terça-feira, 30 de agosto de 2011

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Qual é a função de um mestre?


Qual é a função de um mestre?


Qual é a função de um mestre? Apenas transmitir ao aluno uma matéria, um conhecimento especializado, o que acarreta, forçosamente, a necessidade de um exército de professores, um para cada matéria; Inglês, Matemática, Geografia, História, Física, etc, etc. Isto é, se cada mestre ensina tão-somente a sua especialidade, então, naturalmente se precisa de muitos mestres numa escola pequena. Se o mestre é tão só uma entidade especializada, não é então um educador, porquanto só lhe interessa a sua matéria, e ele não sabe mais nada, — e por ISSO necessita-se de muitos entes humanos especializados, para ensinar os jovens. Mas, ainda o mestre que tem o seu conhecimento especializado — conhecimento da sua matéria — mesmo este, se é inteligente, pode ensinar outras matérias, não?
Senhores, a nossa dificuldade, no mundo moderno, está em desejarmos resultados imediatos, imediato sucesso. Não pensamos em longos prazos, mas só em prazos curtos. Queremos que nossos filhos ou filhas passem nos exames, para obterem empregos; só isso nos interessa. Eis porque criamos uma estrutura educativa que torna necessária a existência do especialista. Se optamos, porém, pelo prazo longo isto é, se percebemos a significação da educação dos jovens — nesse caso, o mestre não é apenas o homem que dá instrução na sua matéria, mas deve ser também um ente humano inteligente e sem medo. O problema, pois, não se refere à multiplicidade de mestres, senão à necessidade de mestres que tenham capacidade e inteligência para se encarregarem de diferentes matérias. Afinal, isto não é muito difícil; se um homem é suficientemente inteligente, pode ensinar não só Matemática, mas também História. Mas, nem o mestre, nem o pai, nem a sociedade é inteligente. Não amamos realmente os nossos filhos. Se os amássemos daríamos atenção a muitas coisas — sua alimentação, a espécie de mestre e a espécie de escola que lhes convém; e todos estaríamos muito interessados no problema mais importante: qual a finalidade da educação, se os que estão sendo educados estão destinados a viver de armas na mão, a tornar-se advogados, policiais — fatores de destruição? São estes os que perpetuam as guerras. Por conseguinte, educamos os nossos filhos para morrerem. Este problema, pois, tem de ser atendido, mas não apenas verbalmente; e não é a mim que compete dizer como fazê-lo, como manter uma escola com poucos professores. O problema é vosso, como pais, que sois, mas infelizmente não estais interessados nele. E assim o professor, a entidade mal paga, desprezada, e a menos inteligente, é que tem a mais grave responsabilidade, numa sociedade. Tudo isso já ouvistes dizer antes; jamais porém, agistes a seu respeito, porque em verdade não estais interessados nos vossos filhos, nem estais verdadeiramente interessados no problema da liberdade para os vossos filhos. Assim sendo, enquanto não assumirdes a responsabilidade, como pais, e enquanto não cuidardes de pôr em prática estas coisas, nenhum governo as porá em prática para vós, O governo só sabe condicionar os jovens, para torná-los mais e mais eficientes, seja para movimentar as indústrias, seja para se alistarem no exército. A questão, pois, não é de como se ter menos mestres numa escola, mas, sim, de como fazer nascer em nossas relações uma inteligência não limitada, não temerosa, mas real mente revolucionária, criadora.

Krishnamurti – 20 de dezembro de 1953
Do livro: O Problema da Revolução Total – Editora ICK

Pode a mente medíocre, tal qual é “realizar” o seu preenchimento?


Pode a mente medíocre, tal qual é “realizar” o seu preenchimento?

