segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Como promover a essencial mudança radical em nós mesmos?


Dissemos outro dia que se faz necessária uma revolução radical, não só na estrutura da sociedade, mas também psicologicamente. Há uma necessidade de uma total mutação interior, de uma revolução no ser psicológico.


Vemos a sociedade mergulhada numa terrível desordem, baseada que está na avidez, na inveja, no poder, na posição, etc. E nós, entes humanos, componentes da sociedade vemo-nos também em desordem. Porque a vida do ente humano em geral — a rotina diária, o diário tormento de ganhar o sustento — terrível solidão e tédio, interminável repetição — pouco significa. Para dar significado e sentido à vida, inventaram os intelectuais, em todo o mundo, no Ocidente e no Oriente, filosofias e religiões; disseram: “Existe Deus; há um certo estado mental que devemos esforçar-nos para alcançar”. Também um grande número de filósofos têm dito coisas sem nenhuma relação com a vida. Tem-se tentado dar-lhe significado, porém, na realidade — não intelectual ou idealmente considerada — a vida, tal como é, tal como a conhecemos diariamente, é na verdade absolutamente sem significação. Sem significação, não só porque nós, entes humanos, nos achamos num estado de desordem, mas porque nossa vida é toda de repetição. Passamos anos inteiros num escritório — quarenta ou cinquenta — a executar incessantemente coisas desinteressantes e, é bem de ver, interiormente a desordem é cada vez maior. Exteriormente, tem-se tentado estabelecer a ordem mediante a legislação, mediante a ditadura sob várias formas, mediante o controle da mente e do comportamento humano — criando-se, no exterior, politicamente, economicamente, um simulacro de ordem, enquanto interiormente, nenhuma ordem existe. A ordem implica — não é verdade? — um estado inteiramente livre de conflito; um estado mental lúcido, livre de toda rotina; um estado mental não condicionado por inclinações ou tendências pessoais ou compelido por influências externas, ambientes. E essa ordem — assim me parece — deve nascer sem esforço algum de nossa parte; ela não pode ser produzida pela vontade, pelo empenho, no terreno dos conceitos e das ideias. Em nossa mente confusa, em nossa aflição, em nossa infinita solidão e conflito, tal esforço não pode, de modo nenhum, criar a ordem, porém, tão-só, aumentar a confusão.

Que fazer? Que deve fazer um ente humano, ao compreender que está confuso, incerto, vivendo uma vida de rotina, de imitação, de ajustamento a um padrão estabelecido pela sociedade de que faz parte, e percebendo a um só tempo a necessidade de ordem dentro de si mesmo? Se não há ordem interior, por maior que seja a ordem exterior, a desordem interior superará o simulacro de ordem externa. Isso me parece bastante claro. Assim, como estabelecer ordem nós mesmos?

Ordem significa um estado mental em que não há contradição e, portanto, nenhum conflito. Isso não implica estagnação ou declínio. A ordem que obedece a uma fórmula, a um ideal ou conceito é, simplesmente, desordem. Se um ente humano se ajusta a um padrão de pensamento — uma certa coisa ideal que ele deveria ser — nesse caso está meramente a imitar, a ajustar-se, a disciplinar-se, a forçar-se, a fim de adaptar-se a um molde. Assim fazendo (como na vida em sociedade vem sendo forçado a fazer há séculos e séculos, porquanto a sociedade trata sempre de controla-lo mediante diferentes sansões religiosas, leis, etc.), nesse caso, naturalmente, está sempre a produzir-se uma grande desordem. Essa me parece ser a razão básica da revolta que atualmente se observa em todo o mundo. As gerações mais novas estão tratando de lançar fora as ideias, os deuses, as normas de conduta da geração mais velha; tudo isso está sendo posto de lado; estão em revolta contra a sociedade, contra a ordem estabelecida. E, todavia, a ordem que estão buscando irá estabilizar-se, pouco a pouco, num padrão e, por conseguinte, criará a desordem neles próprios.

O problema, portanto, é este: Como promover a mudança radical? Essa é uma necessidade essencial e óbvia. Se existe um motivo para a mudança, nesse caso a pessoa está agrilhoada ou escravizada ao passado, uma vez que todos os motivos procedem do fundo de condicionamento de cada um.

Espero que, juntos, possamos examinar a fundo esta matéria. Se estais apenas a ouvir intelectual, emocional ou verbalmente, nesse caso não estamos trabalhando juntos; estais apenas a ouvir algumas séries de ideias e a concordar ou discordar — e isso tem muito pouco valor. Mas se, realmente, pudermos, todos juntos, penetrar este problema, destrinchá-lo de fato, vive-lo, nesse próprio ato de escutar poderá operar-se a revolução radical, psicológica.

Todos estamos de acordo (pelo menos intelectualmente) quanto a necessidade de uma mudança em toda a estrutura mental, no ser inteiro. Nesse sentido temos tentado vários meios: disciplina, ajustamento, obediência, seguir; ou temos aceito a vida tal qual é e tratado de vive-la a pleno; e, se temos certas capacidades, dinheiro, ao chegar a morte dizemos que vivemos uma boa vida e agora é chegado o fim dela. Podemos perceber que, para viver, necessita-se ordem — porque sem ordem não há paz — mas a ordem que se cria mediante a identificação do indivíduo com um conceito, uma ideia, uma fórmula, só produz isolamento. Embora a pessoa possa identificar-se com uma coisa tal o nacionalismo ou uma ideia de Deus, essa identificação causa separação e conflito. Por conseguinte, o identificar-nos com uma ideia, um conceito, não efetua nenhuma mudança radical.

Exteriormente, estão-se verificando enormes mudanças tecnológicas, porém, interiormente, continuo o mesmo que sou há séculos — em conflito, aflição, a batalhar comigo mesmo e com os outros; minha vida é um campo de batalha, todas as minhas relações baseiam-se em imagens formadas pelo pensamento. Sendo a vida um campo de batalha, desejo alterá-la, porque vejo que nenhuma possibilidade tenho de viver em paz, dentro de mim mesmo, ou com a sociedade, ou com meu semelhante, a menos que haja perfeita ordem, quer dizer, liberdade perfeita. A ordem só pode tornar-se existente quando há liberdade; e não é possível a liberdade pela escravização a uma ideia, ou a aceitação de uma certa teologia, ou o ajustamento a um certo padrão, imposto pela sociedade ou por mim próprio. Que devo fazer, então? Não sei se já refletistes a esse respeito; se o fizestes, deveis ter percebido que se trata realmente de um problema formidável. Que devo fazer, eu, um ente humano condicionado por milhões de anos, dotado de um cérebro que só funciona por padrões de autoconservação (autoconservação que leva cada vez mais ao isolamento e, portanto, a mais e mais conflito), que devo fazer? Percebendo todo este campo de batalha em que, como ente humano, estou vivendo, atormentado pelo medo, pelo sentimento de “culpa”, pelo desespero; apegado às memórias do passado; temendo morrer; vivendo numa semi-obscuridade, embora suficientemente engenhoso para inventar teorias de toda espécie; trabalhando, escrevendo livros, explicando, fazendo tudo o que em geral fazem os entes humanos — percebendo tudo isso, não como ideia, não como coisa existente fora de mim, porém, vendo realmente que essa é minha vida, que devo fazer? Como mudar toda estrutura psicológica de minha existência?

