo segurança. Consegue segurança na própria "automatização" de sua vida.

K: De seu conhecimento.

Shainberg: Sim, de seu conhecimento. Se ele continua fazendo isto, sente segurança. Com o cientista, onde ele consegue segurança?

Bohm: Ele acredita que está estudando as leis permanentes da natureza e realmente chegando a algo que significa alguma coisa.  Também alcançando uma posição na sociedade e estando confiante, sendo bem conhecido e respeitado e financeiramente seguro.

Shainberg: Ele acredita que estas coisas lhe darão a coisa (segurança). A mãe acredita que seu filho lhe dará segurança.

K: Psicologicamente você não tem segurança?

Shainberg: Sim. Ok. Certo. Esse é um bom ponto. Obtenho segurança a partir de meu conhecimento, de minha rotina, de meus pacientes, de ver meus pacientes, de minha posição.

Bohm: Mas nisso há conflito porque, se penso mais um pouco, duvido disso, questiono isso. Digo, não parece de todo seguro, qualquer coisa pode acontecer. Pode haver uma guerra, pode haver uma depressão, pode haver uma inundação.

K: Pode haver de repente uma porção de gente sensata no mundo!... (risos)

Shainberg: Você acha que há uma chance?

Bohm: Então eu digo que há conflito e confusão em minha segurança, pois, não estou certo a respeito.

Shainberg: Você não está seguro a respeito disso.

Bohm: Mas, se tenho uma crença absoluta em deus e no paraíso...

K: Isto é tão óbvio.

Shainberg: É óbvio. Concordo com você, mas acho que tem que ser em outras palavras, tem que ser realmente sentido por você.

K: Senhor, você, Dr.Shainberg, você é a vítima.

Shainberg: Serei a vítima.

K: Por hora. Você não tem uma forte crença?

Shainberg: Certo. Bem, eu não diria...

K: Você não tem uma sensação de permanência em algum lugar dentro de você?

Shainberg: Certo. Acho que sim.

K: Psicologicamente?

Shainberg: Sim, tenho. Tenho uma sensação de permanência sobre minha intenção.

K: Intenção, seu conhecimento.

Shainberg: Meu trabalho. Meu conhecimento.

K: O status.

Shainberg: Meu status, a continuidade de meu interesse. Sabe o que quero dizer?

K: Sim.

Shainberg: Há uma sensação de segurança no sentido de que posso ajudar alguém e posso fazer meu trabalho. Ok?

K: Sim. Isso lhe dá segurança, segurança psicológica.

Shainberg: Há alguma coisa a respeito dele que é segura. O que estou dizendo quando falo "segurança"? Estou dizendo que não estarei sozinho.

K: Não, não. Sentir-se seguro, que você tem algo que é imperecível.

Shainberg: O que significa...Não, não sinto desse modo. Sinto mais no sentido de o que vai acontecer com om tempo, vou ter que depender de o que vai ser da minha vida, vou ficar sozinho, ela vai ser vazia. Isto não é segurança?

K: Não, senhor. Como apontou o Dr. Bohm, se a pessoa tem uma forte crença na reencarnação, como todo o mundo asiático tem, então não importa o que aconteça, na próxima vida você terá uma chance melhor. Você pode ser miserável nesta vida mas, na próxima será mais feliz. Isso lhe dá uma grande sensação de segurança de "isto não é importante, mas aquilo é importante". E isso me dá uma sensação de grande conforto como, "Bem, de todo modo este é um mundo transitório e eventualmente chegarei lá, em alguma coisa permanente". Isto é humano...

Shainberg: Certo. Isto é no mundo asiático mas, acho que no mundo ocidental você não tem isso.

K: Oh, sim, você tem isso.

Shainberg: Com um foco diferente.

K: Naturalmente.

Bohm: É diferente, mas você sempre tem a busca por segurança.

Shainberg: Certo, certo. Mas, o que você acha que é segurança? Você se tornou cientista, foi para o laboratório, pegou nos livros todo o tempo. Certo? Nunca foi ao laboratório, mas teve seu próprio laboratório. Que diabos chama de segurança?

K: Segurança?

Bohm: Sim, mas o que ele chama de sua segurança? Conhecimento?

K: Ter alguma coisa a que você possa se agarrar e que não é perene. Pode parecer eventualmente mas, por hora, por enquanto, está lá para se segurar.

Bohm: Você pode sentir que ela é permanente. No passado, as pessoas costumavam a acumular ouro, porque o ouro é o símbolo do imperecível, elas podiam sentir.

Shainberg: Ainda temos pessoas que acumulam ouro. Temos homens de negócios, eles têm dinheiro.

Bohm: Você sabe que está lá de fato. Nunca vai se corroer, nunca vai sumir e você pode contar com ele.

Shainberg: Então, é uma coisa com que possa contar.

K: Contar com, segurar, agarrar-se, se apegar.

Shainberg: Acreditar em, o "eu".

K: Exatamente.

Shainberg: Eu sei que sou um médico. Posso confiar nisso. Conhecimento, experiência.

K: Experiência. E, por outro lado, tradição.

Shainberg: Tradição. Sei que se fizer isto com um paciente, terei este resultado. Posso não ter um bom resultado, mas terei aquele.

K: Então, acho que isso está bastante claro.

Bohm: Sim, está bastante claro que nós temos isso que faz parte de nossa sociedade.

K: Parte do nosso condicionamento.

Bohm: Nós queremos alguma coisa segura e permanente. A menos assim achamos.

Shainberg: Acho que o ponto de Krishnaji sobre o mundo oriental é que existe, acho, um sentimento no ocidente de querer a imortalidade.

K: É o mesmo. A mesma coisa.

Bohm: Você não diria que tanto quanto o pensamento pode projetar o tempo, o que ele quer, tanto quanto possível, ser capaz de projetar todas as coisas muito bem no futuro?

Shainberg: É isso que eu quis dizer quando falei de solidão: se não tenho que ter minha solidão.

Bohm: Em outras palavras, a antecipação do que está por vir já é o sentimento presente. Se você pode antecipar que alguma coisa ruim pode chegar, você já se sente mal. Portanto, você iria querer se livrar dela.

K: está certo.

Shainberg: Então você antecipa que ela não acontecerá.

Bohm: Que tudo será bom.

K: Certo.

Bohm: Eu diria que segurança seria a antecipação de tudo o que estará bem no futuro.

K: Bem. Tudo estará certo.

Shainberg: Continuará.

Bohm: Se tornará melhor. Se não está tão bom agora, se tornará melhor com certeza.

Shainberg: Desse modo, então, segurança é tornar-se?

K: Sim, tornar-se, aperfeiçoar-se.

Shainberg: Estava pensando no que vocês estavam dizendo outro dia sobre o brâmane. Qualquer um pode se tornar um brâmane, então, isso lhe dará segurança.

K: Isto é, uma crença projetada. Uma idéia projetada, um conceito confortante, satisfatório.

Shainberg: Certo. Vejo pacientes o tempo todo. A crença projetada deles é "Eu me tornarei — Eu encontrarei alguém para me amar". Vejo pacientes que dizem "Me tornarei chefe do departamento, um dia me tornarei o médico mais famoso, vou me tornar..." e a vida dele toda segue sempre assim. Porque tudo também está focado em ser o melhor tenista, o melhor...

K: Naturalmente, naturalmente.

Bohm: Parece que tudo está focado em antecipar que a vida vai ser boa, você diria isso?

K: Sim, a vida vai ser boa.

Bohm: Parece-me que você não levantaria a questão a menos que tivesse muita experiência de que a vida não é tão boa. É uma reação por ter tido tantas experiências de desapontamento, de sofrimento.

K: Você diria que nós não estamos cônscios do total movimento do pensamento?

Bohm: Não, não quero dizer, acho que a maioria das pessoas diria que é só natural, eu tive uma porção de experiências de sofrimento e desapontamento e perigo, e isso é desagradável e eu gostaria de ser capaz de antecipar que tudo vai ficar bem.

K: Sim.

Bohm: A primeira vista pareceria que é realmente muito natural. Mas agora você está dizendo que não é, existe alguma coisa profundamente errada nisso.

K: Estamos dizendo que não existe tal coisa como segurança psicológica. Nós definimos o que queremos dizer com segurança. Não temos que repisar isso vezes e vezes.

Shainberg: Não, acho que captamos isso.

Bohm: Sim, mas está claro agora que, veja, estas esperanças são de fato esperanças vãs, isso deveria ser óbvio, não deveria?

Shainberg: Essa é uma boa pergunta. Você quer dizer, Krishnaji, ele está levantando uma boa pergunta, é este negócio todo de você dizer que não tem sentido buscar segurança. Existe tal coisa?

K: Senhor, existe morte no fim de todas as coisas.

Bohm: Sim.

K: Você quer estar seguro nos próximos dez anos, isso é tudo, ou cinquenta anos. Depois não importa. Ou, se isso importa, então você acredita em alguma coisa: que deus existe, que você vai sentar perto de deus à sua direita, ou seja o que for em que acredite. Assim, estou tentando descobrir, não apenas que não existe permanência psicologicamente, que significa nenhum amanhã psicologicamente.

Bohm: Isso ainda não aconteceu.

K: Claro, claro.

Bohm: Podemos dizer empiricamente que sabemos que estas esperanças de segurança são falsas porque, primeiro você diz que existe a morte, depois, você não pode confiar em nada, materialmente tudo muda.

K: Tudo está fluindo.

Bohm: Mentalmente tudo em sua cabeça está mudando o tempo todo. Você não pode se fiar em seus sentimentos, não pode confiar que vai apreciar certa coisa que você aprecia agora, não pode confiar em ser saudável, não pode confiar no dinheiro.

K: E não pode confiar em sua esposa, não pode confiar em nada.

Shainberg: Certo.

Bohm: Então, esse é um fato. Mas estou dizendo que você está sugerindo algo mais profundo.

K: Sim.

Bohm: Não nos baseamos apenas nessa observação.

K: Não, isso é muito superficial.

Shainberg: Sim, concordo com você aí.

K: Então, se não existe segurança real, fundamental, profunda, então, existe um amanhã, psicologicamente?... E então você afasta toda esperança. Se não existe amanhã você afasta toda esperança.

Bohm: Você quer dizer com amanhã o amanhã em que as coisas ficarão melhores?

K: Melhores, mais sucesso, maior compreensão, mais amor, vocês sabem, esse negócio todo.

Shainberg: Está um pouco rápido, esse salto. Eu acho que há um salto aí porque, segundo ouvi, ouvi você dizer que não há segurança.

K: Mas isso é assim.

Shainberg: É assim. Mas, para eu dizer, realmente dizer "Veja, sei que não existe segurança".

K: Por que você não diz isso?

Shainberg: É nisso que estou chegando. Por que não digo isso?

Bohm: Bem, primeiramente, não é um fato — apenas um fato observado — que não existe nada em que você possa confiar psicologicamente?

Shainberg: Certo. Mas veja, eu acho que há uma ação aí. Krishnaji está dizendo "por que você não diz?". "Por que não diz que não existe segurança?" Por que não digo?

K: Posso: Sou capaz?  Você racionaliza o que estamos dizendo sobre segurança? Diz "sim", como uma ideia ou realmente como um fato?

Shainberg: Eu de fato digo que é assim, mas daí digo, vou continuar fazendo isso, vou continuar fazendo isso.

K: Não, não. Estamos perguntando: quando você escuta que não existe segurança é uma ideia abstrata? Ou um fato real, como essa mesa, como sua mão aí, ou aquelas flores?

Shainberg: Eu acho que em geral se torna uma ideia.

K: É exatamente isso.

Bohm: Por que se torna uma ideia?

Shainberg: É isso. Por que? Acho que essa é a questão, por que se torna uma ideia?