Pode a mente medíocre “realizar” Deus? Não é isso, Senhor? Podeis usar as palavras “realizar o seu preenchimento” — o que quer que elas signifiquem. Pode a mente ser libertada, pode a mente achar a Verdade, Deus? Senhor, tende a bondade de escutar. Pode a mente medíocre, pequena, perturbada, a mente mesquinha, dividida, vulgar, achar a Realidade? A Realidade é coisa totalmente desconhecida. É uma coisa que só pode existir momento por momento, e não uma coisa fixa num ponto, onde eu possa ir apanhá-la. Se ela está fixa num ponto para eu alcançá-la, ela é uma invenção da mente. Criamos Deus à nossa imagem, não é verdade? Todos os livros, todos os templos estão cheios dos produtos da nossa mão — a palavra, a imagem ou o símbolo, que a mente considera muito importante, porque tem medo de descobrir por si mesma Pode uma tal mentalidade descobrir a Verdade ou “realizar o seu preenchimento” o que quer que signifique “seu preenchimento”? Pode a mente pequenina, que só pensa em termos de “adquirir mais”, em termos de tempo — fazer algo amanhã, alcançar alguma coisa na próxima vida pode uma tal mente compreender o que é atemporal, aquilo que está além das exigências psicológicas temporais, oriundas do desejo? Não pode, evidentemente.
Senhores, Deus não é uma coisa que se pode adquirir como se adquire um terno de roupa ou uma virtude. É algo incomparável, atemporal, inimaginável, inefável: não podeis ir a Ele. Ele deve vir a vós, e tão-somente quando o vosso espírito não mais está buscando. Porque estais buscando, agora, com o fito de adquirir, de ter conforto, com o fito de vos tornardes algo; porque só pensais em termos de tempo, de desenvolvimento, obtenção de resultados — não podeis nunca saber o que é a Realidade. Mente assim, é mente medíocre. Ela é capaz de inventar frases, de falar a respeito de Deus, a respeito da Verdade. Essa mente, porém, não pode ter a experiência da Realidade. Quando a mente já não compara, não adquire — só a essa mente que está tranqüila, pode a Realidade manifestar-se; e essa Realidade não é contínua, ela existe de momento a momento. O que foi, não é, e o que é não será. Senhores, isto não são meras palavras. Quando examinardes realmente o problema relativo a tudo o que acabo de dizer, descobrireis por vós mesmos o que é ser criador. Tereis, vós mesmos, a mente que já não compara, já não adquire, a mente que ingressou num “estado de ser” — e nesse ser a Realidade penetra. A Realidade não é sempre a mesma. Por conseguinte, a mente não pode escrever ou falar sobre a Realidade, descrever a Realidade. A Realidade não tem nenhuma atração. Não posso dizer que ela me atrai. Por conseguinte, é fútil e tolo falar a esse respeito.
Só quando a mente já não está buscando, já não está exigindo, procurando, desejando tornar-se alguma coisa só então a mente está tranqüila; e esta tranqüilidade não é consciente; esta tranqüilidade varia de momento a momento. A mente que só conhece a continuidade não é tranqüila. Tudo isso exige muita paciência, percebimento e autoconhecimento Esse autoconhecimento não é o conhecimento de um certo “ego”, de que ouvistes falar nos livros e dentro do qual fostes condicionado e educado; mas do vosso “ego” de todos os dias, o “ego” que procura, busca, deseja, adquire, que está descontente, que corrompe, que é ávido em vão, e inventa a hierarquia com o um de firmar cada vez mais o seu poderio. Tal é a mente, que cumpre ser compreendida. E ela só pode ser compreendida momento por momento, quando andais, quando falais. Vereis, se observardes a linguagem com que falais ao vosso criado, quanto está condicionada a vossa mente, inutilizada pela tradição; esta mente nunca há de achar a Realidade. É necessária uma revolução total do nosso pensar, para que o atemporal possa acontecer.

Krishnamurti - 12 de dezembro de 1953 - Do Livro: O Problema da Revolução Total - ICK