Se este é um problema que vos concerne tanto quanto concerne ao orador (não é propriamente um problema meu, mas estamos explorando juntos), que devemos fazer? É claro que não pode mais haver autoridade alguma, pois ninguém pode dizer-nos o que devemos fazer — nenhum sacerdote, nenhum teólogo, nenhum guru, nenhum livro, nenhum agente externo pode dizer-nos o que devemos fazer. Tudo isso já tentamos e não tem significação alguma, nem nunca a teve. Uma vez que não pode haver nenhuma autoridade, tenho de depender totalmente de mim mesmo. Entretanto, esse “eu mesmo” é uma entidade confusa. Quanto mais rejeito todo e qualquer agente externo que me prometa uma mudança dentro de mim mesmo — sanções, leis que me obrigam a fazer isto ou aquilo — quanto mais rejeito tudo isso, tanto mais cônscio me torno do enorme problema de “mim mesmo” — um ente confuso, incerto, ignorante. E, ao tornar-me cônscio disso, há mais medo, mais desespero e, como reação, uma reversão às condições anteriores, isto é, trato de ingressar em organizações políticas ou religiosas; se eu era católico, torno-me protestante; se era protestante, trato de seguir o Zen ou de adotar outra espécie de distração. E o problema fundamental fica sem solução.

Eis, pois a situação. Rejeitamos totalmente a autoridade externa — se a temos — percebendo que essa autoridade é uma das causas da desordem. Vemos que estivemos seguindo um certo “instrutor”, filósofo, salvador, e que o seguíamos por medo e não por amor. Se tivéssemos amor, não seguiríamos ninguém; o amor não obedece, o amor não conhece dever e responsabilidade. Uma pessoa segue, aceita, obedece, essencialmente porque tem medo — medo de não alcançar os seus fins, de errar o caminho, etc. — há dúzias de formas de medo. Interiormente, é dificílimo rejeitar a autoridade — a autoridade de outrem e também a autoridade de nossos próprios conceitos, de nossa passada experiência. Relativamente fácil é rejeitar a autoridade da sociedade; os monges o têm feito de várias maneiras e a moderna “geração mais nova” o está fazendo de diferente maneira. Mas, o livrar-nos da autoridade de nosso próprio condicionamento, de nossas experiências, da autoridade do passado é sobremodo importante, é essencial, porque é ela que gera a autoridade externa, e também o medo, dado o nosso desejo de certeza, segurança, proteção.

Assim, o libertar-nos do passado, que significa libertar-nos do medo, do medo psicológico, é, sem dúvida, o primeiro requisito da ordem. Podemos ficar totalmente livres do temor, tanto no nível consciente como no inconsciente?

Krishnamurti – 20 de abril de 1967 - A essência da Maturidade – Ed. ICK – pág. 20 à 24

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A compreensão de nós mesmos é o despertar e o fim do medo


Existe o medo. O medo nunca é uma realidade: ele vem sempre antes ou depois do presente ativo. Quando há medo no presente ativo, será isso medo? Ele está ali e não há como fugir dele, não há como escapar. Ali, no momento presente, há atenção total ao momento de perigo, físico ou psicológico. Quando existe uma atenção total não existe medo. Mas o próprio fato da desatenção gera o medo; o medo surge quando existe a evitação do fato, uma fuga; então, a fuga é, ela própria, o medo.

O medo em suas diversas formas — culpa, ansiedade, esperança, desespero — está presente em cada movimento do relacionamento; ele está presente em cada busca de segurança; ele está presente na ambição e no sucesso; está presente na vida e na morte; está presente nas coisas físicas e nos fatores psicológicos. Existe o medo em muitas formas diferentes e em todos os níveis da nossa consciência. A defesa, a resistência e a negação nascem do medo. Medo do escuro e medo da luz; medo de ir e medo de vir. O medo começa e termina com o desejo de segurança, de ter segurança interior e exterior, com o desejo de ter certeza, de ter permanência. A continuidade da permanência é procurada em todas as direções, na virtude, no relacionamento, na ação, na experiência, no conhecimento, nas coisas exteriores e nas interiores. Encontrar a segurança e tornar-se seguro é a última palavra. É essa demanda insistente que produz o medo.

Mas existe permanência, exterior ou interior? Talvez, em certa medida, existe a permanência exterior, mas mesmo essa é precária: há guerras, revoluções, progresso, acidentes e terremotos. É preciso que haja alimentos, roupas e abrigos; isso é essencial e necessário para todos. Embora sempre procurada, tanto às cegas como através da razão, será que existe a certeza interior, a continuidade interior, a permanência? Não existe. A fuga dessa realidade é medo. A incapacidade de enfrentar essa realidade produz todo tipo de esperança e desespero.

O próprio pensamento é a fonte do medo. Pensamento é tempo; o pensamento no amanhã é prazer ou dor; se for algo prazeroso, o pensamento irá persegui-lo, temendo que acabe; se for doloroso, a própria tentativa de evita-lo já é medo.  Tanto o prazer quanto a dor provocam medo. Tempo como pensamento e tempo como sentimento provocam medo. O único meio de acabar com o medo é a compreensão do pensamento, do mecanismo da memória e da experiência. O pensamento é todo o processo da consciência, tanto o visível como o oculto; o pensamento não é apenas a coisa em que se pensa, mas também a origem de si mesmo. O pensamento não é, meramente, crença, dogma, ideia e razão, mas o núcleo do qual isso tudo brota. Esse núcleo é a origem de todo o medo. Mas é da experiência do medo ou da percepção da causa do medo que o pensamento tenta escapar? A autoproteção física é algo útil, normal e saudável; mas qualquer outra forma de autoproteção interior é resistência e sempre reúne forças, se robustece, e isso é medo. Mas esse medo interior faz com que a segurança exterior se torne um problema de classe, de prestígio, de poder e o resultado disso é uma competição implacável.

