terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

SOBRE CONFLITO

Por que interiormente, pessoalmente, psicologicamente, nos achamos em tais conflitos? É necessário isso? E é possível viver uma vida inteiramente isenta de conflito, sem nos deixarmos ficar a vegetar, a dormir? Não sei se tendes pensado a esse respeito e se isso é pro blema para vós. A meu ver, o conflito destrói toda forma de sensibilidade, deforma todo pensamento; e onde existe conflito, não existe amor. O conflito é essencialmente ambição, adoração do êxito. E nós nos achamos num estado de conflito, interiormente, não apenas no nível superficial, porém muito profundamente em nossa consciência. Estaremos cônscios disso? E, se estamos, que fazemos a esse respeito? Tratamos de fugir a esse estado, freqüentando igrejas, ouvindo rádio, buscando distrações, entretenimentos, deleites sexuais, e tudo o mais, inclusive os deuses que cultuamos? Ou somos capazes de encarar o conflito, “ir até o fim”, e descobrir se a mente pode ficar de todo livre dos conflitos?

O conflito implica, sem dúvida nenhuma, contradição: contradição no sentimento, no pensamento e na conduta. Existe contradição quando desejamos fazer uma coisa e somos forçados a fazer o contrário. Para a maioria de nós, quando existe amor, existe também ciúme, ódio; e isso é também contradição. No apego, há angústia e dor, portanto contradição, conflito. Parece-me que tudo o que tocamos produz conflito, e tal é nossa vida, da manhã à noite; e mesmo quando dormimos, nossos sonhos são os símbolos perturbadores de nossa vida cotidiana.

Assim, ao considerarmos o estado total de nossa consciência, verificamos que nos achamos no conflito da autocontradição — a eterna luta para sermos bons, nobres, isto e não aquilo. Por que será assim? Tudo isso é necessário, ou é possível viver sem esse conflito?

Como disse, estamos examinando esta questão, não ideologicamente, porém concretamente, isto é, pondo-nos cônscios de nosso estado de conflito para compreendermos o que ele implica e nos mantermos em contato real com ele — não através de idéias, de palavras, porém pelo contato real. É possível isso? Como sabeis, podemos pôr-nos em contato com o conflito através da idéia; e, com efeito, estamos mais em contato com a idéia do conflito do que com o próprio fato. E a questão é se a mente pode abandonar a palavra e pôr-se em contato com o sentimento. E pode-se descobrir por que existe esse conflito, se não estamos cônscios do processo total do pensar — não do processo total do pensar de outrem, porém de nosso próprio pensar?

Indubitavelmente, há divisão entre o pensador e o pensamento, com o pensador lutando perenemente por controlar, moldar o pensamento. Sabemos que é isso que está acontecendo, e enquanto existir tal divisão, terá de haver conflito. Enquanto houver experimentador e experiência como dois estados diferentes, haverá conflito. E o conflito destrói a sensibilidade, destrói a paixão, a intensidade. E sem paixão, sem intensidade, não podemos “ir até o fim” de nenhum sentimento, nenhum pensamento, nenhuma ação.

Para irmos “até o fim” e descobrirmos a essência das coisas, necessitamos de paixão, intensidade, de uma mente sobremaneira sensível — não mente instruída, mente repleta de conhecimentos. Sem paixão, ninguém pode ser sensível; e a paixão, esse impulso para o descobrimento, se embota na batalha constante que se trava dentro em nós. Infelizmente, aceitamos como inevitáveis a luta e o conflito, e dia a dia nos tornamos mais insensíveis, mais embotados. E esse estado, em sua forma extrema, leva-nos à insanidade mental; mas, em geral, buscamos refúgio nas igrejas, nas idéias, e em coisas superficiais de toda ordem. Mas, é possível viver sem conflito? Ou estamos tão condicionados pela sociedade, por nossas próprias ambições, nossa avidez, inveja, a busca de êxito, que aceitamos o conflito como algo bom, coisa nobre, e de finalidade precisa? Seria vantajoso, penso, se cada um de nós pudesse averiguar o que realmente sentimos a respeito do conflito. Aceitamo-lo ou nos deixamos enredar por ele, sem sabermos como livrar-nos dele, ou estamos satisfeitos com nossos múltiplos meios de fuga?

Isso significa, realmente, investigar toda a questão do autopreenchimento e o conflito dos opostos, e ver se tem alguma realidade o pensador, o experimentador, com seu perene ansiar por mais experiência, mais sensação, horizontes mais amplos.

Só existe pensar, e nenhum pensador; só um estado de experimentar, e nenhum experimentador? No momento em que nasce o experimentador, graças à memória, tem de haver conflito. Isso se me afigura bem simples, se já: pensastes a seu respeito. Essa é a verdadeira raiz da autocontradição. Para a maioria de nós o pensador se tornou sumamente importante, e não o pensamento, o experimentador, não o estado de experimentar.