A VERDADE não é coletiva nem individual


A VERDADE não é coletiva nem individual


Temos problemas incontáveis; e quanto mais pensamos neles, conscientemente, tentando resolvê-los, tanto mais crescem as complicações e se multiplicam os problemas. Uma vez que estamos tratando de problemas não originados na mente superficial, mas resultantes de lutas, conflitos, ambições, agitações que se processam nas profundezas inconscientes, se não se operar uma transformação radical e fundamental naquele nível profundo, muito pouco valor terá qualquer reforma de remendos que se fizer no nível superficial — no terreno econômico, social, político, etc. Pode-se ver que as revoluções não nos alteraram fundamentalmente o processo do viver. A transformação que se opera no nível consciente não passa de uma simples continuidade modificada, pois nesse nível a mente opera de modo superficial, calculando, julgando, pensando; mas esse “processo” de calcular, pesar e julgar é a continuidade de uma coisa condicionada; por conseguinte, por esse meio não se resolve o problema de modo nenhum; o que se faz é apenas modificá-lo, alterar a sua direção; todavia, a nova direção é confusa, do mesmo modo.
Enquanto quisermos resolver os nossos problemas no nível superficial, com idéia contra idéia, argumento contra argumento, lógica contra lógica — tudo isso reações da mente superficial — é bem óbvio que os resultados que a mente obterá serão produto de pensamento condicionado. Nesse “processo”, por conseguinte, não há revolução psicológica, profunda, fundamental. Creio, o mais importante atualmente não é a revolução do nível superficial, mas a revolução do nível inconsciente, profundo, porque vivemos muito mais nesse nível, e nosso ser está lá mais do que no nível superficial.
Assim sendo, não achais importante que escutemos de maneira que o inconsciente absorva se assim me posso expressar — o que se nos transmite, e a revolução, por conseguinte, não seja uma revolução consciente? Considero muito importante que se escute de maneira tal que a transformação seja inconsciente, e que tenhamos uma nova perspectiva da vida não fundada na ação consciente deliberada, mas na revolução não produzida pelo “processo” deliberado do pensamento.
Afinal, nós temos tantos problemas, em níveis diversos — problemas econômicos, sociais, religiosos; o problema do amor, da morte, o problema das relações, da penúria, o que é Deus, se há continuidade, o que é imortalidade, o que é aquele estado de “atemporalidade”, o que é criação, etc., etc. Temos problemas inumeráveis e a eles sempre nos aplicamos com a intenção de resolvê-los com nossa mente consciente, nossa mente comum, a mente que tem pensamentos, a mente que é resultado do tempo, resultado da tradição, da chamada educação (que é o processo de “condicionar- nos” numa determinada idéia, atividade ou padrão — comunista, socialista, capitalista, católico, etc) e com esse condicionamento queremos resolver os nossos inúmeros problemas; mas, é bem óbvio, que uma mente condicionada não pode resolver tais problemas.
Necessitamos de uma solução inteiramente diferente, de uma revolução diferente — de natureza psicológica, interior, fundamental. Isso, parece-me, só será possível quando souberdes escutar não só a mim, mas a todas as coisas: a conversação que se trava na vossa proximidade, o diálogo que tendes com vossa esposa, vosso marido, vossos filhos, vosso patrão, as conversas de bonde, de ônibus, as falas do mendigo, a melodia de uma canção, o canto dos pássaros, o marulho das ondas. Se souberdes escutar sem interpretação, sem tradução, haverá então a possibilidade de realizar-se a revolução inconsciente.
Acho que o que mais necessário se faz, nos dias atuais, é esta revolução — e não uma série de líderes, não um determinado sistema político. Porque todos os líderes falharam completamente; porque os sistemas que eles advogavam, ou que criaram, são o produto da mente condicionada e seus resultados serão sempre condicionados — de modo que nunca mais sairemos da rede de problemas em que nos vemos embaraçados. Esse caminho não conduz à felicidade humana, à ação humana criadora, ao descobrimento do que é verdadeiro.
O descobrimento do que é verdadeiro não se efetua por meio de esforço consciente. Se compreendermos isso verdadeiramente, chegaremos ao estado em que a mente reconhecerá a sua incapacidade de atender aos nossos problemas. Então talvez se nos ofereça a possibilidade de descobrirmos uma nova fonte de ação, uma fonte diferente, cujo descobrimento nos habilitará a encontrar uma nova maneira de pensar, de sentir, de viver, de existir.
Nossos problemas não são individuais — porque não existe a entidade “indivíduo”. O individuo — vós — pode ter nome diferente, corpo diferente, viver numa casa separada; mas o conteúdo da vossa mente é o mesmo conteúdo da minha mente. O que pensais eu penso; sois ambicioso, e eu também; o que sois, eu sou, e o é o vosso vizinho. Temos um problema coletivo e não um problema individual. Vós, como indivíduo “condicionado” dentro de um certo sistema de idéias, não podeis resolver este problema da existência; ele só será resolvido quando vós e eu o estudarmos juntos, e não separadamente. A ação coletiva só poderá vir a efeito, só poderá realizar-se quando houver pensamento que não seja coletivo. Mas, como já sabemos, a ação coletiva implica atualmente pensamento coletivo; pensamento coletivo é pensamento “condicionado”; e é isso o que nos interessa, em virtude de toda espécie de propaganda, da educação, da compulsão, dos campos de concentração, etc. etc. Fazem-vos pensar coletivamente, tradicionalmente — quer seja uma tradição nova, quer velha; fazem-vos ajustar-vos, pensar segundo uma norma coletiva, esperando-se que desse modo produzireis ação coletiva; mas não é possível a ação coletiva, visto que pensamento coletivo é sempre pensamento condicionado.
Iremos desenvolvendo esta questão progressivamente. Entretanto deve haver uma maneira de agir que não seja a vossa ou a minha, que não seja a do comunista, do socialista, do católico, do cristão, do hinduísta, do budista; tal é a maneira de agir que resulta do descobrimento da Verdade. O descobrimento da Verdade não depende de vós e de mim, de vossa mente condicionada ou de minha mente condicionada. O descobrimento da Verdade apenas ocorrerá quando vós e eu reconhecermos a nossa mente condicionada, o nosso estado condicionado.
Se vós e eu pudermos descobrir o que é a Verdade, desse descobrimento virá a ação coletiva. Mas o pensar coletivo não conduz à ação coletiva, e sim, somente, ao sofrimento em escala maior, como de fato está ocorrendo atualmente. Talvez possamos, porém, vós e eu juntos (porque nesse caso não sou eu quem está guiando, e não sois vós quem está seguindo) descobrir o processo do nosso próprio pensar. Eu não vô-lo posso mostrar, para o aceitardes ou rejeitardes, meramente; vós é que tendes de descobri-lo enquanto vamos andando juntos; tendes de observar o vosso próprio estado mental, não só no nível consciente, mas também inconscientemente, em todos os momentos do dia, nas vossas relações, não só enquanto aqui estais a ouvir-me, mas também depois de vos irdes daqui.
Só pode nascer o sentimento de que o descobrimento da Verdade não é individual, que a verdade não é coletiva nem individual, mas A VERDADE, depois de compreenderdes todo o processo do pensar. O pensar é coletivo; não se pode pensar independentemente; não há pensar individual; o que pensais é pensamento coletivo, pois estais “condicionado” como hinduísta, cristão ou muçulmano; estais aprisionado no molde da tradição, que é pensamento coletivo. Podeis estar condicionado dentro do molde, como suposto indivíduo, mas o molde é coletivo; podeis estar condicionado como comunista, todavia o condicionamento é coletivo, O “coletivo” não pode descobrir o que é verdadeiro, e nem o pode o indivíduo, porquanto não há pensamento individual, pois tudo é pensamento coletivo.
Daí atenção a isto, por favor; não o rejeiteis; procurai alcançar a Verdade relacionada com o que digo.
Em última análise, as palavras que estou empregando, os pensamentos que estou expressando, as tendências de nosso pensar, tudo é resultado de pensamento e ação coletiva; ainda que eu me considere um indivíduo distinto, atribuindo um nome, morando numa choça ou num palacete, meu funcionamento, meu “processo”, é todo coletivo. Pode “o coletivo” encontrar o que é verdadeiro? O “coletivo” é a mente condicionada, a mente presa à tradição, à autoridade, a toda sorte de temor consciente ou inconsciente, a mente buscando sem cessar a segurança. Pode essa mente, que é a mente coletiva, achar a Verdade? A Verdade é aquilo que nunca se contaminou, que se não pode conceber, premeditar, ler nos livros, que vos não pode ser dada por outrem. A única solução para os nossos problemas é o descobrimento do que é a Verdade. Esta é a única revolução capaz de nos influir radicalmente, na existência, na nossa de cada dia, em nossas relações diárias.
Uma vez que o descobrimento daquilo que é a Verdade é de vital significação e importância, não devemos indagar com todo o interesse se a mente é capaz de se despojar de todo o seu condicionamento, para ter a possibilidade de descobrir o que é a Verdade? Esse descobrimento do que é a Verdade não se verifica por meio de esforço consciente. Acho muito importante compreender-se que não podemos ir à Verdade. E a Verdade só pode vir-nos imperceptivelmente, quando não a esperamos. Qualquer forma de expectativa, de esperança, é uma forma de “projeção” projeção do “eu”, sendo o “eu” o coletivo. Por conseguinte, nosso problema é este: compreensão do conflito, da luta, da vida de cada dia, das nossas relações, nossas ambições, nossas paixões e desejos, nosso espírito de imitação, e a medonha degradação que vai dentro em nós, a corrupção, a escuridão, a morte, que constantemente nos acompanha; e, compreendido tudo isso, o descobrimento de algo existente além dos limites da mente. E esse estado só é realizável quando compreendermos o processo da nossa mente, e não quando procurarmos imaginar o que ele seja, ou especular-lhe a respeito. Tão somente ao compreendermos o processo do nosso pensar e vermos o quanto estão condicionadas as nossas mentes, só então há uma possibilidades de descobrir o que é a Verdade, a qual, só ela, pode libertar-nos dos nossos problemas.