Quando se enxerga todo o processo de pensamento, tempo e medo — e não como uma ideia, uma fórmula intelectual — há o fim definitivo e total do medo, consciente ou oculto. A compreensão de nós mesmos é o despertar e o fim do medo.  

E quando o medo cessa, o poder de criar ilusão, mitos e visões, com sua esperança e desespero, também cessa, e só então tem início um movimento de ir além da consciência, a qual é pensamento e sentimento. É o esvaziar de nossos recessos mais profundos e das vontades e desejos mais ocultos. Então, quando se atingiu o vazio total, quando não há absoluta e literalmente nada, nenhuma influência, palavra, valor ou fronteira, então, nesse silêncio total do espaço-tempo, existe o que é indizível.

Krishnamurti – Diário de Krishnamurti – Paris, 14 de setembro de 1961

terça-feira, 23 de outubro de 2012

O conhecido e o desconhecido


Pode aquilo que é incomensurável ser encontrado por mim e você? Pode aquilo que não é temporal ser buscado por aquilo que é formado pelo tempo? Pode uma disciplina diligentemente praticada nos levar até o desconhecido? Pode essa realidade ser captada pela rede de nossos desejos? O que podemos captar é a projeção do conhecido; mas o desconhecido não pode ser captado pelo conhecido. Aquilo que é nomeado não é o inominável, e ao nomear nós apenas despertamos as reações condicionadas. Essas reações, por mais nobres e agradáveis, não pertencem ao real. Nós reagimos a estímulos, mas a realidade não oferece estímulos: ela é.

A mente se move do conhecido para o desconhecido, e ela não pode alcançar o desconhecido. Nós não podemos pensar em algo que não conhecemos; é impossível. Aquilo sobre o que você pensa resulta do conhecido, do passado, quer seja esse passado remoto ou o segundo que acabou de passar. Esse passado é pensamento, moldado e condicionado por muitas influências, modificando-se segundo as circunstâncias e pressões, mas sempre permanecendo como um processo do tempo. O pensamento só consegue negar ou afirmar, ele não pode descobrir ou pesquisar o novo. O pensamento não pode chegar ao novo; mas quando do pensamento está silencioso, aí pode haver o novo — que é imediatamente transformado no velho, no experienciado, pelo pensamento. O pensamento está sempre moldando, modificando e colorindo segundo um padrão de experiência. A função do pensamento é se comunicar, mas não estar no estado de experienciar. Quando a experiência cessa, o pensamento assume o controle e a denomina dentro da categoria do conhecido. O pensamento não pode penetrar no desconhecido e, assim, nunca pode descobrir ou experienciar a realidade.

Disciplina, renúncia, desapego, rituais, a prática da virtude — tudo isso, independentemente do quão nobre seja, é um processo do pensamento; e o pensamento só pode trabalhar em direção a um fim, em direção a uma realização, que é sempre o conhecido a realização é segurança, a certeza auto-protetora do conhecido. Buscar segurança naquilo que é sem nome é negá-lo. A segurança que pode ser encontrada está somente na projeção do passado, do conhecido.  Por esse motivo, a mente deve estar profunda e inteiramente silenciosa; mas esse silêncio não pode ser conseguido por meio do sacrifício, sublimação ou repressão. Esse silêncio vem quando a mente deixou de buscar, quando não está mais presa ao processo de se tornar. Esse silêncio não é cumulativo, não pode ser construído pela prática. Ele deve ser tão desconhecido para a mente quanto o eterno; pois se a mente experiência o silêncio, então existe o experienciador, que é o resultado de experiências passadas, que é conhecedor de um silêncio passado; e o que é experienciado pelo experienciador é simplesmente uma repetição projetada. A mente jamais pode experienciar o novo e, portanto, deve estar inteiramente silenciosa.

A mente só pode estar silenciosa quando não está experienciando, isto é, quando não está nomeando ou denominando, registrando ou armazenando na memória. Essa nomeação e esse registro são um processo constante dos diferentes níveis da consciência, não simplesmente da camada mais superficial da mente. Mas quando a mente superficial está silenciosa, a mente mais profunda pode oferecer suas sugestões. Só quando toda a consciência está silenciosa e tranqüila, livre de todo o anseio de tornar-se, o que é espontaneidade, o incomensurável toma forma. O desejo de manter essa liberdade dá continuidade à memória daquele que quer se tornar, o que é um obstáculo à realidade. A realidade não tem continuidade; é de momento a momento, sempre nova, sempre original. O que tem continuidade jamais pode ser criativo.

A camada mais superficial da mente é somente um instrumento de comunicação, não podendo medir aquilo que é incomensurável. A realidade não é para ser comentada; e quando o é, não é mais realidade.

Isso é meditação.

Krishnamurti 

O que é essa estranha coisa chamada amor?

Dou-me conta de que o amor não pode existir quando há ciúmes; o amor não pode existir quando há apego. Bem, agora, é possível para mim estar livre do ciúmes e do apego? Dou-me conta de que não amo. Isso é um fato. Não vou enganar a mim mesmo: não vou fingir com minha mulher que a amo. Não sei o que é o amor. Porém, se sei que sou ciumento e também sei muito bem que estou terrivelmente apegado a ela e que no apego há temor, ciúmes, ansiedade há um sentido de dependência. Não gosto de depender, porém, dependo porque me sinto só; me pressionam por todos os lados, no serviço, na fabrica, e venho para minha casa e quero sentir-me cômodo e em companhia, desejo escapar de mim mesmo. Agora me pergunto: Como hei de me libertar deste apego? Tomo isso só como um exemplo.

Em primeiro lugar, quero safar-me do problema. Não sei como vão terminar as coisas com minha mulher. Quando estiver realmente desapegado dela, minha relação com ela pode se modificar. Ela poderia apegar-se a mim e eu poderia não estar apegado a ela nem a nenhuma outra mulher. Porém, vou investigar. Portanto, não escaparei do que imagino poderia ser a consequência de estar totalmente livre de apego. Não sei o que é o amor, porém, vejo muito claramente, definidamente, sem nenhuma dúvida, que o apego por minha mulher significa ciúmes, possessão, medo, ansiedade; e desejo libertar-me de tudo isso. De modo que começo a investigar; busco um método e caio preso num sistema. Certo guru disse: "Lhe ajudarei a desapegar-se, faça isto e isto, pratica isto e aquilo". Aceito o que ele disse porque vejo a importância de estar livre, e ele me promete que se faço o que aconselha serei recompensado. Porém, vejo que desse modo estou buscando uma recompensa. Vejo o tonto que sou: quero ser livre e me apego a uma recompensa.