K: É parte de seu aprendizado?

Shainberg: Sim. Parte de meu condicionamento.

K: Parte de uma objeção real para ver as coisas como ela são.

Shainberg: Está certo. Porque se move. Parece que se move aí. Você sente isso?

Bohm: Parece que se você vê que não existe segurança, então o ego, quer dizer, parece, primeiro, vamos tentar mostrar que existe alguma coisa que parece estar ali, que tenta se proteger, ou seja, isto é, digamos que parece ser um fato que o ego está ali. Você percebe a que estou me referindo?

K: Naturalmente.

Bohm: E se o ego está ali, ele requer segurança e, portanto, isto cria uma resistência para aceitar isso como um fato e coloca apenas como uma ideia. Se você entende o que quero dizer. Parece que, a realidade do ego estar ali não foi negada. A aparente realidade.

Shainberg: Certo. Mas por que não foi? Por que você acha que não foi? O que aconteceu?

K: É que você se recusa a ver as coisas como elas são? É que a pessoa se recusa a ver que é estúpida? Não você, quero dizer, a pessoa é estúpida. Reconhecer que a pessoa é estúpida já é — entende?

Shainberg: Sim, sim. É como, você me diz "Você se recusa a reconhecer que você é estúpido" — digamos que sou eu — isso significa então que tenho que fazer alguma cisa, parece.

K: Não.

Shainberg: Alguma coisa acontece comigo.

K: Não ainda. A ação surge pela percepção, não pela ideação.

Shainberg: Fico feliz por você estar entrando nisto.

Bohm: Não parece que enquanto existe a sensação do ego, o ego deve dizer que ele é perfeito, eterno. Entende?

K: Claro, naturalmente.

Shainberg: O que você acha que é? O que torna tão difícil dizer... é isto que você quer dizer quando fala sobre a destruição na criação?

K: Sim.

Shainberg: Em outras palavras, existe alguma coisa aqui sobre a destruição que não sou eu.

K: Você tem que destruir isso.

Shainberg: Tenho que destruir isso. Agora, o que torna difícil para mim destruir? Quero dizer, destruir esta necessidade de segurança, por que não posso?

K: Não, não. Não é como você pode fazê-lo. Veja, você já está entrando no campo da ação.

Shainberg: Que eu acho ser o ponto crucial.

K: Mas não estou. Eu digo primeiro veja isso e, a partir dessa percepção a ação é inevitável.

Shainberg: Sim. É crucial. Tudo bem, agora. Ver a insegurança. Você vê a insegurança? De fato a vê?

K: O quê?

Shainberg: Insegurança.

K: Ah, não. Você de fato vê...

Shainberg: Não existe segurança.

K: Não, que você está agarrado a alguma coisa, crença e todo o resto disso, que lhe dá segurança.

Shainberg: Ok.

K: Eu me agarro a esta casa. Estou seguro. Isso me dá a sensação de "Minha casa, meu pai, me dá orgulho, me dá uma sensação de posse, me dá uma sensação de segurança física e, portanto, psicológica".

Shainberg: Certo, e um lugar para ir.

K: Um lugar para ir. Mas eu posso sair e ser morto e perdi tudo. Pode haver um terremoto e tudo se acaba.  Você de fato vê isso?

Shainberg: Eu de fato...

K: Senhor, vá até um homem pobre. Ele diz, naturalmente, não tenho segurança, mas ele quer ter. Ele diz, "Bem, me dê um bom emprego, cerveja, trabalho fixo e uma casa, e uma boa esposa e filhos; essa é a minha segurança".

Shainberg: Certo.

K: Quando há uma greve, ele se sente perdido. Mas tem o sindicato por trás dele.

Shainberg: Certo. Mas ele acha que está seguro.

K: Seguro. E esse movimento de segurança penetra no campo psicológico. Minha esposa, eu creio em deus, eu não creio em deus. Se sou um bom comunista estarei bem — entende? A coisa toda. Você vê isso?... Veja, o ver ou a percepção disso é ação total em relação à segurança.

Shainberg: Posso ver que essa é a ação total.

K: Não, essa é ainda uma ideia.

Shainberg: Sim, você está certo. Começo a ver que esta estrutura, toda esta estrutura começa a ser o modo inteiro pelo qual vejo tudo no mundo. Começo a vê-la, a esposa, ou começo a ver estas pessoas, elas se encaixam nessa estrutura.

K: Você as vê, sua esposa, através da imagem que tem delas.

Shainberg: Certo. E da função a que servem.

Bohm: A relação delas comigo, sim.

K: Sim.

Shainberg: Está certo. Essa é a função a que servem.

K: A figura, a imagem, a conclusão é a segurança.

Shainberg: Está certo.

Bohm: Sim, mas veja, por que ela se apresenta como tão real? Veja, existe um... vejo como um pensamento, um processo do pensamento que prossegue, continuamente.

K: Você está perguntando por que esta imagem, esta conclusão, este tudo mais, tornou-se tão fantasticamente real?

Bohm: Sim. Parece estar parado ali de verdade e tudo se refere a ele.

K: Mais real que os mármores, que as montanhas.

Bohm: Do que tudo, sim.

Shainberg: Mais real que qualquer coisa.

K: Por quê?

Shainberg: Acho difícil dizer por que, exceto que parece... porque me daria segurança...

K: Não, não, não. Nós já fomos muito mais longe que isso.

Bohm: Porque, suponha abstratamente e como uma ideia, podemos ver a coisa toda como sem segurança de fato, quer dizer, apenas olhando para ela racionalmente e abstratamente.

Shainberg: Isso é pôr o carro na frente dos bois.

Bohm: Não, só estou dizendo que se fosse um assunto simples, mostrando tanta prova, você já teria aceitado.

Shainberg: Certo.

Bohm: Mas, quando você se chega a isto, nenhuma prova parece funcionar.

Shainberg: Certo. Nada parece funcionar.

Bohm: Porque parece... Você diz tudo isso, mas aqui estou eu de frente para a sólida realidade de mim mesmo e minha segurança, que parece negar, há uma espécie de reação que parece dizer: bem, isso pode ser plausível mas realmente, são só palavras. A coisa real sou eu. Entende?

Shainberg: Mas há mais do que isso. Por que isso tem tal potência? Quero dizer, por que parece assumir tal importância?

Bohm: Bem, pode ser. Mas estou dizendo que parece que a coisa real sou eu que é de grande importância.

Shainberg: Não há dúvida sobre isso. Eu, eu, eu sou importante.

K: O que é uma ideia.

Bohm: Mas não... podemos dizer abstratamente que é uma ideia. A pergunta é, como você rompe este processo?

K: Não. Eu acho que podemos rompê-lo ou atravessá-lo, ou ir além dele apenas pela percepção.

Bohm: Sim. Porque de outro modo todo pensamento está envolvido nisso e portanto...

Shainberg: Porque vou atravessá-lo, porque vai me fazer sentir melhor. Certo.

Bohm: O problema é que tudo isso que estivemos falando sobre, está sob a forma de ideias. Podem ser ideias corretas, mas não vão romper isto, porque isto domina a totalidade do pensamento.

Shainberg: Certo.  Está certo. Você poderia até perguntar por que estamos aqui. Estamos aqui porque...

K: Não, senhor. Olhe, se sinto que a minha segurança está em alguma imagem que tenho, um quadro, um símbolo, uma conclusão, um ideal e assim por diante, eu a colocaria não como uma abstração, mas a traria para baixo. Veja, é assim. Eu acredito em alguma coisa. De fato. Agora digo, por que acredito?

Bohm: Bem, você de fato fez isso?

K: Não, não fiz porque não tenho crenças. Não tenho figuras, não entro em todos esses tipos de jogos. Eu disse "se".

Shainberg: Se, certo.

K: Então, eu traria a coisa abstraída para uma realidade perceptiva.

Shainberg: Para ver minha crença, é isso?

K: Veja isso.

Shainberg: Ver minha crença. Certo. Ver esse "eu" em operação.

K: Sim, se você quer colocar desse modo. Senhor, um momento. Pegue uma coisa simples... Você tem uma conclusão sobre alguma coisa? Conclusão, um conceito?

Shainberg: Sim. Sim, acho que tenho.

K: Agora, um momento. Como isso surgiu?

Shainberg: Bem, através...

K: Pegue uma coisa simples, não complicada, pegue uma coisa simples. Um conceito de que sou inglês.

Bohm: O problema é que nós provavelmente não nos sentimos apegados a esses conceitos.

K: Certo.

Shainberg: Vamos pegar um que é real para mim: pegue aquele sobre eu ser médico.

K: Um conceito.

Shainberg: Isso é um conceito. É uma conclusão baseada no aprendizado, baseada na experiência, baseada na apreciação do trabalho.

K: Que significa o quê? Um médico significa, a conclusão significa que ele é capaz de certas atividades.

Shainberg: Certo, ok. Vamos pegar isso, concretamente.

K: Concretamente. Trabalhar isso.

Shainberg: Assim, agora tenho o fato que existe um fato concreto que eu tive este aprendizado, tenho este prazer com o trabalho, tenho um tipo de realimentação, tenho toda uma comunidade mantida. Livros que escrevi, trabalhos, posições.

K: Continue, continue.

Shainberg: Tudo bem. Tudo isso. Agora, essa é a minha crença.

K: Sim.

Shainberg: Essa crença de que sou um médico baseia-se nisso tudo, esse conceito.  Ok. Ora, eu continuamente ajo para continuar com isso.

K: Sim, senhor, isso está entendido.

Shainberg: Ok.

K: Portanto, você tem uma conclusão. Você tem o conceito de que é um médico.

Shainberg: Certo.

K: Porque se baseia em conhecimento, experiência, atividade diária.

Shainberg: Certo, certo.

K: Prazer e tudo mais.

Shainberg: Certo.

K: Então, o que é real nisso? O que é verdadeiro nisso? Real?

Shainberg:  O que você quer dizer?

K: Real, de fato?

Shainberg: Bem, essa é uma boa pergunta. O que é real?

K: Não, espere, é tão simples. O que é verdadeiro nisso? Seu aprendizado.

Shainberg: Certo.

K: Seu conhecimento. Seu procedimento diário. Isso é tudo. O resto é uma conclusão.

Bohm: Mas, o que é o resto?

K: O resto: Eu sou muito melhor que o outro.

Bohm: Ou esta coisa vai me manter ocupado satisfatoriamente.

K: Eu nunca ficarei sozinho.

Shainberg: Certo. Sei o que vai acontecer com "X" porque tenho este conhecimento.

K: Sim. Então?

Bohm: Bem, essa é uma parte disso.

K: Claro, muito mais.

Shainberg: Sim, vá em frente. Quero ouvir o que você...

Bohm: Mas, também não existe certo medo de que se não tenho isto, então as coisas vão ficar bem ruins?

Shainberg: Certo. Ok.

Bohm: E esse medo parece estimular...

K: Claro. E se os pacientes não voltarem?

Bohm: Daí não tenho dinheiro.

K: Medo.

Shainberg: Daí sem atividades.

K: Então, solidão. Volta.

Shainberg: De volta outra vez. Certo.

K: Então, fique ocupado.

Shainberg: Fique ocupado fazendo isto, completando este conceito. Ok?

K: Fique ocupado.

Shainberg: Certo. É muito importante! Percebe como isso é importante para as pessoas, para todos, todas as pessoas, estar ocupado?

K: Naturalmente.

Shainberg: Você entende o cerne disso?

K: Naturalmente.

Shainberg: Como é importante para a pessoa ficar ocupada? Posso vê-las dando voltas.

K: Uma dona de casa está ocupada.

Bohm: Exatamente.

K: Tire essa ocupação, ela diz, por favor...

Shainberg: Temos isso como um fato. Desde que colocamos equipamento elétrico nas casas as mulheres estão ficando malucas, elas não tem nada para fazer com o tempo delas.