Krishnamurti – 8 de fevereiro de 1953 – Palestra feita em Bombaim
Do livro: Autoconhecimento – Base da Sabedoria – ICK

VIDA CRIADORA


VIDA CRIADORA

BOMBAIM — VII

Em todos os passados séculos, o homem sempre procurou a paz, a liberdade, um estado de bem-aventurança a que chama “Deus”. Tem-no buscado, sob diversos nomes, em diferentes períodos da história; parece, entretanto, que só pouquíssimos têm encontrado aquele estado interior de suprema paz e liberdade, o estado que o homem denominou “Deus”. Isso se tornou nos tempos modernos bem pouco importante; empregamos a palavra “Deus” com muito pouca significação. Andamos sempre a buscar um estado bem-aventurado, um estado de paz e liberdade, fora deste mundo; de várias maneiras estamos a fugir do mundo, em busca de algo que seja permanente, que nos dê asilo e salvação; que nos dê profunda paz interior. A crença ou não-crença em Deus depende de influências mentais, tradicionais, climáticas. Para encontrar aquele estado de bem-aventurança, de liberdade, de paz infinita, viva, precisamos compreender porque não somos capazes de enfrentar um fato, transformá-lo e, por conseguinte, ultrapassá-lo.
A meu ver, somos completa e totalmente responsáveis pela sociedade em que vivemos. Por toda a angústia, e confusão, e brutalidade da moderna existência somos inteiramente responsáveis, cada um de nós. E como não podemos de modo nenhum furtar-nos a essa responsabilidade, cabe-nos transformar nossa existência. A transformação do ente humano, como parte integrante da sociedade e ao mesmo tempo seu criador — é urna obrigação que cada um tem de assumir. E só poderá o ente humano operar, em si mesmo, uma mutação, uma transformação, sem fugir à sociedade, quando se libertar das idéias.
Deus é uma idéia, dependente do clima, do ambiente, da tradição em que foi criado o indivíduo. No mundo comunista, não se crê em Deus — o que é também um resultado das circunstâncias. Aqui, dependeis das vossas circunstâncias, da vida que viveis, da tradição que seguis e, por conseguinte, formastes aquela idéia (Deus). Cumpre ao indivíduo libertar-se dessas circunstâncias, da sociedade; porque só então, em liberdade, tem o ente humano a possibilidade de descobrir o que é verdadeiro. Mas, a mera fuga para uma idéia chamada “Deus” não resolve de modo nenhum o problema.
Deus — ou qualquer outro nome — é uma engenhosa invenção do homem, a qual mascaramos com incenso, rituais, várias formas de crenças e dogmas que estão a separar os homens em católicos, hindus, muçulmanos, parses, budistas. Essa, é a engenhosa estrutura erguida pelo homem. E o próprio homem, seu inventor, nela se acha aprisionado. Sem compreender o mundo atual, o mundo em que vive, esse mundo de agonias, de confusão, de sofrimentos, de ansiedades, desespero, aflição, solidão total e o sentimento da absoluta inutilidade da vida — se não compreender tudo isso, a mera aquisição de idéias e mais idéias, por mais satisfatórias que sejam, nenhum valor terá.
Muito importa compreender porque criamos ou formulamos uma idéia. Por que é que a mente formula uma idéia? Por “formulação” entendo toda estrutura de idéias filosóficas ou racionalistas, humanistas ou materialistas. Idéia é pensamento organizado; e na base desse pensamento organizado, dessa crença, dessa idéia, vive o homem. É isso o que todos fazemos, religiosos ou não-religiosos. Considero importante averiguar por que razão os seres humanos, através das idades, têm dado tão exagerada importância às idéias. Por que é que formulamos idéias? Por que não nos é possível agir sem a idéia — agir sempre? Se nos observamos, podemos verificar que formamos idéias quando não há atenção. Quando estamos ativos, totalmente — e isso requer completa atenção — não há idéia nenhuma; estamos simplesmente em atividade.
Deixai-me sugerir-vos que, nesta tarde, vos limiteis a escutar. Nada aceiteis nem rejeiteis; não levanteis barreiras ao escutar, com vossos pensamentos, crenças, contradições, etc. Escutai, simplesmente. Não pretendemos convencer-nos de coisa alguma. Não queremos de modo nenhum forçar-vos a aceitar uma dada idéia, padrão ou maneira de agir. Estamos apenas expondo fatos, sem levar em conta se deles gostais ou não gostais; o importante é que se aprenda a respeito do fato. Aprender significa escutar totalmente, observar completamente. Se escutais o barulho dos corvos, não o escuteis de mistura com vossos próprios barulhos, vossos temores, pensamentos, vossas idéias, vossas opiniões. Vereis então que não haverá idéia nenhuma, que estareis escutando realmente.
Desse mesmo modo deveis escutar-me nesta tarde. Escutai, simplesmente, tanto consciente como inconscientemente (o que talvez seja muito mais importante). Quase todos nós estamos sujeitos a influências. Podemos rejeitar as influências conscientes, porém muito mais difícil é rejeitar as influências inconscientes. Quando se escuta da maneira a que nos referimos, esse escutar já não é consciente nem inconsciente. Está-se então completamente atento. E a atenção não é coisa minha nem vossa; não é nacionalista; não é religiosa; não é divisível. Por conseguinte, quando estais escutando completamente, não há idéia: há só o estado de escutar. Em geral é o que fazemos quando estamos escutando (ou olhando) algo que tem certa beleza: boa música, o espetáculo de uma montanha, da luz crepuscular, seus reflexos na água ou numa nuvem; não há então, nesse estado de atenção, nesse estado de escutar, de ver, idéia nenhuma.