Não desejo estar apegado e, não obstante, me encontro apegado a ideia de que alguém ou algum livro ou algum método me recompensará livrando-me do apego. Por conseguinte, a recompensa se converte em um apego. Assim que digo: "Olhe para o que tem feito; seja cuidadoso, não caia preso nessa armadilha". Seja que se trata de uma mulher, de um método ou de uma ideia, isso segue sendo apego. Agora estou muito alerta porque tenho aprendido algo, ou seja, no trocar o apego por alguma outra coisa, segue sendo apego.

Pergunto-me: "Que devo fazer para libertar-me do apego?" Qual é o motivo para querer estar livre do apego? Não é que anseio alcançar um estado onde não há apego nem temor nem nada disso? E subitamente me dou conta de que o motivo imprime uma direção e que essa direção ditará minha liberdade. Por que ter um motivo? O que é um motivo? O motivo é uma esperança ou um desejo de mudar algo. Vejo que estou apegado a um motivo. Não só minha esposa, não só minha ideia, não só o método, senão que também o motivo se converteu em meu apego! De modo que todo o tempo estou funcionando dentro do campo do apego: a esposa, o método e o motivo de mudar algo no futuro. Estou apegado a tudo isto. Vejo que é algo tremendamente complexo; não havia me dado conta de que estar livre do apego implica todas estas coisas. Agora o vejo tão claramente como vejo num mapa as estradas principais, as estradas secundárias e os povoados; o vejo com muita clareza. Então digo-me: "Está bem, é possível para mim estar livre do grande apego que sinto por minha esposa e também estar livre da recompensa que penso que vou obter, assim como de meu motivo?" Estou apegado a tudo isto. Por que? É por que em mim mesmo sou insuficiente? É por que me sinto muito, muito só e por isso busco escapar da sensação de isolamento recorrendo a uma mulher, a uma idéia, um motivo, como se estivesse que aferrar-me a algo? Vejo que é assim, que me sinto só e que, mediante ao apego, escapo através de alguma coisa fugindo dessa sensação de extraordinário isolamento.

Estou, pois, interessado em compreender a razão do por que me sinto só, por que vejo que isso é o que faz com que me apegue. Essa solidão me tem obrigado a escapar, mediante o apego, para isto ou aquilo, e vejo que, enquanto prosseguir esse sentimento, a consequência será sempre esta. O que significa sentir-se só? Como ocorre? É algo instintivo, herdado, ou se origina em minha atividade diária? Se é um instinto, se é herdado, então forma parte de meu destino; não tenho culpa. Porém, como não aceito isto, o questiono e permaneço com a pergunta. Observo e não trato de encontrar uma resposta intelectual. Não trato de dizer para a solidão o que é e o que deveria fazer; observo para que ela me diga. Há um estado de atenta vigilância a fim de que a solidão se revela por si mesma. Não se revelará se fujo, se tenho medo, se a resisto. Portanto, a observo. A observo de modo que não interfira nenhum pensamento. A observação é muito mais importante que a intervenção do pensamento. E, graças a que toda minha energia se interessa na observação dessa solidão, o pensamento não intervém em absoluto. A mente é desafiada e tem que responder. Devido ao desafio está em crise. Numa crise você tem grande energia, e essa energia permanece sem ser interferida pelo pensamento. Este é um desafio a que devo responder.

Coloquei-me a dialogar comigo mesmo. Perguntei-me o que é essa coisa estranha chamada amor; todos falam dela, escrevem acerca dela; lhe fazem todos os poemas românticos, as pinturas, o sexo e todas as outras áreas que abarca. Pergunto: existe uma coisa como o amor? Vejo que não existe quando há ciúme, ódio, medo. De modo que já não me ocupo do amor; me interesso em "o que é", em meu medo, em meu apego. Por que estou apegado? Vejo que uma das razões — não digo que seja toda a razão — é que me sinto desesperadamente só, isolado. Quanto mais envelheço, mais isolado vou me sentindo. Por conseguinte, observo isso. Este é um desafio que me impulsiona a descobri e, devido a que é um desafio, toda a energia se concentra ai para responder. É algo simples. Se há uma catástrofe, um acidente ou o que for, isso é um desafio e tenho a energia para afrontá-lo. Não tenho que perguntar: "Como obtenho a energia?" Quando a casa se queima tenho a energia para entrar em ação, uma energia extraordinária. Não me sento e digo: "Bem, tenho que mudar esta energia" e fico esperando; então vai ter queimado toda a casa.

Assim, pois, tenho esta energia tremenda para responder a pergunta: Por que existe este sentimento de solidão? Rejeitei idéias, suposições e teorias acerca de que se trata de algo herdado, instintivo. Tudo isso não significa nada para mim. A solidão é "o que é". Por que existe esta solidão que todo ser humano, se é de algum modo consciente, experimenta seja de maneira superficial ou mais profunda? Por que se manifesta? É por que a mente faz algo que ocasiona esta solidão? Recusei teorias como o instinto e a herança, e me pergunto: É a mente, o cérebro mesmo que produz este sentimento de solidão, este isolamento total? É o movimento do pensar que faz isto, ele que cria em minha vida cotidiana este sentido de isolamento? No serviço me isolo porque quero chegar a ser o executivo máximo; portanto, o pensamento trabalha todo o tempo isolando-se em si mesmo. Vejo que o pensamento opera permanentemente para fazer-se superior, que a mente mesma induz este isolamento com sua atividade.

Assim, que o problema é: por que o pensamento faz isto? É sua natureza trabalhar para si mesmo? É a natureza do pensar criar este isolamento? É a educação o que o origina; esta me dá uma carreira, certa especialização e, por conseguinte, isolamento. O pensamento, sendo fragmentário, limitado, estando atado ao tempo, cria este isolamento. Nessa limitação tem encontrado segurança dizendo: "Tenho uma profissão especial em minha vida, sou um professor; estou perfeitamente seguro". Em consequência, me interessa saber por que o pensamento faz isto. Está em sua natureza mesma agir assim? Qualquer cosia que faça o pensamento tem que ser limitada.

Então, o problema é: Pode o pensamento dar-se conta de que qualquer coisa que faz é limitada, fragmentaria e, em consequência, isoladora, e que tudo o que fará será sempre assim? Este é um ponto muito importante: pode o pensamento mesmo dar-se conta de suas próprias limitações? Ou sou eu o que lhe diz que é limitado? Vejo que é indispensável que se compreenda isto, já que é a verdadeira essência da questão. Se o próprio pensamento se dá conta de que é limitado, então não há resistência nem conflito; diz: "Isso é o que sou". Porém, se eu lhe digo que é limitado, estou me separando da limitação. Então, luto para superar a limitação; por conseguinte, há conflito e violência, não amor.