K: Mas, não. O resultado disto, negligenciar seus filhos. Nem me fale sobre isso!


Shainberg: Certo. Ok. Vamos continuar. Agora temos este fato, ocupado.

K: Ocupado. Agora, esta ocupação é uma abstração, ou uma realidade?

Shainberg: Isto é uma realidade.

K: O quê?

Shainberg: Realidade. Estou realmente ocupado.

K: Não.

Bohm: O que é isso?

K: Você está realmente ocupado?

Shainberg: Sim.

K: Diariamente.

Shainberg: Diariamente.

K: O que você quer de fato dizer com ocupado? Veja...

Shainberg: O que quer dizer?

Bohm: Posso dizer que estou de fato fazendo todas as coisas. Isso está claro. estou vendo pacientes como médico.

Shainberg: Você está indo fazer seu trabalho.

Bohm: Estou fazendo meu trabalho, ganhando minha recompensa e por aí vai. "Ocupado" me parece, tem um significado psicológico, mais do que esse que minha mente está nessa atividade de modo relativamente harmonioso. Vi uma coisa na televisão certa vez de uma mulher que estava altamente perturbada e foi mostrado no encefalógrafo quando ela estava ocupada fazendo somas aritméticas, o encefalógrafo movia-se suavemente.  Ela parava de fazer contas e ele movia-se para todo lado. Portanto, ela tinha que ficar fazendo alguma coisa para manter o cérebro trabalhando direito.

K: Que significa o quê?

Shainberg: Vá em frente.

Bohm: O que isso significa?

K: Um processo mecânico.

Shainberg: Está certo.

Bohm: Parece que o cérebro começa a pular para todo lado a menos que tenha esta atividade.

K: Uma constante...

Bohm: Satisfação.

K: Assim, você se reduziu a uma máquina.

Shainberg: Não diga isso! (risos)... Não, isso não é justo. Mas é verdadeiro. Sinto que há mecânicas...

K: Reações.

Shainberg: Oh, sim, comprometimento.

K: Claro.

Bohm: Mas, por que o cérebro começa a ficar tão descontrolado quando não está ocupado?

Shainberg: Está certo.

Bohm: O cérebro começa a pular sem controle quando não está ocupado. Essa parece ser uma experiência comum.

K: Porque na ocupação existe segurança.

Bohm: Existe ordem.

K: Ordem.

Shainberg: Na ocupação existe um tipo de ordem mecânica.

K: Ordem mecânica.

Bohm: Então, sentimos que nossa segurança realmente significa que queremos ordem. Está certo?

K: É isso!

Bohm: Queremos ordem dentro do cérebro. Queremos ser capazes de projetar ordem no futuro, para sempre.

K: Está certo.

Shainberg: Está certo. Você diria que pode consegui-la pela ordem mecânica?

Bohm: Mas então ficaremos insatisfeitos com ela, você diz "Estou ficando doente, entediado, estou cansado desta vida mecânica, quero uma coisa mais interessante".

K: É aí que entram os gurus! (risos)

Bohm: E a coisa fica descontrolada outra vez. A ordem mecânica não vai satisfazer isso porque ela só funciona por pouco tempo.

Shainberg: Não gosto do modo como alguma coisa está se insinuando aí. Você diz que vamos passando como de uma coisa a outra. Estou buscando satisfação e, portanto, não estou satisfeito.

Bohm: Estou procurando alguma ordem habitual que é boa. E acho que através do meu trabalho como médico consigo isso.

Shainberg: Sim.

Bohm: Mas, depois de um tempo começo a sentir que é muito repetitivo, estou ficando entediado.

Shainberg: Ok. Mas, suponha que isso não aconteça... Suponha que algumas pessoas se tornam satisfeitas com a ordem mecânica.

Bohm: Elas não ficam realmente. Portanto, tornam-se embotadas.

K: Exato. Mecânicas; tão mecânicas que não... e você não interrompe esse mecanismo, o cérebro fica descontrolado.

Shainberg: Está certo.

Bohm: Então elas podem sentir que estão um pouco embotadas e gostariam de alguma diversão, ou alguma coisa mais interessante e excitante. E, portanto, há uma contradição, há conflito e confusão na coisa toda.  Pegue esta mulher que poderia sempre ter tudo certo fazendo somas aritméticas, mas você não pode permanecer fazendo contas! (risos)... Quero dizer, alguma hora ela vai ter que parar de fazer estas contas.

Shainberg: Certo.

Bohm: Então, o cérebro dela vai ficar descontrolado novamente.

K: Ele está perguntando o que o está perturbando. Ele sente que não chegou ao ponto. O que o está perturbando?

Shainberg: Você está certo.

K: O que está lhe perturbando?

Shainberg: Bem, é este sentimento que, as pessoas dirão que...

K: Não, você diz, você.

Shainberg: Eu direi, digamos... eu posso ter ordem, posso ter essa ordem mecânica, e posso.

K: Sim, você pode.

Shainberg: Ao me ocupar com algo que gosto.

K: Continue. Prossiga.

Shainberg: Posso fazê-lo. Posso fazer algo que gosto e isso fica aborrecido, digamos, ou pode ficar repetitivo, mas então encontrarei novas coisas nisso. E então farei essa coisa mais vezes, porque isso me dá prazer.  Eu tiro disso uma satisfação. Então continuo fazendo mais isso. É como um processo acumulativo.

K: Não, você sai de um processo mecânico, fica entediado com ele, e sai para um outro processo mecânico. Fica entediado com ele e continua. E você chama isso de viver!

Shainberg: Está certo. É isso! É isso que eu chamo viver.

Bohm: O problema nisso, mesmo que eu admita tudo isso é que agora eu tento estar seguro que posso continuar fazendo isto pois posso sempre antecipar um futuro quando não serei capaz de fazê-lo. Entende? Estarei um pouco velho para o trabalho ou mesmo falharei. Perderei o emprego. Em outras palavras, ainda terei insegurança nessa ordem.

K: Essencialmente, essencialmente é desordem mecânica.

Shainberg: Mascarando-se como ordem.

K: Ordem. Agora, espere um momento. Você vê isto? Ou ainda é uma abstração?  Porque, você sabe, ideia como lhe dirá o Dr. Bohm, ideia significa "observação". O significado da raiz, observação. Você observa isto?

Shainberg: Eu vejo isso, sim. Sinto que eu... Acho que vejo... Oh, mão. Eu vejo isso. O que vejo de fato é, vejo isto, um movimento que segue fazendo isto, muito parecido com a teoria de Piaget, há assimilação, uma acomodação e então, existe o ver daquilo que não se encaixa e continuar com isso. E daí há mais assimilação e acomodação e continuar com isso. O psicólogo, Piaget, o psicólogo francês, descreve isto como o normativo dos cérebros humanos.

K: Sim, sim.

Shainberg:  Você conhece isto.

K: Eu não tenho que ler Piaget, posso observar isso.

Bohm: Então, o ponto é, você é levado a isto porque tem medo da instabilidade do cérebro? Isso poderia significar estar ocupado com isto. E parece então que isso é desordem. Se você está fazendo alguma coisa porque está tentando fugir da instabilidade do cérebro, isso já é desordem.

Shainberg: Sim, sim.

Bohm: Em outras palavras, isso estará meramente mascarando a desordem.

Shainberg: Sim. Então, você está sugerindo que isto está sendo a desordem natural do cérebro. Você está sugerindo uma desordem natural?

Bohm: Não, estou dizendo que o cérebro parece estar desordenado. Este parece ser um fato. Certo? Que o cérebro sem ocupação tende a entrar em desordem.

Shainberg: Sem o mecânico temos isto (movimentos com a mão de sobe e desce)... É isto que conhecemos, sem o mecânico.

K: Desse modo, está com medo disso.

Bohm: Bem, é perigoso de fato porque a pessoa sente que se continua fazendo isso, você não sabe o que vai acontecer.

K: Naturalmente isso é perigoso.

Bohm: Quero dizer, posso fazer todo tipo de coisas malucas.

K: Sim. Todos os neuróticos, você conhece todo esse negócio.

Bohm: Eu sinto que o principal perigo vem de dentro.

K: Certamente. Ora, quando você vê isso, observa isso, existe ação, que não é fragmentada.

Bohm: A pessoa pode sentir que você não sabe se esta desordem pode parar. Se você estivesse certo que podia parar, que a religião, que deus vai cuidar disso, ou alguma coisa, então, você teria segurança.

K: Exato.

Bohm: Que deus lhe dará felicidade eterna. (risos)

Shainberg: Você não sente que pode depender de alguma coisa.

Bohm: Nada pode controlar essa desordem. Esta realmente parece ser a questão: que não há nada que possa controlar a desordem. Você pode tomar remédios, ou várias coisas, mas ela está sempre lá no segundo plano.

Shainberg: Certo.

K: Absolutamente certo.

Bohm: Não sei se deveríamos dizer, uma pergunta é: por que temos esta desordem? Se ela foi construída dentro da estrutura do cérebro, considerando que isto é a natureza humana então não haveria saída.

K: Não, senhor. Acho que a desordem surge primeiro quando seguimos processos mecânicos. E, nesse processo mecânico, o cérebro se sente seguro e quando esse processo mecânico é perturbado, torna-se inseguro.

Shainberg: Então ele faz isso novamente.

K: Outra vez, e outra vez, e outra vez.

Shainberg: Ele nunca fica com essa insegurança.

K: Não, não. Quando ele percebe que este processo é ainda mecânico e, portanto, desordem.

Bohm: A pergunta é por que o cérebro fica preso no mecanismo? Em outras palavras, parece na situação, o cérebro fica preso no processo mecânico.

K: Porque é mais seguro, o mais seguro modo de viver.

Bohm: Bem, assim parece. Mas é de fato muito...

K: Não parece. É assim por enquanto.

Bohm: Por enquanto, mas no final das contas não é.

K: Ah, no final das contas...

Shainberg: Você está dizendo que estamos atados ao tempo...

K: Condicionados a ficar vinculados ao tempo, condicionados pela tradição, por nossa educação, pela cultura em que vivemos e assim por diante para funcionar mecanicamente.

Shainberg: Seguimos o caminho fácil.

K: O caminho fácil.

Bohm: Mas também é um tipo de erro dizer, digamos no início, o modo mecânico mostra sinais de ser mais seguro e no início o cérebro comete um erro e diz "isto é mais seguro", mas então, de algum modo, ele deixa de ser capaz de ver que cometeu um erro, segura-se a este erro. No início você pode chamá-lo de um erro inocente, dizer "isto parece mais seguro e vou segui-lo".  Mas então, depois de um tempo, você tem evidências de que isso não é tão seguro, mas o cérebro começa a rejeitar isso, ficar afastado disso.

Shainberg: Bem, acho que você pode levantar a questão de que não existem certos fatos acontecidos na criação da criança. Quero dizer, quando a mãe vê que o bebê está chorando e enfia uma chupeta em sua boca, que está ensinando o bebê, que você se cala e pega a saída fácil.

K: Pobre bebê. (Risos)... Isso é apenas com as mães que não querem bebês, quando socam chupetas.

Bohm: Eu quis dizer que é parte do condicionamento que explica como isso se propaga. Mas ainda não explica por que o cérebro não vê num dado momento que está errado.

Shainberg: Por que ele não vê em algum momento que está errado?

Bohm: Em outras palavras, continua neste processo mecânico em vez de ver o que está errado.

K: Você está perguntando, por que ele não vê que este processo mecânico é essencialmente desordem?

Bohm: É desordem e perigoso.

K: Perigoso.

Bohm: É completa ilusão. Sua segurança é totalmente ilusória.