Isso, com efeito, implica na questão de que estivemos tratando noutro dia, ou seja, o que entendemos por ver. Vemos a vida, uma pessoa; uma árvore, através de idéias, opiniões, lembranças? Ou estamos em comunhão direta com a vida, a pessoa, ou a árvore? Penso que vemos através de idéias, lembranças e juízos e que, por conseguinte, nunca vemos nada. Assim, vejo-me a mim mesmo tal como “eu realmente sou”, ou vejo-me como “eu deveria ser” ou como “eu fui”? Por outras palavras, a consciência é divisível? Falamos com muita facilidade a respeito da mente consciente e da mente inconsciente, e das muitas camadas entre ambas existentes. Existem essas camadas, essas divisões, e elas se acham opostas umas às outras. Temos de percorrer todas essas camadas, uma a uma, para nos livrarmos delas ou tentarmos compreendê-las — maneira muito cansativa e ineficaz de resolver um problema — ou é possível varrermos todas as divisões, todo esse conjunto, e tomarmos conhecimento da consciência total?

Como dizia noutro dia, para nos tornarmos cônscios totalmente de uma coisa, necessita-se de percepção, visão, não colorida por idéia alguma. Ver uma coisa inteiramente, totalmente, não é possível quando existe motivo, um propósito. Se estamos interessados em alguma alteração, não estamos vendo o que realmente é. Se estamos interessados na idéia de que devemos ser diferentes, de que devemos melhorar o que vemos, torná-lo mais belo, etc., não somos então capazes de ver a totalidade do que é. A mente só está então interessada em mudança, alteração, melhoria, aperfeiçoamento.

Mas posso ver-me assim como sou, como consciência total, sem ficar enredado nas divisões, nas camadas, nas idéias opostas, existentes na consciência? Não sei se já alguma vez praticastes a meditação — por ora não discorrerei sobre esta matéria. Mas, se já o fizestes, deveis ter observado o conflito que se verifica na meditação — a vontade lutando para controlar o pensamento, e o pensamento a escapar-lhe sempre. É uma parte de nossa consciência — esse impulso para controlar, moldar, satisfazer-se, ter êxito, encontrar segurança; e ao mesmo tempo a compreensão do absurdo, da inutilidade, da futilidade de tudo isso. A maioria de nós tenta desenvolver uma ação, uma idéia, uma vontade de resistência, para servir como uma espécie de muralha em torno de nós mesmos, e dentro dessa muralha esperamos permanecer num estado de ausência de conflito.

Ora bem. É possível percebermos a totalidade desse conflito e permanecermos em contato com essa totalidade? Isso não significa permanecer em contato com a idéia da totalidade do conflito, ou vos identificardes com as palavras que estou empregando; mas, sim, significa estar em contato com o fato da totalidade da existência humana, com todos os seus conflitos de tristeza, sofrimento, aspiração e luta. Significa enfrentar o fato, “viver com ele”.

Como sabeis, “viver com uma coisa” é extremamente difícil. “Viver com aquelas montanhas” que nos cercam, com a beleza das árvores, com as sombras, a luz matinal, a neve, “viver com isso” realmente, é muito difícil. Todos tomamos conhecimento dessas coisas, não é verdade? Mas, vendo-as dia por dia, embotam-nos diante delas, como acontece com os camponeses, e nunca mais tornamos a olhá-las realmente. Mas “viver com a coisa”, vê-la cada dia como nova, com clareza, com sensibilidade, com apreciação, com amor — isso requer enorme soma de energia. E “viver com uma coisa feia” sem que essa coisa feia possa perverter, corroer a mente — isso requer por igual muita energia. “Viver tanto com o belo como com o feio” — como temos de viver, em nossa existência — requer descomunal energia. E essa energia é rejeitada, destruída, quando nos encontramos num estado de perpétuo conflito.

Assim, pode a mente olhar a totalidade do conflito, “viver com ele”, sem aceitá-lo, nem rejeitá-lo, sem permitir que o conflito nos deforme a mente, porém observando realmente todos os movimentos internos de nossos próprios desejos, geradores de conflito? Acho que isso é possível — não apenas possível, mas, quando penetramos mui profundamente o conflito, quando nossa mente está apenas a observar e não a resistir, a rejeitar, a escolher, eis o que acontece. Então, depois de chegardes até aí, não em termos de tempo e espaço, porém com a experiência real da totalidade do conflito, descobrireis por vós mesmos que a mente é capaz de viver muito mais intensa, apaixonada e vitalmente; e uma mente assim é essencial para que possa surgir na existência aquela “certa coisa imensurável”. A mente em conflito jamais descobrirá o verdadeiro. Poderá tagarelar incessantemente acerca de Deus, da bondade, da espiritualidade e tudo o mais, mas só a mente que compreendeu de maneira completa a natureza do conflito e, por conseguinte, se acha fora dele, só ela pode receber aquilo a que se não pode dar nome, aquilo que não pode ser medido.

Krishnamurti – Do Livro: O PASSO DECISIVO – Ed. Cultrix


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