terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A VERDADE não é coletiva nem individual


Temos problemas incontáveis; e quanto mais pensamos neles, conscientemente, tentando resolvê-los, tanto mais crescem as complicações e se multiplicam os problemas. Uma vez que estamos tratando de problemas não originados na mente superficial, mas resultantes de lutas, conflitos, ambições, agitações que se processam nas profundezas inconscientes, se se não operar uma transformação radical e fundamental naquele nível profundo, muito pouco valor terá qualquer reforma de remendos que se fizer no nível superficial — no terreno econômico, social, político, etc. Pode-se ver que as revoluções não nos alteraram fundamentalmente o processo do viver.

A transformação que se opera no nível consciente não passa de uma simples continuidade modificada, pois nesse nível a mente opera de modo superficial, calculando, julgando, pensando; mas esse “processo” de calcular, pesar e julgar é a continuidade de uma coisa condicionada; por conseguinte, por esse meio não se resolve o problema de modo nenhum; o que se faz é apenas modificá-lo, alterar a sua direção; todavia, a nova direção é confusa, do mesmo modo.

Enquanto quisermos resolver os nossos problemas no nível superficial, com idéia contra idéia, argumento contra argumento, lógica contra lógica — tudo isso reações da mente superficial — é bem óbvio que os resultados que a mente obterá serão produto de pensamento condicionado. Nesse “processo”, por conseguinte, não há revolução psicológica, profunda, fundamental. Creio, o mais importante atualmente não é a revolução do nível superficial, mas a revolução do nível inconsciente, profundo, porque vivemos muito mais nesse nível, e nosso ser está lá mais do que no nível superficial.

Assim sendo, não achais importante que escutemos de maneira que o inconsciente absorva - se assim me posso expressar — o que se nos transmite, e a revolução, por conseguinte, não seja uma revolução consciente? Considero muito importante que se escute de maneira tal que a transformação seja inconsciente, e que tenhamos uma nova perspectiva da vida não fundada na ação consciente deliberada, mas na revolução não produzida pelo “processo” deliberado do pensamento.

Afinal, nós temos tantos problemas, em níveis diversos — problemas econômicos, sociais, religiosos; o problema do amor, da morte, o problema das relações, da penúria, o que é Deus, se há continuidade, o que é imortalidade, o que é aquele estado de “atemporalidade”, o que é criação, etc., etc. Temos problemas inumeráveis e a eles sempre nos aplicamos com a intenção de resolvê-los com nossa mente consciente, nossa mente comum, a mente que tem pensamentos, a mente que é resultado do tempo, resultado da tradição, da chamada educação (que é o processo de “condicionar- nos” numa determinada idéia, atividade ou padrão — comunista, socialista, capitalista, católico, etc) e com esse condicionamento queremos resolver os nossos inúmeros problemas; mas, é bem óbvio, que uma mente condicionada não pode resolver tais problemas.

Necessitamos de uma solução inteiramente diferente, de uma revolução diferente — de natureza psicológica, interior, fundamental. Isso, parece-me, só será possível quando souberdes escutar não só a mim, mas a todas as coisas: a conversação que se trava na vossa proximidade, o diálogo que tendes com vossa esposa, vosso marido, vossos filhos, vosso patrão, as conversas de bonde, de ônibus, as falas do mendigo, a melodia de uma canção, o canto dos pássaros, o marulho das ondas. Se souberdes escutar sem interpretação, sem tradução, haverá então a possibilidade de realizar-se a revolução inconsciente.

Acho que o que mais necessário se faz, nos dias atuais, é esta revolução — e não uma série de líderes, não um determinado sistema político. Porque todos os líderes falharam completamente; porque os sistemas que eles advogavam, ou que criaram, são o produto da mente condicionada e seus resultados serão sempre condicionados — de modo que nunca mais sairemos da rede de problemas em que nos vemos embaraçados. Esse caminho não conduz à felicidade humana, à ação humana criadora, ao descobrimento do que é verdadeiro.

O descobrimento do que é verdadeiro não se efetua por meio de esforço consciente. Se compreendermos isso verdadeiramente, chegaremos ao estado em que a mente reconhecerá a sua incapacidade de atender aos nossos problemas. Então talvez se nos ofereça a possibilidade de descobrirmos uma nova fonte de ação, uma fonte diferente, cujo descobrimento nos habilitará a encontrar uma nova maneira de pensar, de sentir, de viver, de existir.

Nossos problemas não são individuais — porque não existe a entidade “indivíduo”. O individuo — vós — pode ter nome diferente, corpo diferente, viver numa casa separada; mas o conteúdo da vossa mente é o mesmo conteúdo da minha mente. O que pensais eu penso; sois ambicioso, e eu também; o que sois, eu sou, e o é o vosso vizinho. Temos um problema coletivo e não um problema individual. Vós, como indivíduo “condicionado” dentro de um certo sistema de idéias, não podeis resolver este problema da existência; ele só será resolvido quando vós e eu o estudarmos juntos, e não separadamente. A ação coletiva só poderá vir a efeito, só poderá realizar-se quando houver pensamento que não seja coletivo. Mas, como já sabemos, a ação coletiva implica atualmente pensamento coletivo; pensamento coletivo é pensamento “condicionado”; e é isso o que nos interessa, em virtude de toda espécie de propaganda, da educação, da compulsão, dos campos de concentração, etc. etc. Fazem-vos pensar coletivamente, tradicionalmente — quer seja uma tradição nova, quer velha; fazem-vos ajustar-vos, pensar segundo uma norma coletiva, esperando-se que desse modo produzireis ação coletiva; mas não é possível a ação coletiva, visto que pensamento coletivo é sempre pensamento condicionado.