Shainberg: Por que não existe algum tipo de realimentação? Em outras palavras, eu faço uma coisa e dá errado. Em algum ponto eu devo perceber isso. Por exemplo, eu vi que minha vida é mecânica.

K: Agora, espere. Você vê isso?

Shainberg: Mas não vejo.

K: Espere. Por que ela é mecânica?

Shainberg: Bem, é mecânica porque segue assim, é tudo ação e reação.

K: Por que é mecânica?

Shainberg: É repetitiva.

K: Sim, que é mecânica?

Shainberg: Que é mecânica? Quero que ela seja fácil, Isso também é mecânico. Quero que seja fácil. Sinto que isso me dá a maior segurança, mantê-la mecânica.  Eu tenho um limite. Sei que é como você diz, tenho uma casa, eu tenho uma vida mecânica, que me dá segurança, é mecânico porque é repetitivo.

K: Mas você não respondeu a minha pergunta.

Shainberg: Eu sei que não! É mecânica. Não sei bem qual é a sua pergunta. Sua pergunta é por que...

K: Por que ela se tornou mecânica.

Shainberg: Por que se tornou mecânica?

Bohm: Por que ela permanece mecânica?

K: Por que ela se tornou e permanece mecânica?

Shainberg: Acho que permanece mecânica, foi com isso que começamos.

K: Ah, não, você está... Se você persegue isso, por que permanece mecânica?

Shainberg: Eu não vejo que é mecânica.

K: O que causou aceitar este modo de viver mecânico?

Shainberg: Não sei se posso responder isso. O sentimento disso é que eu veria a insegurança, eu veria.

K: Não, olhe. Você não ficaria com medo se não houvesse...

Shainberg: Eu veria a incerteza.

K: Não, não. Se o processo mecânico da vida como a pessoa vive de repente parasse, você não ficaria com medo?

Shainberg: Sim.

Bohm: Não haveria algum perigo genuíno?

K: Isso, claro. Existe um perigo de que as coisas possam ruir.

Bohm: Ruir.

Shainberg: Bem, é mais profundo que isso.

K: espere! Descubra, vamos.

Shainberg: Não é apenas que existe um genuíno perigo que eu ficaria com medo. Parece que essas coisas assumem um terrível efeito a cada momento.

K: Não. Olhe. A ordem total daria completa segurança? Não daria? Ordem total.

Shainberg: Certo.

K: O cérebro quer ordem total.

Shainberg: Certo.

K: De outro modo ele não pode funcionar adequadamente. Portanto, ele aceita o mecânico e espera que isso não leve ao desastre.

Shainberg: Certo.

K: Esperando que vá encontrar ordem nisso.

Bohm: Você poderia dizer que talvez no início o cérebro aceitou isto simplesmente não sabendo que este mecanismo traria desordem e só entrou nele por um estado inocente?

K: Sim.

Bohm: Mas então, mais tarde...

K: Apanhado numa armadilha.

Bohm: Apanhado numa armadilha e de algum modo mantém esta desordem ele não quer sair dela.

K: Porque tem medo de uma desordem maior.

Bohm: Sim. Ele diz "Tudo isto que eu construí pode ruir". Em outras palavras, eu não estou na mesma situação, como quando caí pela primeira vez na armadilha porque agora construí uma grande estrutura. Eu acho que essa estrutura irá ruir.

Shainberg: Está certo. Eu ouvi um homem — eu quase pulei da cadeira — ouvi o homem dizer outro dia a um de seus colegas, ele disse "Eu acabei de publicar meu décimo terceiro livro". Ele falou assim mesmo! (risos)... O modo como ele dizia isso era desanimador.

K: Não senhor, aonde estou tentando chegar é que o cérebro precisa desta ordem, de outra forma ele não pode funcionar. Ele encontra ordem no processo mecânico, porque é treinado desde a infância, fazer como lhe é dito, etc. Há um condicionamento acontecendo direto para viver uma vida mecânica.

Shainberg: Certo.

Bohm: Como também o medo induzido de desistir deste mecanismo ao mesmo tempo.

K: Naturalmente.

Bohm: Quero dizer que você está pensando todo o tempo que sem isto tudo irá ruir, especialmente o cérebro.

K: O cérebro, sim. E assim eles rompem este negócio mecânico e juntam-se a comunidades, você sabe, todo o processo, que ainda é mecânico.

Shainberg: Certo, certo.

K: O que significa que o cérebro tem que ter ordem. E encontra ordem de um modo mecânico. Agora, eu vejo, você de fato vê que o modo mecânico de viver leva à desordem? Que é tradição. Se eu vivo inteiramente no passado, que seja muito ordenado, eu considero que seja muito ordenado, e o que acontece? Eu já estou morto e não posso encontrar coisa alguma.

Shainberg: Estou me repetindo sempre.

K: Então, por favor, não perturbe minha tradição. Os comunistas dizem isso, os católicos dizem isso — estão acompanhando? A mesma coisa! E todo ser humano diz, "Por favor, eu encontrei alguma coisa que me confere ordem: uma crença, uma esperança, isto ou aquilo e me deixe em paz".

Shainberg: Certo.

K: E a vida não vai deixá-los em paz... Então, ele fica com medo e estabelece outro hábito mecânico. Agora, você vê esta coisa toda? E, consequentemente, uma ação instantânea dissolve tudo e, portanto, ordem. O cérebro que diz, "finalmente tenho uma ordem que é absolutamente indestrutível"

Bohm: Bem, eu acho que isso não resulta do que você disse que isto acontecerá.

K: Naturalmente.

Bohm: Em outras palavras, você está dizendo isto.

K: Eu estou dizendo isso.

Bohm: Mas isso não segue a lógica.

K: Seguirá a lógica se você entrar nisso.

Bohm: Se entrarmos nisso. Podemos chegar num ponto onde realmente seguirá necessariamente?

K: Eu acho que só podemos entrar nisto se você percebe a segurança mecânica que o cérebro desenvolveu, se apegou e cultivou.

Shainberg: Posso compartilhar com você algo? Enquanto você está falando eu me descubro, embora vejo isto de certo modo, eu vejo como isto — não fique impaciente comigo tão depressa! Eu vejo deste modo, vejo a mecanicidade. Certo? E vejo que eu vejo e fico refletindo através da minha mente vários tipos de intercâmbios entre pessoas. E o modo como falam, o modo como falo com elas numa festa, num coquetel, e é tudo sobre o que aconteceu antes.

K: Exato, exato.

Shainberg: Você pode vê-las dizendo-lhe quem são em termos de passado delas.

K: O que elas serão.


Shainberg: O que elas serão. Aquele cara que acabei de descrever, que disse "Fiz meu décimo terceiro livro" (risos)... Ele falou assim. É muito importante que eu tenha essa informação. Eu vejo esta elaborada estrutura.  Este cara colocou na sua cabeça que vou pensar isto sobre ele e então ele vai para sua universidade e vai ser considerado assim. Ele está sempre vivendo assim e a estrutura toda é elaborada.

K: Você está fazendo isso?

Shainberg: Quando você parou de bater na sua esposa? (risos) Claro que estou fazendo isso. Estou fazendo agora mesmo! estou vendo a estrutura agora mesmo, tudo isto, estou!

K: Mas você vê que nós estávamos dizendo ontem, ação fragmentada é ação mecânica.

Shainberg: Está certo, Está aí, Krishnaji. Está aí, é assim que somos.

K: E, portanto, a ação política não pode resolver nenhum problema, problema humanos, ou o cientista, como fragmento.

Shainberg: Você percebe o que está dizendo? Vamos olhar realmente para o que você está dizendo.  Este é o modo como é. Este é o modo como a vida é!

K: Certo.

Shainberg: Certo? É deste jeito que é. Anos e anos e anos.

K: Portanto, por que você não muda isso?

Shainberg: Está certo. Mas é deste jeito que é. Vivemos em função de nossas estruturas. Vivemos em função de nossas histórias. Vivemos em função de nosso mecanismo. Vivemos em função de nossa forma. É desse jeito que vivemos!


K: Como estávamos dizendo em Ojai, quando o passado encontra o presente e acaba ali, uma coisa totalmente diferente acontece.

Shainberg: Sim. Mas o passado não encontra o presente tão frequentemente.

K: Isto está acontecendo agora!

Shainberg: Agora está, bem agora. Estamos vendo-o agora.

K: Portanto, você pode parar aí?

Shainberg: Nós devemos vê-lo totalmente.

K: Não. O fato, o simples fato. O passado encontra o presente. Isso é um fato.

Bohm: Como o passado encontra o presente? Vamos examinar isso.

K: Nós temos quatro minutos.

Shainberg: Então, como você diz que o passado encontra o presente? Nós temos dois minutos agora! (risos)

Bohm: Bem, acho que o passado encontrando o presente pára. O passado é geralmente ativo no presente em direção ao futuro. Agora, quando o passado encontra o presente, então o passado pára de atuar. E o que isso significa é que o pensamento pára de agir de modo que a ordem acontece.

Shainberg: Você acha que o passado encontra o presente ou o presente encontra o passado?

K: Não. Como você me encontra?

Shainberg: Encontro você no presente.

K: Não. Como você me encontra? Com todas as memórias, todas as imagens, a reputação, as palavras, as figuras, o símbolo, tudo isso, com isso que é o passado, você me encontra agora.

Shainberg: Está certo. Chego a você com um conforto.

K: Não, não. O passado está encontrando o presente.

Bohm: Você não está dizendo que o passado...

Shainberg: Está certo, vá em frente.

Bohm: Que o passado deve parar ao encontrar o presente?

Shainberg: Não. Ele não está dizendo isso. Você não pode dizer isso!

K: Estou dizendo uma coisa, ele está certo.

Shainberg: Eu sei mas deixe ele falar. (Risos)

K: O que estou tentando dizer é que o passado encontra o presente.

Shainberg: E daí?

K: Pode o passado parar aí? Não ir adiante?

Shainberg: Pode? Mas essa é a pergunta correta?  O que é o passado encontrando o presente? Que ação é essa?

K: Eu encontro você com um quadro.

Shainberg: Por que eu deveria parar?

K: Vou lhe mostrar. Eu encontro você com o passado, minhas memórias, mas você pode ter mudado tudo isso nesse meio tempo. Então, eu nunca encontro você. Eu encontro você com o passado.


Shainberg: Certo. Esse é um fato.

K: Esse é um fato. Agora, se não tenho esse movimento seguindo.

Shainberg: Mas eu tenho.

K: Claro, você tem. Mas eu digo que isso é desordem. Então, não posso encontrá-lo.

Shainberg: Certo. Como você sabe disso?

K: Eu apenas sei, não conheço isso. Só sei do fato que quando o passado encontra o presente e continua este é um dos fatores do movimento do tempo, servidão, todo medo, e assim por diante. Quando há o passado encontrando o presente, e diz sim, estou totalmente cônscio disto, completamente cônscio deste movimento, então ele pára. Então eu encontro você como se fosse a primeira vez, existe alguma coisa nova, é como uma nova flor desabrochando.

Shainberg: Sim.

K: Eu acho... - continuaremos amanhã. Nós realmente não atacamos a raiz de tudo isto. A raiz, a causa ou a raiz de toda esta perturbação, este tumulto, trabalho árduo, ansiedade — estão seguindo?

Bohm: Por que deveria o cérebro estar nesta desordem desenfreada?


K: Sei, desenfreada. Você, que é médico, um analista e todo mais, você tem que fazer essa pergunta fundamental — por que? Por que os seres humanos vivem deste modo?

Shainberg: Certo. Por que vivem assim? Pergunto isso o tempo todo. Por que os seres humanos estão doentes?

K: Tempo.