Então, o pensamento mesmo se dá conta de que é limitado? Tenho que descobri-lo. Isto é um desafio que enfrento. Por causa de que enfrento um desafio, tenho uma grande energia. Expressando de outra forma: dá-se conta a consciência de que seu conteúdo é ela mesma? Ou ouvi outro dizer: "A consciência é seu conteúdo; o conteúdo compõe a consciência". Portanto, digo: "sim, é assim". Vejo a diferença entre um e o outro? O segundo, criado pelo pensamento, é imposto pelo "eu". Se imponho algo sobre o pensamento, há conflito. É como um governo tirânico impondo-se sobre alguém, porém, aqui, esse governo é de minha própria criação.

Pergunto-me, pois: o pensamento tem se dado conta de suas limitações? Ou pretende ser algo extraordinário, nobre, divino? Isto é um disparate, porque o pensamento se baseia na memória. Vejo que tem que haver clareza acerca deste ponto, ou seja, que não há uma influência externa que se imponha sobre o pensamento dizendo que é limitado. Então, devido a que não há imposição, não há conflito; o pensamento compreende, simplesmente, que é limitado, dá-se conta de que qualquer coisa que faça — render culto a Deus, etc. — é limitada, vulgar, insignificante, ainda quando haja criado por toda a Europa maravilhosas catedrais onde pode adorar.

Descobri, pois, nesta conversação comigo mesmo, que a solidão é criada pelo pensamento. Agora o pensamento deu-se conta, por si mesmo, de que é limitado e que, portanto, não pode resolver o problema da solidão. Como não pode resolver o problema da solidão, existe a solidão? O pensar tem criado este sentimento de solidão, este vazio interno, por causa de que é limitado, fragmentário, de que está dividido; e quando se dá conta disto, a solidão não existe e, portanto, estou livre do apego. Não fiz nada; observei o apego e o que implica: a ganância, o medo, a solidão, tudo isso, e seguindo-lhe a pista, observando-o, não analisando-o senão simplesmente olhando, olhando e olhando, descobri que o pensamento tem feito tudo isto. O pensamento, por ser fragmentário, tem criado este apego. Quando se dá conta, o apego termina. Não houve nenhum esforço, porque tão logo há esforço, o conflito regressa novamente.

No amor não há apego; se há apego não há amor. Eliminou-se o fator principal mediante a negação do que o amor não é, mediante a negação do apego. Sei o que isso significa em minha vida cotidiana: não me lembrar de nada do que o meu vizinho, minha esposa ou minha noiva fizeram para me machucar; não me apegar a nenhuma imagem que o pensamento tenha criado com respeito a minha esposa, como tenha me intimidado, como tem me brindado com consolo, como tenho tido prazer sexual com ela, todas as distintas coisas de que o movimento do pensar tem elaborado imagens; o apego a essas imagens tem desaparecido.

E existem outros fatores. Devo examiná-los todos, passo a passo, um por um? Ou tudo isso desvaneceu-se? Devo examinar cuidadosamente, investigar — como tenho investigado o apego — o temor, o prazer e o desejo de consolo? Vejo que não tenho que passar pela investigação completa de todos estes diversos fatores; o vejo de uma só olhada, o entendi.

Por conseguinte, ao negar o que não é o amor, o amor existe. Não tenho que perguntar o que é o amor. Não tenho que correr atrás dele. Se corro atrás dele, isso não é amor, é uma recompensa. Havendo, pois, negado nessa investigação tudo o que o amor não é, havendo terminado com isso lenta e cuidadosamente, sem distorção nem ilusão alguma, então o outro está aí.

Krishnamurti - Um diálogo consigo mesmo - Brockwood Park, Inglaterra, 30 de agosto de 1977

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O que significa estar em relação com outra pessoa?


Pergunta: Quase todos estamos casados ou comprometidos numa relação íntima que começou por todas as razões errôneas que você tem descrito tão corretamente. Pode um casamento ou uma relação assim se, converter-se alguma vez numa força realmente positiva? (risos)

Krishnamurti: Que pessoas tão miseráveis! Então, como abordamos esta pergunta? O que significa estar relacionado com outra pessoa? Você pode estar relacionado fisicamente de uma maneira muito estreita, intima, porém, alguma vez estamos relacionados psicologicamente, por inteiro? Não romanticamente, sentimentalmente; refiro-me ao sentido profundo de estar relacionados. A palavra relação significa estar em contato, ter um sentido de totalidade com o outro, não como entes separados que se juntam e se sentem totais, senão que a relação mesma produz esta qualidade, esta sensação de que não estão separados. Esta é, em verdade, uma questão sumamente importante, porque nossas vidas estão, em sua maior parte, muito isoladas, muito separadas, muito cuidadosamente estruturadas a fim de que não sejamos perturbados psicologicamente. E uma relação assim deve originar, inevitavelmente, conflito, perturbação e toda conduta neurótica que temos. Por conseguinte, juntos deixemos claro o que entendemos por relação, não só o significado dessa palavra, o significado verbal, senão o significado que há atrás da palavra, atrás das pessoas que estão relacionadas.

O que significa estar relacionados? Alguma vez estamos relacionados no sentido profundo dessa palavra? Pode haver uma relação dessa classe, inalterada, serena como as profundidades do mar? Pode haver se cada um de nós persegue seu próprio caminho particular, seu desejo particular, sua ambição particular e demais? Pode haver uma relação assim com o outro se existem estas coisas? Vocês dizem: “Como pode não existir? Acaso não é necessário que cada um de nós se realize, que floresça junto com o outro?” O que significa isso quando existe esse sentido de separação? Se cada um de nós diz que estamos nos ajudando mutuamente a florescer, a crescer, a nos realizarmos, a ser felizes juntos, então, seguimos mantendo o espírito de isolamento. Bem, agora, por que a mente, o cérebro, a entidade humana, se aferra sempre à separação? 
Por favor, esta é uma pergunta muito, muito séria. Por que os seres humanos tem mantido, em todo o curso da história, este sentido de isolamento, de separação, de divisão? Você é católico, eu sou protestante. Você pertence a esse grupo e eu pertenço aquele grupo. Eu coloco uma túnica roxa ou uma túnica amarela ou me cubro com uma grinalda; e mantemos isto enquanto falamos da relação, do amor e tudo o mais. Por quê? (Por favor, estamos cooperando, investigamos juntos). Por que fazemos isto? Isso é consciente, deliberado, ou é inconsciente, é nossa tradição, nossa educação? Toda a estrutura religiosa sustenta que estamos separados, que somos almas separadas, etc. É por que o pensamento em si é separativo? Compreende? Eu penso que estou separado de você. Penso que minha conduta deve estar separada da sua, porque do contrário, existe o temos de que nos tornemos automáticos, zumbis, que nos imitemos uns aos outros. É o pensamento a causa deste sentido de separação na vida? Por favor, investiguemos isso juntos. O pensamento tem separado o mundo em nacionalidades. Você é inglês, outro é alemão, eu sou francês, você é russo e assim sucessivamente. Esta divisão é criada pelo pensamento. E o pensamento supõem que nesta separação, nesta divisão há segurança; pertencendo a uma comunidade, pertencendo ao mesmo grupo, tendo fé num mesmo guru, acreditando nas mesmas roupas que você veste conforme os mandos do guru, você se sente seguro, ao menos tem a ilusão de que está seguro.