Iremos desenvolvendo esta questão progressivamente. Entretanto deve haver uma maneira de agir que não seja a vossa ou a minha, que não seja a do comunista, do socialista, do católico, do cristão, do hinduísta, do budista; tal é a maneira de agir que resulta do descobrimento da Verdade. O descobrimento da Verdade não depende de vós e de mim, de vossa mente condicionada ou de minha mente condicionada. O descobrimento da Verdade apenas ocorrerá quando vós e eu reconhecermos a nossa mente condicionada, o nosso estado condicionado.

Se vós e eu pudermos descobrir o que é a Verdade, desse descobrimento virá a ação coletiva. Mas o pensar coletivo não conduz à ação coletiva, e sim, somente, ao sofrimento em escala maior, como de fato está ocorrendo atualmente. Talvez possamos, porém, vós e eu juntos (porque nesse caso não sou eu quem está guiando, e não sois vós quem está seguindo) descobrir o processo do nosso próprio pensar. Eu não vô-lo posso mostrar, para o aceitardes ou rejeitardes, meramente; vós é que tendes de descobri-lo enquanto vamos andando juntos; tendes de observar o vosso próprio estado mental, não só no nível consciente, mas também inconscientemente, em todos os momentos do dia, nas vossas relações, não só enquanto aqui estais a ouvir-me, mas também depois de vos irdes daqui.

Só pode nascer o sentimento de que o descobrimento da Verdade não é individual, que a verdade não é coletiva nem individual, mas A VERDADE, depois de compreenderdes todo o processo do pensar. O pensar é coletivo; não se pode pensar independentemente; não há pensar individual; o que pensais é pensamento coletivo, pois estais “condicionado” como hinduísta, cristão ou muçulmano; estais aprisionado no molde da tradição, que é pensamento coletivo. Podeis estar condicionado dentro do molde, como suposto indivíduo, mas o molde é coletivo; podeis estar condicionado como comunista, todavia o condicionamento é coletivo, O “coletivo” não pode descobrir o que é verdadeiro, e nem o pode o indivíduo, porquanto não há pensamento individual, pois tudo é pensamento coletivo.

Daí atenção a isto, por favor; não o rejeiteis; procurai alcançar a Verdade relacionada com o que digo.

Em última análise, as palavras que estou empregando, os pensamentos que estou expressando, as tendências de nosso pensar, tudo é resultado de pensamento e ação coletiva; ainda que eu me considere um indivíduo distinto, atribuindo um nome, morando numa choça ou num palacete, meu funcionamento, meu “processo”, é todo coletivo. Pode “o coletivo” encontrar o que é verdadeiro? O “coletivo” é a mente condicionada, a mente presa à tradição, à autoridade, a toda sorte de temor consciente ou inconsciente, a mente buscando sem cessar a segurança. Pode essa mente, que é a mente coletiva, achar a Verdade? A Verdade é aquilo que nunca se contaminou, que se não pode conceber, premeditar, ler nos livros, que vos não pode ser dada por outrem. A única solução para os nossos problemas é o descobrimento do que é a Verdade. Esta é a única revolução capaz de nos influir radicalmente, na existência, na nossa de cada dia, em nossas relações diárias.

Uma vez que o descobrimento daquilo que é a Verdade é de vital significação e importância, não devemos indagar com todo o interesse se a mente é capaz de se despojar de todo o seu condicionamento, para ter a possibilidade de descobrir o que é a Verdade? Esse descobrimento do que é a Verdade não se verifica por meio de esforço consciente. Acho muito importante compreender-se que não podemos ir à Verdade. E a Verdade só pode vir-nos imperceptivelmente, quando não a esperamos. Qualquer forma de expectativa, de esperança, é uma forma de “projeção” projeção do “eu”, sendo o “eu” o coletivo. Por conseguinte, nosso problema é este: compreensão do conflito, da luta, da vida de cada dia, das nossas relações, nossas ambições, nossas paixões e desejos, nosso espírito de imitação, e a medonha degradação que vai dentro em nós, a corrupção, a escuridão, a morte, que constantemente nos acompanha; e, compreendido tudo isso, o descobrimento de algo existente além dos limites da mente. E esse estado só é realizável quando compreendermos o processo da nossa mente, e não quando procurarmos imaginar o que ele seja, ou especular-lhe a respeito. Tão somente ao compreendermos o processo do nosso pensar e vermos o quanto estão condicionadas as nossas mentes, só então há uma possibilidades de descobrir o que é a Verdade, a qual, só ela, pode libertar-nos dos nossos problemas.

Krishnamurti – 8 de fevereiro de 1953 – Palestra feita em Bombaim
Do livro: Autoconhecimento – Base da Sabedoria – ICK
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