Bohm: Certo. (Risos)

Um homem culto é um homem descontente com sua cultura

Um guru muito conhecido veio vê-lo mais uma vez. Estavam sentados num formoso jardim rodeado de muros; o verde gramado se achava muito bem cuidado; havia rosas, cheiro de ervilhas, brilhantes calendulas amarelas e outras flores do norte oriental. O muro e as árvores mantinham afastado o ruído dos poucos automóveis que passavam; o ar estava impregnado com o perfume de muitas flores. Ao anoitecer, uma família de chacais resolvia sair do oculto refúgio que tinha abaixo de uma árvore; haviam cavado um grande buraco onde a mãe tinha seus três filhotes. Formavam um grupo de saudável aspecto, e em seguida, depois do crepúsculo, a mãe saía com eles mantendo-se próxima das árvores. Detrás da casa havia lixo e mais tarde iriam recolhê-lo. Também vivia uma família de mangustos; todo entardecer, a mãe, com seu focinho rosado e sua larga e grossa cauda, saía do esconderijo seguida por seus dois filhotes, um atrás do outro; encostados ao muro, também se dirigiam à parte traseira da cozinha onde algumas vezes lhes deixavam coisas. Eles mantinham o jardim livre de cobras. Jamais parecia haverem-se cruzado com os chacais, porém se o fizessem, se deixariam mutuamente em paz.

O guru havia anunciado uns dias antes que desejava fazer uma visita. Chegou, e mais tarde vieram em seguida seus discípulos. Tocaram seus pés como um sinal de grande respeito. Queriam também tocar os pés do outro homem, porém ele não quis que o fizessem; explicou-lhes que isso era degradante, porém a tradição e a esperança do céu eram demasiado fortes neles. O guru não quis entrar na casa, já que havia feito votos de não entrar jamais num lugar de pessoas casadas. O céu estava intensamente azul nessa manhã e as sombras eram grandes.

“Você nega ser um guru, porém é um guru de gurus. Tenho lhe observado desde sua juventude, e o que você disse é uma verdade que muito poucos compreenderam. Para muitos, nós somos necessários, de outro modo estariam perdidos; nossa autoridade salva ao homem simples. Nós somos os intérpretes. Temos tido nossas experiências, sabemos. A tradição é um resguardo, e são somente uns poucos os que podem permanecer sós e ver a realidade desnuda. Você se encontra entre os bem-aventurados, porém nós devemos marchar com a multidão, cantar seus cantos, respeitar os nomes sagrados e borrifar água benta, o qual não quer dizer que sejamos inteiramente hipócritas. Eles necessitam ajuda e nós estamos aqui para lhes dar. Qual é, se me permite perguntar-lhe, a experiência dessa realidade absoluta?” Os discípulos estavam indo e vindo, sem interesse na conversa e indiferentes ao que lhes rodeava, à beleza da flor e da árvore. Alguns deles vieram sentar-se no pasto para escutar, esperando não serem demasiadamente perturbados. Um homem culto é um homem descontente com sua cultura.

A Realidade não é para ser experimentada. Não há atalho que conduza a ela e nenhuma palavra pode assinalá-la; não é algo que possa buscar-se e encontrar-se. O encontrar depois de buscar é a corrupção da mente. A mera palavra verdade não é a verdade; a descrição não é o descrito.

“Os antigos tem falado de suas experiências, de sua bem-aventurança na meditação, de sua superconsciência, de sua realidade sagrada. Se é lhe permitido perguntar: Devemos descartar tudo isto e o exaltado exemplo daqueles seres?” Qualquer autoridade na meditação é a negação completa desta. Todo o conhecimento, os conceitos, os exemplos não tem lugar na meditação. A completa eliminação do meditador, do experimentador, do pensador, é a essência mesma da meditação. Esta liberdade é o ato cotidiano da meditação. O observador é o passado, seu terreno é o tempo, seus pensamentos, suas imagens, suas projeções, estão presas ao tempo. O conhecimento é tempo, e a libertação a respeito do conhecimento é o florescer da meditação. Não existe sistema algum e, portanto, não há direção alguma para a verdade ou para a beleza da meditação. Seguir o outro, seguir seu exemplo, suas palavras, é expulsar a verdade. Só no espelho da relação você vê realmente o rosto do que é. O que vê é o visto. Sem a ordem que a virtude traz consigo a meditação e as intermináveis afirmações dos outros carece em absoluto de significado algum; são completamente improcedentes. A verdade não tem tradição, não pode ser transmitida.

Com o sol, o aroma das ervilhas era muito mais intenso. 12 de Outubro de 1973

Autor: Krishnamurti

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A violência não está só no matar

As chuvas chegaram e se foram, e as enormes pedras resplandeciam ao sol da manhã. Havia água nos leitos secos dos rios e o solo se regozijava novamente; a terra estava mais vermelha e cada arbusto, cada fibra do pasto estavam mais verdes, e nas árvores de raízes profundas apareciam folhas novas. O gado começava a engordar e os aldeões se viam menos magros. Estes morros são tão antigos como a terra, e os enormes pedregulhos parece haver sido colocados aí com esmerado equilíbrio. Para o este há um morro que tem a configuração de uma grande plataforma, sobre a qual há construído um templo quadrado.

Os meninos da aldeia caminhavam várias milhas para aprender a ler e escrever; havia aqui uma menina pequena que se dirigia completamente só e com o rosto radiante, à escola da aldeia mais próxima, levando numa mão um livro e na outra um pouco de comida. Quando nos cruzamos se deteve, tímida e inquisitiva, si tivéssemos permanecido assim por mais tempo haveria chegado tarde na sua escola. Os arrozais se viam surpreendentemente verdes. Era uma longa e aprazível manhã.

Dois corvos estavam brigando no alto, grasnando e destroçando-se um ao outro. No ar não havia suficiente apoio, de maneira que pousaram na terra para continuar pelejando. Pelo solo começaram a voar plumas e a luta começou a ficar muito séria. Prontamente, próximo duma dezena de outros corvos desceu sobre eles e colocou fim à peleja. Depois de uma quantidade de grasnidos e rabugens, todos desapareceram entre as árvores.

A violência está em todas as partes, tanto entre os altamente educados como entre os mais primitivos, entre os intelectuais e entre os sentimentais. Nem a educação, nem as religiões organizadas tem sido capazes de amansar ao homem; pelo contrário, tem sido os responsáveis pelas guerras, as torturas, os campos de concentração e a matança de animais na terra e no mar. Quanto mais progresso, mais cruel parece tornar-se o homem. A política tem se convertido em gangsterismo, um grupo contra outro grupo; o nacionalismo nos tem conduzido à guerra, há guerras econômicas, há ódios pessoais, há violência. O homem não parece aprender nada da experiência e o conhecimento, e a violência prossegue em todas suas formas. Que lugar ocupa o conhecimento na transformação do homem e de sua sociedade?

A energia que se tem dedicado à acumulação de conhecimentos, não tem transformado ao homem, não tem colocado um fim à violência. A energia que se tem investido em milhares de explicações do por que o homem é tão agressivo, tão brutal e insensível, não tem colocado fim à sua crueldade. A energia que se tem gastado em analisar as causas de sua insana destruição, de seu prazer na violência, de seu sadismo, de sua atividade divergente, de modo algum tem feito com que o homem seja mais benévolo e considerado. Apesar de todas as palavras e os livros, das ameaças e os castigos, o homem continua com sua violência.

A violência não está só no matar, na bomba, nas mudanças revolucionárias que se produzem mediante derramamentos de sangue; é mais profunda e sutil. O conformismo e a imitação são indicações de violência; a imposição e aceitação da autoridade indicam violência; a ambição e a competição são uma expressão desta condição agressiva, desta crueldade, e a comparação produz inveja com sua animosidade e seu ódio. Onde há conflito, interno ou externo, aí está o terreno para a violência. A divisão em todas suas formas traz consigo luta e sofrimento.

Todos conhecemos isto; temos lido sobre as ações da violência, as temos visto em nós mesmos e ao redor de nós, temos escutado muito a respeito e não obstante, a violência não terminou. Por que? As explicações a respeito das causas de uma conduta semelhante não têm real significação. Se nos comprássemos nelas, estamos esbanjando a energia que necessitamos a fim de superar a violência. Necessitamos de toda nossa energia para nos enfrentar com a energia que dissipa a violência e ir mais além dela. Controlar a violência é outra forma de violência, porque o controlador é o controlado. Na atenção total, que é a soma total da energia, chega a seu fim a violência em todas as suas formas. A atenção não é uma palavra, não é uma fórmula abstrata do pensamento, senão uma ação na vida cotidiana. A ação não é uma ideologia porque se a ação é o resultado de uma ideologia, conduz à violência.

Depois das chuvas, o rio passa ao redor de cada pedra, de cada cidade e aldeia, e por contaminado que se encontre, se purifica a si mesmo correndo através de vales, desfiladeiros e pradarias.

Krishnamurti

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Estamos conscientes de que estamos programados?

1º Diálogo realizado entre David Bohm (Físico), David Shainberg (Psiquiatra), e J.Krishamurti em Brockwood Park em Maio de 1976



K: sobre o que vamos falar? O que você acha que é a cosia mais importante da qual nós 3 podemos falar?

David Shainberg: bem, uma coisa da qual tive uma idéia recentemente que tem estado na minha cabeça e eu a tirei de quando conversamos antes, existe o sentimento, que você esteve transmitindo, de que a vida vem primeiro, e não o pensamento ou o trabalho, algo assim, em outras palavras, que eu encontro em mim mesmo e noto que a maioria das pessoas são pegas no fato de que você disse uma vez que nós vivemos vidas de segunda-mão. Se pudéssemos  falar sobre isso, eu acho a característica de segunda-mão das nossas vidas.

K: o que você acha?

David Bohm: bem, em relação a isso eu gostaria talvez de falar sobre a questão da totalidade.

K: podemos falar primeiro daquela questão e então concluir a sua.

Shainberg: certo. Eu acho que isto é parte dela. Eu vejo que uma vida de segunda-mão não é a totalidade da vida.

K: certo.

Shainberg: eu vejo que a vida de segunda-mão...

K: pergunto-me como podemos abordar esta questão sabendo que a maioria das pessoas estão fragmentadas, fracionadas, e não inteiras? Como nós atacamos ou abordamos esta questão?

Shainberg: por meio do percebimento direto da fragmentação.

K: não, eu gostaria de — só estou perguntando porque — estamos discutindo isso teoricamente? 

Shainberg: não.

K: verbalmente, ou estamos nos tornando, — você, nós três — nos tornando assim como somos e examinando o que queremos dizer com fragmentado e, então, trabalhar a partir daí, o que é o todo, não teoricamente ou verbalmente. Então, eu acho que isso tem vitalidade, isso tem algum significado. 

Shainberg: bem, se nós vemos a fragmentação, a totalidade está lá. 

K: ah! Não, não assuma coisa alguma, certo?

Bohm: isso está muito rápido.

K: daí saímos para a teoria.

Shainberg: ok! Certo.

K: estivemos falando com muitos estudantes aqui, sobre esta questão. Dr. Bohm estava aqui também. E se podemos alguma vez estar cônscios de nós mesmos em absoluto. Ou estamos cientes apenas de pedaços, não da totalidade das fragmentações. Não sei se estou transmitindo isso. 

Shainberg: vá em frente.

K: será possível alguém estar cônscio, consciente, conhecer os vários fragmentos, examinando um por um, por um, por um — e quem é o examinador — não é ele também um fragmento que assumiu uma autoridade? Assim, quando falamos de estar ciente dos fragmentos — social, moral, ética, religiosamente, negócios, arte — a atividade inteira é fragmentada. Pode alguém estar cônscio do movimento desses fragmentos? Ou você pega um fragmento e o examina, ou diz: "sim, estou ciente desse", e não dos outros. Você acompanha o que estou dizendo?