Assim nos perguntamos: O que nos separa é o prazer, o desejo agradável que é também o movimento do pensar? Correto? Ou seja, o pensamento é alguma vez completo, total? Porque o pensamento se baseia no conhecimento, que é a imensa experiência acumulada do homem, seja no mundo científico, tecnológico ou psicológico. Temos acumulado uma grande quantidade de conhecimentos, tanto externa como internamente. E o pensamento é o resultado desses conhecimentos, o pensamento como memória, conhecimento, experiência. Portanto, o conhecimento jamais pode ser completo acerca de nada: acerca de Deus, do nirvana, do céu, da ciência..., de nada. De modo que o conhecimento deve marchar sempre junto com a sombra da ignorância. Por favor, vejamos esta fato juntos. Por isso, quando o pensamento penetra dentro do campo da relação, deve criar uma divisão, porque o pensamento mesmo é limitado. De acordo?

Se isto está claro para todos nós — não estou dando explicações, vocês o estão descobrindo por si mesmos —, então, que lugar ocupa o conhecimento na relação? Por favor, esta questão é muito séria, não é só uma proposição casual, argumentativa. Esta é uma investigação acerca de que lugar ocupam o conhecimento, a experiência, as recordações acumuladas, na relação. Tenham a bondade de responder a isto vocês mesmos, não olhem para mim. Se você diz: “Conheço a minha esposa — ou outra forma de relação intima —, já colocou esta pessoa dentro da estrutura de seu conhecimento acerca dela. Por conseguinte, esse conhecimento se torna o processo divisor. Você tem vivido com sua esposa, sua noiva ou o que for, e tem acumulado informação. Tem recordado as penosas declarações que ela tenha feito ou que você as fez; existe todo esse desenvolvimento da memória que dá forma a uma imagem, a qual interfere na relação com a outra pessoa. Correto? Por favor, observem isto em si mesmos. E ela está fazendo exatamente a mesma coisa. Nos perguntamos, pois: Que lugar ocupa o conhecimento na relação? O conhecimento é amor? Posso conhecer a minha esposa: sua aparência, o modo como se comporta, certos hábitos que possui, etc. Isso é bastante óbvio. Porém, por que devo dizer “conheço”? Quando digo que a conheço já limitei minha relação. Não sei se o compreendem. Já criei um bloqueio, uma barreira entre nós dois. Significa isso que em minha relação com ela me torno irresponsável? Compreendem minha pergunta? Se digo: “Basicamente, não conheço você”, sou irresponsável? Ou me torno extraordinariamente sensitivo — se é que posso usar essa palavra; é uma palavra errônea —, sou vulnerável, não tenho sentido algum de divisão, não tenho barreiras?

Portanto, se possuo esta qualidade de mente, de cérebro, se sinto que a relação é um florescer, um movimento — não é algo estático, é uma coisa viva, você não pode coloca-la em uma cesta e dizer “é isso” e não mover-se daí —, então, posso começar a perguntar-me: O que é o casamento? De acordo? O não casamento; você pode viver com outra pessoa, sexualmente, podem viver como companheiros, de mãos dadas, conversar e ir a um Registro Civil ou passar por uma cerimônia católica ou protestante e ser amarrados ali; ou podem viver sem estarem casados. Em um caso, você toma um voto de responsabilidade; no outro, não. Num estou legalmente casado e a separação ou o divórcio se torna bem mais difícil; no outro é bastante simples, ambos dizemos adeus e partimos em direções diferentes. E isso é o que está ocorrendo cada vez mais no mundo. Não condenamos nem a um nem ao outro. Por favor, só estamos considerando todo este problema: a responsabilidade e o sentimento de tremenda carga que representam os filhos. E aí vocês estão atados legalmente. No outro caso não, podem ter filhos, porém a porta está aberta sempre. Bem, agora, em ambos os casos, toda relação entre duas pessoas é uma mera forma de atração, de respostas biológicas por ambas as partes, curiosidade, o sentimento de querer estar com outro, o qual pode ser o resultado do inconsciente medo da solidão, um hábito estabelecido pela tradição? Em ambos os casos, se converteu num hábito e em ambos os casos há medo da perda, há a possessão, mutua exploração sexual e todas as sequelas disso. Bem, agora, o que é importante em todos os casos? Por favor, estamos considerando isto juntos; não estou lhes dizendo o que é e o que não é importante. O que é importante, indispensável em ambos os casos? A responsabilidade é essencial, não é verdade? Sou responsável pelas pessoas com quem vivo. Sou responsável, não só com respeito a minha esposa, senão que sou responsável pelo que está ocorrendo no mundo. Sou responsável de ver que não se matem as pessoas. Sou responsável. Responsável de ver que não haja violência. Estão de acordo?

Limita-se, pois, minha responsabilidade a uma pessoa, a minha família, a meus filhos, como o tem sido estabelecido pela tradição? No Ocidente, a família está desaparecendo mais e mais, enquanto que no Oriente a família segue sendo o centro. Esta é tremendamente importante; pela família farão qualquer coisa, ainda que sejam primos longínquos se manterão unidos, se ajudarão uns aos outros usando toda classe de influências. Porém, aqui, pouco a pouco isso está desaparecendo por completo.

Vejam senhores, à medida que vocês o investigam, este problema torna-se extraordinariamente complexo e vital. Se tenho filhos, se os amo realmente e me sinto responsável, o sou durante toda a vida deles, e eles devem sentir-se responsáveis por mim durante toda a sua vida. Devo ver que sejam devidamente educados, que não se lhes ensinem a causa de uma guerra.