Se puderdes escutar dessa maneira, com essa facilidade, essa atenção sem esforço, talvez percebais quanto é importante a questão da idéia e da ação. Como já disse, de ordinário formulamos idéias quando há desatenção. Criamos, ou concebemos idéias, quando essas idéias nos dão segurança, um sentimento de certeza. Esse desejo de certeza, esse desejo de segurança gera idéias; nessas idéias buscamos refúgio e, por isso, não há ação. E, ainda, criamos e formulamos idéias quando não compreendemos completamente o que é (o fato). As idéias, por conseguinte, se nos tornam muito mais importantes do que o fato.
Para se descobrir realmente o fato — se há Deus, se não há Deus — as idéias nada significam. Não importa se credes ou não credes, se sois teísta ou ateísta. Isso nada exprime. Para o descobrimento, necessitais de toda a vossa energia — vossa energia completa, total; energia sem mácula, sem arranhadura; sem tendências nem corrupção. Assim, para se compreender, para se descobrir se existe essa Realidade que o homem anda buscando há milhões de anos, necessita-se de energia — energia integral e completa, incontaminada. E para criar essa energia, precisamos compreender o esforço.
A maioria de nós passa a vida a fazer esforços, a lutar; e o esforço, a luta, é uma dissipação, um desperdício de energia. O homem, em toda a sua existência histórica, sempre disse que, para encontrar a Realidade ou Deus — ou o nome que se lhe quiser dar — o indivíduo tem de ser celibatário — isto é, fazer um voto de castidade e passar o resto da vida a recalcar-se, a controlar-se, a batalhar consigo mesmo, para se manter fiel a esse voto. Quanto desperdício de energia! Também é desperdício de energia soltar as rédeas ao desejo. E isto é mais significativo quando reprimis o desejo. O esforço despendido no recalcar, no controlar, no repelir o desejo, deforma a mente e, em virtude dessa deformação, o indivíduo adquire uma certa austeridade que se torna rude. Escutai, por favor! Observai esse fato em vós mesmo e nas pessoas que vos cercam. Observai esse desperdício de energia, essa batalha. Não é o sexo, em seus diferentes aspectos, nem o próprio ato sexual, porém os ideais, as imagens, o prazer, e o constante pensar neles, que constituem o desperdício de energia. Assim, a maioria das pessoas desperdiça energia ou pela negação do desejo ou mediante o voto de castidade e o constante pensar nele.
E, como já dissemos, cada homem é responsável — vós eu somos os responsáveis pelas condições da sociedade em que vivemos. Nós, e não os políticos — pois fomos nós que os fizemos ser o que são: desonestos, vangloriosos, ambiciosos de posição e de prestígio; é precisamente o que somos em nossa vida diária. Somos os responsáveis pela sociedade. A estrutura psicológica da sociedade é muito mais importante do que o seu aspecto orgânico; está ela baseada na avidez, na inveja, na ânsia de aquisição, na competição, na ambição, no medo, na incessante exigência de segurança de todo ente humano — segurança em todas as suas relações: com a propriedade, as pessoas, as idéias. É essa a estrutura social que criamos. E a sociedade, psicologicamente, impõe essa estrutura a cada um de nós. Ora, a avidez, a inveja, a ambição, a competição, constituem desperdício de energia, porquanto encerram sempre conflito; conflito interminável — como, por exemplo, o de uma pessoa que é ciumenta.
O ciúme é uma idéia. A idéia e o fato são duas coisas diferentes. Tende a bondade de escutar! Se procuramos observar o sentimento chamado “ciúme” através da idéia respectiva, não podemos entrar diretamente em contato com o sentimento; estamos a observá-lo através da memória de uma certa palavra que fixamos em nossa mente com o significado de “ciúme”. O ciúme se torna uma idéia e essa idéia nos impede de entrar diretamente em contato com o sentimento que se chama “ciúme”. Isso é também um fato. Assim, a fórmula, a idéia nos veda o contato direto com o sentimento; portanto, a idéia faz--nos dissipar energia.
Visto que somos nós os responsáveis pela aflição, pela pobreza, pelas guerras, pela absoluta falta de paz que se observa no mundo — visto isso, o homem religioso não busca Deus, porém o que o interessa é a transformação da sociedade, ou seja, de si próprio. O homem religioso não é o que pratica rituais diversos, que segue tradições, que vive numa cultura passada morta, a interpretar incessantemente o Gita ou a Bíblia, a entoar intermináveis litanias, o que vive como sanyasi; esse não é um homem religioso, porque está a fugir dos fatos. Religioso é o homem que tem o máximo interesse em compreender a sociedade, ou seja a si próprio, pois não é uma entidade separada da sociedade. O operar em si próprio uma mutação completa, total, significa a total cessação da inveja, da avidez, da ambição. Aquele homem, por conseguinte, não depende das circunstâncias, embora seja resultado das circunstâncias — dos alimentos que toma, dos livros que lê, dos cinemas que freqüenta, dos dogmas, crenças, ritos religiosos, etc. etc. O homem religioso é um ente responsável e, portanto, deve compreender a si mesmo, como produto da sociedade que ele próprio criou. Por conseguinte, para encontrar a Realidade deve ele começar aqui, e não num templo, nem numa imagem — não importa se esculpida pela mão ou pela mente. Do contrário, como poderá descobrir algo total mente novo, um novo estado?
A paz não é simplesmente o predomínio da Lei ou da soberania. É coisa bem diversa: um estado interior que de modo nenhum pode ser estabelecido pela alteração das circunstâncias externas, conquanto seja necessária a mudança das circunstâncias externas. Mas, a paz deve nascer em nosso interior, para que se possa criar um mundo diferente. E a criação de um mundo diferente exige uma tremenda soma de energia, energia que ora está sendo dissipada num conflito constante. Por conseguinte, temos de compreender esse conflito.