Shainberg: estou acompanhando você. Acho que está cônscio principalmente de quando penso naquilo que está falando, como que muitos fragmentos. 

K: você está?

Shainberg: um de cada vez, espalhados assim, como uma metralhadora.

K: sim. Assim você está realmente cônscio de um por um. 

Shainberg: certo. E apanhado pelo movimento dos fragmentos. 

K: um por um. É isso mesmo? Tem certeza que é isso mesmo?

Shainberg: sim, eu acho, parece ser assim. Bem, às vezes você pode dar um passo atrás, ou você parece dar um passo atrás, ou eu pareço dar um passo atrás, e fico cônscio destes fragmentos. 

K: não, quando dr. Bohm perguntou: "não podemos falar juntos sobre a questão da totalidade", que implica santidade, saúde, sanidade e tudo isso, pergunto-me a partir de que fonte ele está fazendo essa pergunta. 

Shainberg: você quer dizer se ele está vindo de uma posição fragmentada ou está partindo de um ponto de vista total. 

K: não, não. Se ele está indagando a partir do ponto de vista do todo, não existe pergunta. Então, eu gostaria de, se se pode perguntar: estamos cônscios dos fragmentos como um todo, uma coleção de fragmentos, ou estamos cônscios de um fragmento de cada vez? O que você diz, senhor?

Bohm: em geral, a coisa apresenta-se primeiro como sendo originalmente um fragmento...

K: um fragmento de cada vez.

Bohm: tendo como base todos os outros fragmentos, talvez vagamente presentes nele. Quero dizer, no começo esse fragmento parece ganhar ênfase ou preeminência no percebimento. 

Shainberg: esse fragmento não se fragmenta rapidamente em muitos pequenos fragmentos? Tenho uma idéia e então essa idéia contrasta com outra idéia, assim imediatamente sou pego em dois fragmentos aí, e então tenho outra idéia que é a repetição daquela primeira idéia, então sou pego num movimento de fragmentos em vez de minha atitude é fragmentada, meu relacionamento é fragmentado, minha própria substância de movimento é um sentimento de fragmentação. Não tenho nenhum centro quando estou fragmentado. Não estou...

K: não estou seguro disso.

Shainberg: essa é a questão. 

K: não estou seguro disso em absoluto de que não há centro quando você estpa fragmentado. 

Bohm: acho que definitivamente há um centro. Esse é o maior fragmento do qual você está cônscio. 

K: está certo. 

Shainberg: então vamos entrar nisso. 

Bohm: bem, eu apenas penso que há um centro que você pode sentir em qualquer lugar, digo aqui ou aqui, que parece ser o centro de tudo, que está conectado a todas as coisas, certo? 

Shainberg: entendo o que está dizendo, mas sinto que quando a fragmentação está acontecendo é como se o centro estivesse procurando a si mesmo, parece que não é um centro. 

K: você está cônscio da fragmentação? Não a "fragmentação estar acontecendo". 

Shainberg: não, não estou.

K: então, de que estamos cônscios? 

Shainberg: eu acho — essa é uma questão incrível — porque acho que quando há fragmentação, estamos conscientes é de ser como que sugados em mais fragmentos. Há um tipo de movimento de mais fragmentação, mais fragmentação, que é do que estamos conscientes.  O que você tem falado relativamente ao prazer.  É como se o prazer nos puxasse para mais fragmentos, isso me daria prazer, aquilo me daria prazer... E esse é o sentimento de partes. 

K: antes de entrarmos nessa questão do prazer, estamos conscientes, realmente, a partir de um centro, que diz "eu estou fragmentado"? Essa é a questão, não é? 

Bohm: sim.

Shainberg: essa é a questão. 

Bohm: temos consciência tanto de um centro como a partir de um centro. 

K: é isso. 

Bohm: este centro parece ser, como você diz, o fragmento que está dominando, ou tentando dominar. 

K: esse centro é o fator dominante. 

Bohm: sim. Em outras palavras...

K: que é em si mesmo fragmento. 

Bohm: sim, quero dizer que este centro é, bem, parece ser o centro do seu ser, como se fosse o centro do ego ou do eu que a pessoa pode achar que seja o todo. 

K: exato, exato. 

Bohm: porque está em contato com todas as coisas. Em outras palavras...

K: você diria que ter um centro é a própria causa da fragmentação? 

Bohm: eu diria isso, embora à primeira vista parece ser bem diferente. 

Shainberg: à primeira vista — acho que é importante, a diferença entre — à primeira vista não parece ser desse jeito.  

Bohm: à primeira vista parece que o centro é que está organizando todas as coisas num todo.

K: sim. 

Bohm: a pessoa sente que quer um centro para colocar tudo em todo, para pôr fim à fragmentação. 

K: sim, tenta efetuar a integração, tenta criar a totalidade e essa coisa toda. 

Shainberg: certo. Se você sente a fragmentação, então você se centra e diz: "posso ver todos os fragmentos" — mas aquilo ainda é o centro. 

K: não, mas estou perguntando se quando há um centro ele não vai na direção dos fragmentos? 

Shainberg: eu vejo isso. Vejo o que você está dizendo. Mas estou tentando pegar isso a partir de qual é a experiência quando há fragmentação? Aí não parece existir um centro.

K: contradição, contradição.

Shainberg: certo. Mas não se sente isso como um centro.

K: não. Contradição. Quando existem fragmentos... Estou consciente dos fragmentos por causa da contradição. 

Shainberg: certo. 

K: por causa dos fatores que se opõem. 

Bohm: por contradição você quer dizer também conflito. 

K: conflito. A partir da contradição existe conflito. Então, estou consciente de que há conflitos. Estou trabalhando em uma área de fragmentos. 

Shainberg: certo. Mas, então, sim, então não estou consciente do fato de que tenho de fato um centro. Essa é a auto-decepção, aí mesmo. 

K: não — você não acha, se me permite sugerir — que onde existe conflito, somente então você está consciente de um conflito, da contradição? Isso é, está-se consciente somente quando existe conflito. Certo? E, então, o próximo percebimento, o próximo movimento é o conflito nasce a partir da fragmentação, elementos opostos, desejos opostos, vontades opostas, pensamentos opostos. 

Bohm: mas você está dizendo que estes se opõem primeiro, antes da pessoa estar consciente e então, de repente, você está ciente através do desprazer ou da dor da oposição, que o conflito é desprazeroso? 

K: sim, o conflito é desprazeroso e, portanto, a pessoa está consciente.

Bohm: de que algo está errado.

K: errado. Sim. 

Bohm: alguma coisa está errada, não só simplesmente errada, mas errado com a coisa toda. 

K: naturalmente. Afinal de contas, senhor, autoconsciência, você está consciente de si mesmo apenas quando existe dor ou prazer intenso, caso contrário, não há consciência de si mesmo. Assim a fragmentação com seus conflitos traz senso de estou consciente, estou em conflito — caso contrário não há percebimento. 

Shainberg: sim, você está dizendo que a própria fragmentação...

K: estou consciente, estou em conflito.

Shainberg: ela mesma gera o centro.

K: gera o centro. 

Shainberg: e o centro gerou a fragmentação, então é como uma...

K: sim, vai e vem.

Shainberg: certo. 

Bohm: você diria que o pensamento, em si mesmo, antes de haver um centro gera conflito? Ou, existe pensamento antes de um centro?

K: oh, pensamento antes do centro. 

Bohm: sim. Uma visão é dizer que o centro é o pensamento, são sempre co-existentes e um gera o outro. 

K: um gera o outro, exato. 

Bohm: a outra visão é dizer que pode haver pensamento primeiro e isso produz conflito e então isso produz um centro. 

K: vamos entrar um pouco nisso.

Bohm: sim. 

Shainberg: essa é uma boa. 

K: o pensamento existe antes do conflito?

Bohm: antes de um centro. 

K: antes do centro.  A pessoa está cinte do centro apenas quando há conflito. 

Bohm: sim, porque aquilo aparece evidentemente para tentar produzir de novo a totalidade para assumir o controle de tudo. 

K: o centro tenta assumir o controle, ou tenta criar a totalidade. 

Bohm: sim, unir todos os fatores. 

K: mas o próprio centro é um fragmento. 

Bohm: sim, mas ele não sabe disso. 

K: naturalmente, ele não sabe, mas pensa que pode unir todos os fragmentos, fazer deles um todo. Assim, o dr. Bohm está fazendo a pergunta que é: "o pensamento existia antes do centro ou o centro existia antes do pensamento"?

Bohm: ou os dois juntos?

K: ou os dois juntos?

Shainberg: ele também está perguntando: "o pensamento cria o centro?"

K: o pensamento cria o centro.

Shainberg: essa seria a ação, a própria criação, um tipo de efeito posterior do pensamento. Em outras palavras, é o organismo — é a produção do pensamento a própria causa do centro? Que eu acho que o carrega, porque então...

K: sim, sejamos claros nesse ponto também. 

Shainberg: certo.

K: estamos perguntando: "o pensamento criou o centro"?

Bohm: sim, e havia um tipo de pensamento antes de um centro? 

K: sim. Pensamento antes de um centro. É isso!

Bohm: que entrou em contradição. 

K: sim, o pensamento criou o centro, ou o centro existia antes do pensamento?

Bohm: ou então, o centro era — essa é uma visão que é comum, as pessoas pensam que o centro é o "eu" que existia primeiro. 

K: o "eu" é o primeiro. 

Bohm: e então eu comecei a pensar, certo?

K: não, acho que o pensamento existe antes do centro. 

Shainberg: sim, daí temos que fazer a pergunta, talvez não neste minuto: "por que existe pensamento? O que é pensamento?

K: ah!, isso é um outro assunto. Vamos entrar nisso?

Bohm: isso pode ser uma longa história. 

Shainberg: sim, eu não acho que seja por agora. Mas nós temos que chegar nisso. 

K: não.

Shainberg: vamos ficar com o que nós começamos.

K: sim, nós começamos perguntando: "podemos falar sobre a totalidade da vida?... Como pode uma pessoa estar consciente dessa totalidade se está fragmentada? Essa é a próxima questão. Você não pode estar consciente do todo se está olhando apenas através de um pequeno buraco.

Shainberg: certo. Mas, por outro lado, de fato você é o todo. 

K: ah! Isso é uma teoria. 

Shainberg: é? É aí que...

Bohm: é uma suposição, sim. 

K: naturalmente, quando você está fragmentado como pode assumir que você é o todo? 

Shainberg: bem, essa é uma maravilhosa... Essa é uma questão, por que como posso saber que estou fragmentado? 

K: isso é o que estamos perguntando. 

Shainberg: sim. 

K: quando você está consciente de que está fragmentado?... Somente quando há conflito. 

Shainberg: certo, isso está certo. 

K: quando há dois desejos que se opõem de movimentos de elementos que se opõem, então existe conflito, então você tem dor ou o que quer que seja e então você se torna consciente. 

Shainberg: certo, mas nesses momentos, acontece muitas vezes de você não querer largar o conflito. Você sente a sua fragmentação...

K: não, isso é uma questão diferente. 

Shainberg: certo.

K: o que estamos perguntando é pode o fragmento dissolver-se a si mesmo?...

Shainberg: certo. 

K:  ... E somente então ser possível ver o todo. Você não pode estar fragmentado e então desejar o todo.

Shainberg: certo. Tudo o que você conhece é sua fragmentação. 

K: isso é tudo o que conhecemos. Portanto, vamos nos ater nisso e não  tergiversar  e dizer "vamos conversar sobre o todo" e tudo o mais. 

Bohm: há um todo pode aparentemente ser razoável, mas enquanto você estiver fragmentado nunca consegue vê-lo.  Seria apenas uma pretensão. 

Shainberg: certo, certo. 

Bohm: você pode pensar que experimentou uma vez, mas isso é também uma pretensão, porque aquilo já se foi.