Assim, pois, esta questão implica tudo isto. Investigando-a profundamente, você vê que, a menos que tenha esta qualidade do amor, tudo carece por completo de significação. E, se estou tentando não ser egoísta, não estar isolado, ter este sentimento de profundo afeto no qual não há apego e nem posse nem perseguição do prazer, e minha esposa sente o contrário, então, temos um problema completamente diferente. Compreendem isto? Então, o problema é: Que farei? Simplesmente abandoná-la, fugir, divorciar-me? Posso ter que faze-lo se ela insiste. Não é uma pergunta que possa ser respondida mediante umas tantas declarações, senão que requer muitíssima investigação interna nisto por ambas as partes. E, se nessa investigação, se nessa exploração não há amor, então, não há uma ação inteligente. Onde há amor, este tem sua própria inteligência, sua própria responsabilidade.

Krishnamurti – Brockwood Park, Inglaterra, 2 de setembro de 1982

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Posso olhar o mapa do medo sem uma onda de pensamento?


Existe o medo. O medo nunca é uma realidade: vem sempre antes ou depois do presente ativo. Quando há medo no presente ativo, isso será medo? Está ali e não há como fugir dele, não há como escapar. Ali, no momento presente, há a atenção total, mas não há medo. Mas o próprio fato da desatenção gera o medo; o medo surge quando há uma evitação do fato, uma fuga; então a fuga é, ela própria, o medo. (1) Diário de Krishnamurti

______________________________


Krishnamurti: Se sou um homem sério, quero saber a razão da existência de tantos medos, conscientes ou inconscientes. Eu me pergunto o porque de existir o medo e qual seu agente principal. Tentarei mostrar como investigar isso. Minha mente diz: Eu sei que tenho medo — tenho medo da água, da escuridão; tenho medo de determinada pessoa; tenho medo de ser descoberto, já que contei uma mentira; eu quero ser grande, bonito e não sou — então, tenho medo. Estou investigando. Tenho, pois, inúmeros medos. Sei que existem medos profundos, que nem sequer olhei e que existem medos superficiais. Quero agora descobrir algo a respeito de ambos, tanto dos ocultos quanto dos visíveis. Quero saber como eles existem, como eles surgem, qual é a sua raiz.

Mas, como poderei descobrir? Farei isso passo a passo. Como descobrir? Só poderei descobrir se a mente perceber que viver com medo é não apenas neurótico mas muito pernicioso mesmo. A mente primeiro precisa perceber que é neurótica e que, portanto, a atividade neurótica prosseguirá e se tornará destrutiva. E verificar que a mente atemorizada não é jamais honesta, que a mente assustada, inventará qualquer experiência, qualquer coisa a que se apegar. Eu preciso, então, de início, enxergar com clareza e na totalidade que, enquanto houver medo, haverá desgraças.

Mas, eu pergunto, vocês percebem isso? Esse é o primeiro requisito. Essa é a primeira verdade: enquanto existir medo existirá o escuro, e o que quer que eu faça nesse escuro será escuridão, será confusão. Será que eu percebo isso com nitidez, na sua totalidade e não apenas de modo parcial?

Questionador: A pessoa aceita isso.

Krishnamurti: Não existe aceitação, senhor. O senhor aceita que vive na escuridão? Está bem, aceite e viva com isso. Para onde quer que vá estará carregando consigo a escuridão e, então, viva na escuridão. Fique satisfeito com ela.

Q: Há um estado mais elevado.

K: Um estado mais elevado de escuridão?

Q: da escuridão para a luz.

K: Veja, de novo, a contradição. Da escuridão para a luz é uma contradição. Não, senhor, por favor. Eu pretendo investigar e o senhor tenta impedir que eu faça isso.

Q: É análise.

K: Não é através de análise. Por favor, senhor, ouça o que tem a dizer esse pobre homem. Ele diz, eu sei, estou a par, eu tenho consciência de ter inúmeros medos, ocultos e superficiais, físicos e psicológicos. E sei também que, enquanto eu viver, nessa área haverá confusão. E, faça eu o que fizer, não poderei clarear essa confusão até que me liberte do medo. Isso é óbvio. Isso agora ficou claro. Então eu digo a mim mesmo: eu vejo a verdade de que, enquanto houver medo, eu viverei na escuridão — posso chama-la de luz, acreditar que irei ultrapassá-la, mas eu ainda carrego esse medo.

Vamos agora para o passo seguinte, e não se trata de análise; é apenas observação: — será a mente capaz de examinar? Será a minha mente capaz de fazer um exame, de observação? Vamos ater-nos à observação. Compreendendo que, enquanto existir o medo, haverá escuridão, será a minha mente capaz de observar o que é o medo e a profundidade desse medo? Agora, o que significa observar? Serei capaz de observar todo o movimento do medo ou apenas parte dele? É a mente capaz de observar por completo a natureza, a estrutura, o funcionamento e o movimento do medo, no todo, e não apenas pedaços dele? Quando digo no todo, quero dizer não pretender superar o medo, porque nesse caso eu teria uma direção, um motivo. Quando existe um motivo, existe uma direção e, então, não há como enxergar o todo. E não existe um modo de observar o todo se existe algum tipo de desejo de superar ou de racionalizar.

Poderei observar sem nenhum movimento do pensamento? Ouçam isto. Se eu observar o medo através do movimento do pensamento, isso é parcial, é obscuro, não é claro. Posso então observar o medo, todo ele, sem o movimento do pensamento? Não se apresse. Estamos apenas observando. Não estamos analisando, estamos apenas observando o mapa do medo, um mapa de extraordinária complexidade. Se você tiver uma direção quando olhar para o mapa do medo, você estará olhando para ele de modo parcial. Isso é claro. Quando você quer superar o medo, você não olha o mapa. Então, será que você é capaz de olhar o mapa do medo sem nenhum movimento do pensamento? Não responda logo, vá com calma.

Em outras palavras, pode o pensamento cessar quando eu estou observando? Quando a mente observa, pode o pensamento ficar em silêncio? Você então me perguntará como proceder para que o pensamento fique em silêncio. Certo? Essa pergunta é equivocada. Minha intenção agora é observar e essa observação fica impedida quando existe um movimento ou tremular do pensamento, alguma ondulação do pensamento. Assim, minha atenção — ouçam isto — dedicarei a minha atenção total ao mapa e, portanto, o pensamento não pode entrar. Quando olho para você de modo completo, nada existe do lado de fora. Compreende?

Posso então olhar o mapa do medo sem uma onda de pensamento?

Krishnamurti – Saanen, 31 de julho de 1974

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Observador e a Coisa Observada



Tende a bondade de continuar a acompanhar-me um pouco mais. Esta matéria poderá ser um tanto complexa e sutil, mas, por favor, continuai comigo a investigá-la.