A causa primária do conflito é a fuga — fuga através da idéia. Observai a vós mesmos; vede como, em vez de fazer frente, digamos, ao ciúme, à inveja, em vez de entrar diretamente em contato com tal sentimento, dizeis: “Como livrar-me disso?” Que devo fazer? Que métodos devo seguir para não ser ciumento?” — Tudo isso são meras idéias e, por conseguinte, uma fuga ao fato de serdes ciumento, um afastamento desse fato. A fuga aos fatos através das idéias não só dissipa a energia, mas também impede o contato direto com o fato. Ora, deveis dar toda a atenção ao fato, em vez de procurardes observá-lo através de uma idéia, pois, como já dissemos, a idéia impede a atenção. Se observardes, se vos tornardes cônscio do sentimento chamado “ciúme”, e lhe derdes toda a atenção, sem a interferência de idéias, não só estareis diretamente em contato com o sentimento, mas também, em virtude da atenção que lhe dispensastes, ele deixará de existir; haverá então maior energia para enfrentardes o próximo incidente, a próxima emoção ou sentimento.
Para descobrir, para realizar uma mutação completa, necessitais de energia — não a energia criada pelo recalcamento, porém aquela que vos vem quando não estais a fugir através de idéias ou pela repressão. Com efeito, se a esse respeito refletimos, percebemos que só conhecemos duas maneiras de enfrentar a vida: ou dela fugindo completamente (o que leva à insanidade ou neurose), ou recalcando tudo o que não compreendemos. Só essas duas maneiras conhecemos.
Recalcar não é apenas abafar um sentimento ou sensação; toda explicação intelectual ou racionalização é também uma espécie de recalcamento. Observai-vos e vereis como o que se está dizendo é real. E necessário, pois, que não fujais. Esta é uma das coisas mais importantes que cumpre compreender: que não devemos fugir. É-nos dificílimo compreendê-la, porque estamos acostumados a fugir através das palavras. Fugimos ao fato, não só indo ao templo etc., mas também através de palavras, de argumentos, opiniões, juízos, avaliações... de uma infinidade de maneiras. Consideremos, por exemplo, um indivíduo insensível. Ser insensível é um fato. Se ele se torna cônscio de ser insensível, a maneira de fugir ao fato é procurar tornar-se sensível. Mas uma pessoa só pode tornar-se sensível se aplicar toda a atenção ao estado mental de insensibilidade.
Assim, necessitamos de energia - energia não resultante de contradição ou tensão, porém gerada sem esforço algum. Compreendei, por favor, este fato muito simples e real: que desperdiçamos nossa energia no esforço, e esse desperdício nos impede o direto contato com o fato. Quando faço um esforço enorme para escutar, toda a minha energia se consome nesse esforço, de modo que não posso escutar realmente. Quando me encolerizo ou impaciento, minha energia se consome toda no esforço que faço para reprimir a cólera. Mas, se presto toda a atenção à cólera, ou outro estado mental, em vez de fugir através de palavras, da condenação, do julgamento — então, nesse estado de atenção, liberto-me da coisa chamada “cólera”. Por conseguinte, aquela atenção que é a reunião de toda a energia, aquela atenção não é esforço. Religiosa é apenas a mente que está livre do esforço e, por conseguinte, só ela pode descobrir se há ou se não há Deus.
Outro fator: somos entes humanos imitadores. Nada temos de original. Somos o resultado do tempo, de muitos milhares de dias passados. Desde a infância, fomos educados para imitar, copiar, obedecer, repetir a tradição, seguir as Escrituras, obedecer à autoridade. Não nos referimos à autoridade da lei, que deve ser obedecida, porém à autoridade das Escrituras, à autoridade espiritual, ao padrão, à fórmula, espirituais. Obedecemos e imitamos.
Quando imitais — ou seja, ao vos ajustardes interiormente a um padrão imposto pela sociedade ou por vós mesmo, baseado em vossa própria experiência — esse ajustamento, essa imitação, essa obediência, não têm a claridade da energia. Vós imitais, vos ajustais, obedeceis à autoridade, porque tendes medo. O homem que compreende, que vê claramente, que está muito atento, não teme; por conseguinte, não tem razão nenhuma para imitar. Ele é “ele próprio” (o que quer que “ele próprio” seja) em todos os momentos.
Assim, a imitação, o ajustamento a um padrão religioso ou, em vez de um padrão religioso, à própria experiência, é sempre conseqüência do medo. E o homem que tem medo — seja de Deus, seja da sociedade, seja de si próprio — não é um ente religioso. Só é livre o homem que não teme. Portanto, temos de entrar em contato com o medo, diretamente e não através da idéia relativa ao medo.
E, ainda, a reunião daquela energia imaculada, impoluta, vital, só é possível pelo rejeitar. Não sei se já notastes que, quando rejeitamos uma coisa, não em reação a essa coisa, essa própria rejeição cria energia. Quando rejeitais, por exemplo, a ambição, não por desejardes tornar-vos espiritual, por desejardes viver em paz, por desejardes Deus, por desejardes o que quer que seja, porém por causa dela própria (da ambição) — quando percebeis a natureza perniciosa do conflito que a ambição engendra, e a rejeitais, esse próprio ato de rejeição é energia. Não sei se já rejeitastes alguma coisa. Ao renunciardes a um certo prazer — por exemplo, ao prazer de fumar, não por vos ter dito o médico que fumar é nocivo aos pulmões, ou por não terdes dinheiro para poderdes fumar uma infinidade de cigarros por dia, ou por desejardes libertar-vos de um hábito que vos escraviza, porém porque percebeis quanto ele é absurdo — quando rejeitais esse hábito, sem ser em reação a ele, esse próprio rejeitar traz consigo energia. De modo idêntico, quando rejeitais a sociedade, mas não fugindo dela, como o sanyasi, o monge, os indivíduos chamados “religiosos” — quando rejeitais totalmente a estrutura psicológica da sociedade, dessa rejeição vos vem uma formidável energia. O próprio ato de rejeitar é energia.