K: absolutamente, completamente certo. 

Shainberg: pergunto-me se não há uma dor tremenda ou algo que acontece quando estou consciente da minha fragmentação. Essa é a solidão de certa forma...

K: olhe, senhor, pode você estar consciente dos seus fragmentos? Que você é americano, que eu sou hindu, você é judeu, comunista... Você apenas vive nesse estado. Você não diz, "bem, eu sei que sou um hindu". Somente quando você é desafiado; somente quando perguntam "o que você é?", que você diz, "sim, sou um indiano", ou um hindu, ou um árabe. 

Bohm: quando o país é desafiado então você tem que ir para a guerra. 

K: claro. 

Shainberg: certo. Assim você está dizendo que estou vivendo totalmente de modo reativo. 

K: não, você está vivendo totalmente em um tipo de — o que? Miasma, confusão. 

Shainberg: de um pedaço ao próximo, de uma reação à reação seguinte. 

K: recompensa e punição, nesse movimento. Assim, podemos estar conscientes, de fato, agora, agora! — dos vários fragmentos? Que sou hindu, que sou um judeu, que sou um árabe, que sou comunista, que sou um católico, que sou um homem de negócios, que sou casado, tenho responsabilidades, sou um artista, um cientista... Está seguindo? — estas várias fragmentações sociológicas. 

Shainberg: certo. 

K: assim como fragmentação sociológica. 

Shainberg: certo. Isso é exatamente com o que comecei. Este sentimento de que sou um fragmento, este sentimento de que é aí onde sou absorvido, este sendo um fragmento...

K: que você chama de indivíduo.

Shainberg: que chamo de importante! Não apenas o indivíduo. 

K: você chama isso de importante. 

Shainberg: certo. Que tenho que trabalhar. 

K: certo.

Shainberg: isso é significante. 

K: assim, podemos nós agora, ao conversarmos junto sobre estar consciente de sou isso? Sou um fragmento e, portanto, criando mais fragmentos, mais conflitos, mais miséria, mais confusão, mais sofrimento, porque quando há conflito ele afeta tudo.

Shainberg: certo.

K: pode você estar consciente disso enquanto estamos discutindo?

Shainberg: posso estar consciente um pouco enquanto discutimos. 

K: ah! Não um pouco.

Shainberg: esse é o problema. Por que não posso estar consciente disso?

K: não, senhor. Você está consciente disso somente quando há conflito. Não há um conflito em você agora.

Shainberg: sim.

Bohm: é possível estar consciente disso sem conflito?

K: essa é a próxima coisa, sim. Isso requer uma diferente...

Bohm: como vamos considerar esta diferente abordagem?

K: uma abordagem totalmente diferente. 

Bohm: eu estava pensando em olhar por um ponto que a importância desses fragmentos é que quando me identifico e digo "eu sou isto", "eu sou aquilo", quero dizer o eu todo. Em outras palavras, o todo de mim é rico ou pobre, americano, ou o que for e, portanto, é de suma importância porque é o todo. Acho que o problema parece ser que o fragmento afirma ser o todo e se faz importante. 

Shainberg:  certo, toma a vida inteira. Esta é a vida.

Bohm: então, surge uma contradição e então vem um outro fragmento dizendo ser o todo. 

K: olhe o que está acontecendo na irlanda do norte, no mundo árabe, no oriente médio, os muçulmanos e os hindus, este mundo inteiro está fragmentado desse modo exterior e interior.

Shainberg: eu e você.

K: eu e você, nós e eles, e tudo o mais. 

Bohm: mas quero dizer que essa é a diferença entre dizer nós temos um monte de objetos diferentes em uma sala que estão separados e assim por diante com o que podemos lidar.

K: isso é uma coisa diferente.

Bohm: não há problema aí. Mas se dissermos "eu sou isto, eu sou totalmente isto" então também digo "sou totalmente isso e sou totalmente aquilo".

Shainberg: você está trazendo algo diferente aí; isso é exatamente como é que nós chegamos a acreditar nesses fragmentos. Porque olhamos para objetos e dizemos "eles são coisas separadas, portanto eu sou uma coisa separada". 

K: eu questiono isso, senhor. Digamos por exemplo, o árabe e o israelense, estão eles conscientes daquilo que são? Eu sou árabe, eu quero lutar com essa outra pessoa que não é? Ou, tenho uma idéia — você acompanha? — idéia. 

Bohm: o que você quer dizer? Uma idéia de que eu sou um árabe?

K: sim. 

Bohm: mas a idéia e aquilo também é muito importante. Sou totalmente um árabe. 

K: sim, sou totalmente um árabe. 

Bohm: é de toda importância. Essa é a estrutura da idéia, não é?

K: sim. 

Bohm: e agora alguém tem a idéia sou um judeu, isso é de toda importância, portanto eles devem destruir um ao outro. 

K: impossível, certo. E acho que os políticos, os religiosos, estão encorajando tudo isto. 

Bohm: mas eles também estão funcionando por fragmentos.

K: porque eles mesmos são fragmentos. Você vê, essa é a questão toda. As pessoas que estão no poder, estando fragmentadas sustentam as fragmentações. 

Shainberg: certo. O único modo de chegar ao poder é ser fragmentado. 

K: é claro!

Bohm: ele diz "é importantíssimo que eu seja um político de sucesso e assim por diante".

K: é claro.

Shainberg: este movimento à fragmentação quase parece ser causado por algo. Parece ser...

K: é isto que você está perguntando: qual é a causa da fragmentação? Certo?

Shainberg: certo. Qual é a causa da fragmentação, o que a produz?

K: isto é muito simples. 

Shainberg: o que nos puxa para dentro disso?

K: não, o que causa a fragmentação?

Shainberg: agora, você sabe, o que a origina, quando a mãe e a criança, quando a criança separa-se da mãe. Certo? 

K: biologicamente.

Shainberg: não, psicologicamente. 

K: biologicamente assim como psicologicamente...

Shainberg: a criança começa a ser capaz de andar e a criança pode distanciar-se e então ela corre de volta, e então corre de volta e olha para trás, ela diz "ela ainda está ali?"


K: Gradualmente se afasta. 


Shainberg: Daí a mãe que não é capaz de deixá-la ir diz: "Ei volte aqui". Então assusta terrivelmente a criança, porque a criança pensa: "eu não posso fazer isso, se ela diz que não pode fazer, eu não posso fazer".

K: Certo. Não, nós estamos perguntando algo muito importante, que é, qual é a causa desta fragmentação?

Shainberg: Sim. É por isso que eu estava entrando nisso. Tem alguma coisa ali, começa ali este "Eu tenho que me segurar a algo".

K: Não. Apenas olhe para isso, senhor. O que provocou a fragmentação em você?

Shainberg: Minha resposta imediata é a necessidade de segurar-se a algo.

K: Não, muito mais profundo que isso. Muito mais. Olhe para isso. Vamos devagar nisso. Sem respostas imediatas. O que produz o conflito que indica que estou fragmentado, e então eu pergunto, o que gera esta fragmentação? Qual é a causa disso?

Bohm: Você está dizendo que há um conflito e alguma coisa acontece ali que causa a fragmentação no conflito?

Shainberg: Não, ele está dizendo que a fragmentação causa o conflito.

Bohm: É a causa do conflito. Então qual é a causa da fragmentação?  Certo. Isso é importante.

K: Por que eu e você e a maioria do mundo está fragmentada? Qual é a origem disso?

Bohm: Parece que não vamos descobrir a causa voltando ao tempo até um certo acontecimento.

Shainberg: Não estou buscando pela genética, estou buscando nesse exato segundo.  Me deparo com uma... parece ter a ver com há um foco ou um segurar-se a algo dentro do meu movimento.

K: Senhor, olhe para isso não a partir do ponto de vista do Dr. Shainberg, apenas olhe para isso. Ponha isso sobre a mesa, por assim dizer e olhe para isso objetivamente. O que produz a fragmentação?

Shainberg: Medo.

K: Não, não, muito mais.

Shainberg: Talvez a fragmentação cause medo.

K: É isso, é isso. Por que sou um hindu? Se eu fosse — eu não sou um hindu, não sou um indiano, não tenho nacionalidade —, mas suponhamos que eu me denomine hindu. O que me torna um hindu?

Shainberg: Bem, o condicionamento te faria um hindu.

K: Ou seja, qual é o "background", qual é o sentimento ou o que é que me faz dizer "eu sou um hindu"? Que é uma fragmentação, obviamente. O que o faz? Meu pai, meu avô, gerações e gerações, depois de dez mil ou cinco mil anos, dizem "Você é um brâmane". E eu digo "Está bem, sou um brâmane".

Shainberg: Você não diz "está bem, eu sou um brâmane" — você diz "Eu sou um brâmane".

K: Eu sou um brâmane.

Shainberg: Certo. Isso é muito diferente. Você diz "Eu sou um brâmane" porque é como você... eles trabalham em você desse modo.

K: Sim. Sou um brâmane como você ao dizer "sou um cristão".

Shainberg: Certo.

K: Isso significa o que?

Shainberg: Isso é tradição, condicionamento, sociologia, história, cultura, clima, tudo.

K: Tudo. Mas, por trás disso, o que é aquilo?

Shainberg: Por trás disso há a humana...

K: Não, não, não teorize. Olhe para isso em si mesmo.

Shainberg: Isso me dá um lugar, uma identidade, então eu sei quem eu sou, tenho meu pequeno nicho.

K: Quem fez esse nicho?

Shainberg: Eu o fiz, e eles me ajudaram a fazê-lo. Em outras palavras, estou cooperando nesse próprio...

K: Você não está cooperando. Você é isso.

Shainberg: Eu sou isso! Certo, mas quero dizer — isso está certo a coisa toda está se movendo de forma a me colocar em um buraco.

K: Desse modo o que criou você, os mais remotos, antepassados, os avós, criaram este ambiente, esta cultura, esta estrutura inteira da existência humana com toda a sua miséria e com toda a confusão em que se encontra. Quem, o que ocasionou isso? Que é a fragmentação com todo o conflito e todo o...

Shainberg: A mesma ação que acontece agora.

K: Agora. É isso que estou perguntando.

Shainberg: Sim. A mesma ação que cria o homem agora, exatamente agora.

K: Os babilônios, os egípcios, os antigos, nós somos exatamente os mesmos macacos.

Shainberg: Certo. É nisto que eu estava chegando no começo. Isto tudo me dá uma existência de segunda-mão.

K: Sim. Prossiga. Vamos entrar nisso. Vamos descobrir por que o homem criou ou gerou este estado e o qual o aceitamos — estão seguindo? Alegremente e ou relutantemente.

Shainberg: Adoro isso. Adoro isso.

K: estou disposto a matar alguém porque ele é um comunista ou um socialista, ou o que quer que seja. Exatamente o que está acontecendo na Irlanda do Norte, no Oriente Médio.

Shainberg: Bem, em toda parte, você sabe, doutores, advogados...

K: Claro, claro. O mesmo problema.

Shainberg: Meu senso sobre isso é que isso me bloqueia, me isola, retém o movimento, você sabe, é como a árvore que não aparece. Se eu sei quem eu sou então não olho para a árvore.

K: Sim, senhor, mas você não está respondendo minha pergunta.

Shainberg: Tenho algumas respostas, mas...

K: É o desejo por segurança, tanto a segurança biológica como psicológica?

Shainberg: Poderia-se dizer que sim.

K: Se eu pertenço a alguma coisa, a alguma organização, algum grupo, alguma seita, alguma comunidade ideológica, estou seguro ali.

Bohm: Isso não está claro porque você pode sentir-se seguro mas...

K: Me sinto seguro ali. Mas isso pode não ser segurança.

Bohm: Sim, mas por que eu não vejo que não estou de fato seguro?