Pois bem; quando formo uma imagem a respeito de vós ou de qualquer coisa, tenho a possibilidade de observar essa imagem e, assim, há a imagem e o observador da imagem. Vejo uma pessoa, suponhamos, de camisa vermelha, e minha reação imediata é de gostar ou não gostar dessa camisa. O gostar ou não gostar é resultado de minha cultura, de minha educação, minhas relações, minhas inclinações, minhas características adquiridas ou herdadas. É desse centro que eu observo e faço meu julgamento, e, assim, o observador está separado da coisa que observa.

Porém, o observador está percebendo mais do que uma só imagem; ele cria milhares de imagens. Ora, o observador difere dessas imagens? Não é ele apenas outra imagem? Está sempre a acrescentar ou a subtrair alguma coisa do que ele próprio é; ele é uma coisa viva, a todas as horas, ocupada em pesar, comparar, julgar, modificar, mudar, em virtude de pressões do exterior e do interior; vive no campo da consciência, que são seus próprios conhecimentos, as influências e avaliações inumeráveis. Ao mesmo tempo que olhais o observador, que é vós mesmo, vedes que ele é constituído de memórias, experiências, acidentes, influências, tradições e infinitas variedades de sofrimento, sendo tudo isso o passado. Assim, o observador é tanto o passado como o presente, e o amanhã o aguarda e faz também parte dele. Ele está meio vivo, meio morto, e com essa morte e vida é que observa. Nesse estado mental, situado no campo do tempo, vós (o observador) olhais o medo, o ciúme, a guerra, a família (a entidade feia e fechada chamada a família), e procurais resolver o problema da coisa observada, a qual é o desafio, o novo; estais sempre a traduzir o novo nos termos do velho e, por conseguinte, vos vedes num conflito perpétuo.

Uma imagem-, na qualidade de observador, observa dúzias de outras imagens, ao redor e dentro de si mesmo, e o observador diz: "Gosto dessa imagem, vou conservá-la", ou "Não gosto dessa imagem e, portanto, vou livrar-me dela" — mas o próprio observador foi formado pelas várias imagens, nascidas da reação a várias outras imagens. Assim sendo, alcançamos um ponto em que podemos dizer: O observador é também imagem, porém separa a si próprio para observar. Esse observador, que se tornou existente por causa de várias outras imagens, julga-se permanente e entre si próprio e as demais imagens criou uma separação, um intervalo de tempo. Isso gera conflito entre ele e as imagens que ele crê serem a causa de suas tribulações. Diz, então: "Preciso livrar-me desse conflito", mas o próprio desejo de livrar-se do conflito cria outra imagem.

O percebimento de tudo isso, que é a verdadeira meditação, revela haver uma imagem central, formada por todas as outras imagens, e essa imagem central — o observador — é o censor, o experimentador, o avaliador, o juiz que deseja conquistar ou subjugar as outras imagens ou destruí-las de todo. As outras imagens resultam dos juízos, opiniões e conclusões do observador, e o observador é o resultado de todas as outras imagens — portanto, o observador é a coisa observada.

Assim, o percebimento revela os diferentes estados da mente; revela as várias imagens e a contradição entre elas existente; revela o conflito daí resultante e o desespero por não se poder fazer coisa alguma em relação ao conflito, e as diferentes tentativas de fugir dele. Tudo isso foi revelado pela vigilância cautelosa, hesitante, e percebe-se, então, que o observador é a coisa observada. Não é uma entidade superior que se torna consciente dessas coisas, não é um "eu" superior (a entidade superior, o eu superior são meras invenções, outras tantas imagens); o próprio percebimento revelou que o observador é a coisa observada.

Se fazeis a vós mesmo uma pergunta, quem é a entidade que vai receber a resposta? E quem é a entidade que vai investigar? Se essa entidade faz parte da consciência, se faz parte do pensamento, nesse caso ela é incapaz de descobrir a resposta. O que pode descobrir é apenas um estado de percebimento. Mas, se nesse estado de percebimento continua a existir uma entidade que diz: "Preciso estar cônscia, preciso praticar o percebimento" — essa entidade, por sua vez, é mais uma imagem.

Esse percebimento de que o observador é a coisa observada não é um processo de identificação com a coisa observada. Identificar-nos com uma dada coisa é relativamente fácil. A maioria de nós se identifica com alguma coisa: com a família, o marido, a esposa, a nação; e essa identificação leva a grandes aflições e
grandes guerras. Estamos considerando uma coisa inteiramente diferente, que não devemos compreender verbalmente, porém no âmago, na raiz mesma de nosso ser. Na China antiga, um artista, antes de começar a pintar qualquer coisa, uma árvore, por exemplo — ficava sentado diante dela durante dias, meses, anos (não importa quanto tempo) até ele próprio ser a árvore. Ele não se identificava com a árvore, mas era a árvore. Isso significa que não havia espaço entre ele e a árvore, não havia espaço entre o observador e a coisa observada, não havia um experimentador a experimentar a beleza, o movimento, o matiz, a intensidade de uma folha, a "qualidade" da cor. Ele era totalmente a árvore, e só nesse estado podia pintá-la.

Qualquer movimento por parte do observador, se ele não percebeu que o observador é a coisa observada, só cria outra série de imagens e, mais uma vez, nelas se vê enredado. Mas, que sucede, quando o observador percebe que o observador é a coisa observada? Andai devagar, bem devagar, pois estamos examinando uma coisa muito complexa. Que sucede? O observador não age, absolutamente. O observador sempre disse: "Tenho de fazer algo em relação a essas imagens; devo recalcá-las ou dar-lhes uma forma diferente"; está sempre ativo em relação à coisa observada, agindo e reagindo, apaixonada ou indiferentemente, e essa ação de gostar e não gostar, por parte do observador, é chamada ação positiva — "Gosto desta coisa, portanto, devo conservá-la; não gosto daquela, portanto, tenho de livrar-me dela". Mas, quando o observador percebe que a coisa em relação à qual está agindo é ele próprio, não há então conflito entre ele e a imagem. Ele ê ela. Não está separado dela. Quando separado, ele fazia ou tentava fazer alguma coisa em relação a ela; mas, ao perceber que ele próprio é aquilo, não há mais gostar nem não gostar, e o conflito cessa.

Pois, que pode ele fazer? Se uma coisa ê vós, que podeis fazer? Não podeis revoltar-vos contra ela, ou fugir dela, ou, mesmo, aceitá-la. Ela existe. Assim, toda ação resultante da reação, de gostar e não gostar, cessa.

Descobrireis, então, que há um percebimento que se torna extremamente vivo. Não está sujeito a nenhum fator central ou a alguma imagem, e dessa intensidade de percebimento provém uma diferente qualidade de atenção e a mente, por conseguinte (pois a mente é esse percebimento), se torna sobremodo sensível e altamente inteligente.

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