Bem; já vistes ou compreendestes por vós mesmo, ou ouvistes falar nesta tarde sobre a natureza do conflito, do esforço, que dissipam energia; e compreendestes ou percebestes, não verbal porém realmente, o significado dessa energia que não resulta de conflito, porém nasce quando a mente compreendeu todas as suas fugas — recalcamento, conflito, imitação, medo. Daí podeis então partir, começar a descobrir por vós mesmo o que é real, não como um meio de fuga, como meio de evitar vossas responsabilidades neste mundo. Não tereis possibilidade de compreender o que é real, o que é bom — se existe “bom” — por meio de crença, porém, tão-só, se vos transformardes em vossas relações com a propriedade, as pessoas, as idéias e dessa maneira vos tornardes livre da sociedade. Só então, e não pela fuga ou recalcamento, tereis a energia necessária ao descobrimento.
Se chegastes até este ponto, deveis agora tratar de descobrir a natureza da disciplina, da austeridade segundo a tradição e da austeridade criada pela compreensão. Há um “processo” natural de austeridade, um “processo” natural de disciplina, sem rigores, sem ajustamento, sem mera imitação de um dado hábito agradável. Desse processo resulta uma inteligência sumamente sensível. Sem essa sensibilidade, não conhecereis a beleza.
Deve o indivíduo de mentalidade religiosa tornar-se cônscio desse extraordinário estado de sensibilidade e beleza. O indivíduo religioso a que nos referimos difere inteiramente do religioso ortodoxo. Porque, para este último, a beleza não existe: é um homem totalmente alheio ao mundo em que vive: à beleza do mundo, à beleza da terra, à beleza da colina, à beleza de uma árvore, à beleza de um rosto sorridente. Para ele, a beleza é tentação; é a mulher, que ele tem de evitar a todo custo, a fim de encontrar Deus. Não é um indivíduo religioso, esse homem, porque insensível ao mundo — a sua beleza e fealdade. Não se pode ser sensível só à beleza; deve-se ser sensível também ao esqualor, à sordidez, à desorganizada mente humana. Sensibilidade significa “sensibilidade em todos os sentidos”, e não num único sentido. A mente que não está cônscia da beleza em si própria manifestada, não pode alcançar mais longe. Essa sensibilidade é de todo em todo necessária.
E essa mente — que é então a verdadeira mente religiosa — pode compreender a natureza da morte. Pois, sem a compreensão da morte, não há compreensão do amor. A morte não é o fim da vida. Não é uma conseqüência de doença, senilidade ou acidente. A morte é uma coisa com que temos de viver todos os dias, morrendo para tudo o que conhecemos. Se não conhecerdes a morte, jamais conhecereis o amor.
O amor não é memória; também não é símbolo, imagem, idéia; não é o amor um ato social; o amor não é uma virtude. Havendo amor, há virtude; não se precisa lutar para se tornar virtuoso. Se não conheceis o amor, é porque ainda não compreendestes o que é morrer — morrer para vossa experiência, morrer para vossos prazeres, morrer para qualquer memória oculta, inconsciente. E, quando tudo trouxerdes à luz e morrerdes a cada minuto — para vossa casa, vossas lembranças, vossos prazeres morrerdes voluntária e facilmente, sem esforço, sabereis então o que é o amor.
E, também, sem a beleza, sem a compreensão da morte, sem o amor, jamais encontrareis a Realidade; podeis fazer o que quiserdes — ir aos templos, seguir todos os gurus criados pelos homens ininteligentes — por esse caminho jamais encontrareis a Realidade. Essa Realidade é criação.
Criação não significa gerar filhos, pintar quadros, escrever versos ou preparar pratos apetitosos: nada disso é criação, porém apenas produto de um certo talento ou dom, ou de uma técnica aprendida. Invenção não é criação. Só se torna possível a criação quando estamos mortos para o tempo, isto é, quando não há mais amanhã. Só pode haver criação quando há uma completa concentração de energia, sem movimento algum, interno ou externo.
Prestai atenção a isto, por favor. Se o compreenderdes ou não — não importa. Nossa vida é tão banal, tão aflitiva; há tanto desespero, tanto sofrimento! Há dois milhões de anos que vivemos, e nada existe de novo. Só conhecemos repetição, tédio e a total futilidade de cada ato que praticamos. Para ser criada uma mente nova, um estado de inocência, de juvenilidade, necessita-se daquela sensibilidade, daquela morte e amor, e daquela criação. Aquela criação só pode verificar-se quando há a energia completa, sem movimento e sem direção.
Vede, sempre que tem de enfrentar um problema, a mente procura uma saída; esforça-se para o resolver, superar, contornar, ultrapassar ou transcender; fica a fazer alguma coisa com o problema, a mover-se, exterior ou interiormente. Se não se movesse em direção alguma; se nenhum movimento houvesse, nem interno nem externo, porém apenas o problema — ocorreria então uma “explosão” no problema. Experimentai-o, uma vez, e vereis a realidade do que se está dizendo — realidade que não requer crença, nem explicação, nem aceitação sem discussão. Aqui, não há autoridade alguma.
Assim, quando há aquela concentração de energia, não resultante de esforço, e essa energia não está em movimento em direção alguma, nesse momento há criação. E essa criação é a Verdade, Deus — o nome que quiserdes (o nome nada significa). E aquela “explosão”, aquela criação, é paz; não é necessário pro curar a paz. Aquela criação é beleza. Aquela criação é amor.
Só a mente religiosa pode promover a ordem neste mundo cheio de confusão e sofrimento. E vossa obrigação — vossa e de ninguém mais — é promover, enquanto estais vivendo neste mundo, aquela vida criadora. Só essa é a mente religiosa, a mente bem-aventurada.