K: Porque sou tão — o que? Está vindo, você está entrando nisso, está vindo.

Shainberg: Eu não vejo isso.

K: Apenas olhe. Entro numa comunidade. Sou um médico.

Shainberg: Certo. Sou um médico.

K: Sim, você é um médico.

Shainberg: Adquiri todas estas idéias.

K: Você é um médico, você tem uma posição especial na sociedade.

Shainberg: E adquiri um monte de ideias a respeito de como as coisas funcionam.

K: Você tem uma posição especial na sociedade e ali você está completamente seguro — seguro.

Shainberg: Certo.

K: Você pode exercer de maneira ruim e tudo mais, mas você está bem protegido pelos outros médicos, as outras organizações, um grupo de médicos — está seguindo?

Shainberg: Certo.

K: Você se sente seguro.

Bohm: Mas não é essencial que eu não deveria questionar tanto, para me sentir seguro? Em outras palavras, devo parar meu questionamento num certo ponto.

K: Eu sou um médico — acabou.

Bohm: Não faço muitas perguntas sobre isso mas se eu começasse a fazer perguntas...

K: Então você está fora!

Bohm: Então, as pessoas dizem "não faça perguntas, isso é"...

K: Sim. Se começo a fazer perguntas sobre a comunidade e meu relacionamento com essa comunidade, meu relacionamento com o mundo, minha relação com meu vizinho, estou liquidado — estou fora da comunidade. Estou perdido.

Shainberg: Certo.

K: Desse modo, para me sentir salvo, seguro, protegido, eu pertenço.

Shainberg: Eu dependo.

K: Eu dependo.

Shainberg: Certo.

Bohm: Eu dependo totalmente, em certo sentido. Se eu não tenho aquilo então sinto que a coisa toda naufragou.

Shainberg: Isto é bom. Você vê, eu não somente dependo, mas todo problema que tenho agora é com referência a esta dependência. Eu não sei nada sobre o paciente, sei somente sobre como o paciente não se encaixa no meu sistema.

K: Certo, certo.

Shainberg: Assim, esse é o meu conflito.

K: Ele é a vítima.

Shainberg: Está certo, minha vítima. Ele adora isso.

Bohm: Ainda não está claro por que eu deveria prosseguir com isso. Enquanto eu não fizer perguntas posso me sentir confortável, mas me sinto desconfortável e faço perguntas, muito profundamente desconfortável porque toda a minha situação é desafiada. Mas então, se olho mais amplamente, eu vejo que a coisa toda não tem fundamento, é tudo perigoso. Em outras palavras, esta própria comunidade está em confusão, pode sofrer um colapso. Ou mesmo se a totalidade dela não entra em colapso você vê, você não pode mais contar com a profissão acadêmica, eles podem não dar dinheiro para as universidades.

K: Certo.

Bohm: Tudo está mudando tão rápido que você não sabe onde está. Assim, por que eu não deveria continuar fazendo perguntas?

K: Por que não faço perguntas? Por causa do medo.

Bohm: Medo, mas esse medo é devido à fragmentação.

K: É claro. Desse modo, o começo desta fragmentação se dá quando a pessoa está buscando segurança?

Shainberg: Mas por que...

K: Tanto biológica quanto psicologicamente. Primeiramente psicológica, depois biologicamente.

Bohm: Mas, a tendência de buscar segurança não é construída fisicamente dentro do organismo?

K: Sim, isso é correto. Eu preciso ter comida, roupas, abrigo. É absolutamente necessário.

Shainberg: Certo.

K: E quando isso é ameaçado — digamos se eu questionasse completamente o sistema comunista morando na Rússia... Deixo de ser alguém.

Shainberg: Mas vamos um pouco mais devagar aqui. Você está sugerindo aí que na minha necessidade por segurança, biologicamente eu preciso ter alguma fragmentação.

K: Não, senhor. Biologicamente a fragmentação acontece, a insegurança acontece quando psicologicamente eu quero segurança. Não sei se estou me fazendo claro. Espere um minuto. Se psicologicamente não pertenço a um grupo, então estou fora desse grupo.

Shainberg: E então fico inseguro.

K: Estou inseguro. E por que o grupo me dá segurança, a segurança física eu aceito tudo o que me dão, me dizem. Mas, no momento em que me oponho psicologicamente à estrutura da sociedade ou da comunidade, estou perdido. Isto é um fato óbvio.

Shainberg: Certo.

Bohm: Sim.

Shainberg: Então, você está sugerindo que a insegurança básica em que vivemos está condicionada a reação a isto, a resposta a isto, é uma fragmentação condicionada.

K: Parcialmente.

Shainberg: Parcialmente. E que o movimento da fragmentação é o condicionamento.

K: Senho, veja. Se não houvesse fragmentação, tanto historicamente, geograficamente, nacionalmente, sem nações, nós viveríamos de maneira perfeitamente segura. Estaríamos todos protegidos, todos teríamos comida, todos nós teríamos — está acompanhando? Casas, não haveria guerras, tudo seria uma coisa só. Ele é meu irmão. Eu sou ele, ele é eu.  Mas, esta fragmentação impede que isso aconteça.

Shainberg: Certo. Assim, você está sugerindo ainda mais aí, você está sugerindo que nos ajudaríamos uns aos outros.

K: Naturalmente, eu ajudaria — obviamente!

Bohm: Entretanto, ainda estamos andando em um círculo, porque você diz...

K: Não estou andando em círculos, quero voltar a algo que é, se não houvesse nacionalidades, grupos ideológicos, e assim por diante, nós estaríamos perfeitamente, quero dizer, teríamos tudo o que quiséssemos... Em lugar de gastar em armamentos e tudo mais, educação apropriada, tudo isso. Isso é impedido porque eu sou hindu, você é um árabe, ele é um russo, está seguindo? — Tudo isso é impedido. Estamos perguntando: por que esta fragmentação acontece? Qual é a origem disso? Será o conhecimento? Sim, senhor!


Shainberg: É o conhecimento, você acha...

K: É o conhecimento? estou certo que é, mas estou colocando como uma pergunta.

Shainberg: Certamente parece ser...

K: Não, não — olhe para isso. Vamos descobrir.

Shainberg: O que você quer dizer com "conhecimento"?  De que você está falando aí?

K: A palavra "conhecer". Eu conheço você? Ou eu conheci você. Nunca posso dizer "Eu conheço você" — realmente. Seria uma abominação dizer "Eu conheço você". Eu conheci você. Porque nesse ínterim você está mudando, você, todos os seus — está seguindo? Há uma enorme quantidade de movimento acontecendo em você. E dizer "Eu conheço você", significa eu sou íntimo ou estou familiarizado com esse movimento que está acontecendo em você. Seria insolência da minha parte dizer "Eu conheço você".

Shainberg: Está certo. Porque não apenas isso, isso seria negar seu efeito sobre mim que está me causando, que é uma mudança por estar te conhecendo, por estar com você.

K: Desse modo, conhecer, o conhece, é passado. Você diria que...

Bohm: Sim, quero dizer, o que conhecemos é o passado.

K: Conhecimento é o passado.

Bohm: Quero dizer, o perigo é que nós chamamos isso de presente. É isso? O perigo é que nós chamamos o conhecimento de presente.

K: É isso mesmo.

Bohm: Em outras palavras, se dissermos, o passado é o passado, então, você não diria que não precisa de fragmento?

K: Como é? Desculpe.

Bohm: Se dissermos, se reconhecermos ou admitirmos que o passado é o passado, já passou, portanto, o que conhecemos é o passado,  então isso não introduziria fragmentação.

K: Isso não introduziria, certíssimo.

Bohm: Mas, se dizemos que o que sabemos é o que é presente agora, então, estamos introduzindo fragmentação.

K: Certo, certíssimo.

Bohm: Porque estamos impondo este conhecimento parcial ao todo.

K: Desse modo, você diria que o conhecimento é um dos fatores da fragmentação?  Senhor, dizer isso é terrível — está acompanhando? É muito difícil de se engolir.

Bohm: Mas você também está deixando implícito que há outros fatores.

K: Sim. Esse pode ser o único fator.

Bohm: Mas eu acho que deveríamos olhar para isso desta forma, as pessoas nutririam esperança de superar a fragmentação através do conhecimento para produzir um sistema de conhecimento que unirá tudo isso.

K: É claro. Como em "A escalada do Homem", de Bronowsky, através do conhecimento, enfatizando o conhecer, o conhecer, não será isso um dos principais fatores, ou talvez o fator da fragmentação? "Minha experiência me diz que sou um hindu, minha experiência me diz que sei o que é deus".

Bohm: Não seria melhor dizer que a confusão quanto ao papel do conhecimento é que é a causa da fragmentação?

K: Sim.

Bohm: Em outras palavras, o próprio conhecimento, se você diz que o conhecimento é sempre a causa...

K: Não, eu disse, nós começamos perguntando.

Bohm: Vamos deixar isso claro.

K: Claro. Foi isso que dissemos ontem na nossa conversa. A arte é colocar as coisas em seu devido lugar. Desse modo, eu ponho o conhecimento no seu lugar correto.

Bohm: Sim, assim não estamos mais confusos acerca disso.

K: Claro.

Shainberg: Certo, certo. Sabe, eu só ia trazer este exemplo interessante, uma paciente minha estava ensinando-me algo outro dia, ela disse, "Tenho o sentimento de que como um médico, o modo como você opera é, há um grupo de médicos, que viram certos tipos de pacientes e se eles fazem "X" para eles, eles obterão determinados tipos de efeitos e alcançarão coisas". Ela disse "você não está falando comigo, está fazendo isto comigo esperando conseguir este resultado".

K: Certo.

Shainberg: É isso que você está dizendo.

K: Não, um pouco mais que isso. Estamos dizendo, tanto eu como o Dr. Bohm, estamos dizendo, o conhecimento tem o seu lugar.

Shainberg: Vamos entrar nisso.

K: Como dirigir um carro, aprender uma língua e assim por diante.

Bohm: Poderíamos dizer, por que isso não é fragmentação? Poderíamos tornar claro, em outras palavras, se dirigimos um carro usando o conhecimento isso não é fragmentação.

K: Mas, quando o conhecimento é usado psicologicamente...

Bohm: Deveria se ver mais claramente qual é a diferença. O próprio carro, a meu ver, é uma parte, uma parte limitada e, portanto, pode ser tratado pelo conhecimento.

Shainberg: Você quer dizer que é uma parte limitada da vida.

Bohm: Da vida, sim. Mas, quando dizemos "eu sou isso e aquilo", quero dizer, o todo de mim, portanto, estou aplicando a parte ao todo. Estou tentando cobrir o todo com uma parte.

K: Quando o conhecimento supõe que conhece o todo daí começa o estrago.

Bohm: Sim. Mas é bem complicado porque não estou explicando detalhadamente e explicitamente o que entendo o todo, mas está implícito ao dizer "Eu, tudo é deste modo, ou sou desta maneira".

K: certo.

Bohm: Isto implica que o todo é deste modo. O todo de mim, o todo da vida, o todo do mundo.

Shainberg: O que Krishnaji estava dizendo, como "eu conheço você", é assim que lidamos com nós mesmos. Dizemos "eu sei isto sobre mim", em vez de estar aberto ao novo evento. Ou mesmo de estar consciente da fragmentação.

Bohm: Sim, logo eu não deveria dizer que sei tudo sobre você porque você não é uma parte limitada como uma máquina, isso é o que está implícito. A máquina é absolutamente limitada e podemos saber tudo o que é relevante sobre ela, ou, de certo modo, quase tudo. Ás vezes, ela quebra.

K: Certo, certo.

Bohm: Mas, quando se trata de outra pessoa, isto está imensamente além daquilo que você realmente pode saber. A experiência passada não lhe diz nada da essência. 

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