Krishnamurti - 3 de março de 1965.
Do livro: A Suprema Realização – Ed. Cultrix – páginas 162 à 172


A importância de um cérebro completamente quieto


A mente embotada, a mente entorpecida pela disciplina, não pode, em circunstância alguma, compreender o que é a realidade. Temos de libertar-nos completa e totalmente do pensamento. Necessitamos de uma mente não deformada, muito lúcida, mente não embotada — e que não esteja seguindo nenhuma diretiva ou propósito. Perguntareis: “É possível alcançar esse estado mental em que não há experimentar?” — “Experimentar” implica uma entidade que está experimentando, por conseguinte, dualidade: o experimentador e a coisa experimentada, o observador e a coisa observada. Quase todos nós desejamos uma certa experiência profunda, maravilhosa, mística; nossas experiências de cada dia são tão triviais, tão banais e superficiais, que desejamos algo de “eletrizante”. Nessa extravagante idéia de termos uma experiência maravilhosa encerra-se a dualidade representada pelo “experimentador” e a “experiência”. Enquanto existir essa dualidade, haverá deformação; porque o experimentador é o passado, com todos os conhecimentos e memórias nele acumulados. Insatisfeito com as atuais experiências, deseja ele uma experiência muito mais grandiosa, “projeta-a” como idéia e trata de alcançar essa “projeção”: mais uma vez, dualidade e deformação.
A verdade não é uma coisa que se possa experimentar. A verdade não pode ser buscada e achada. Está fora do tempo. E o pensamento, que é tempo, nenhuma possibilidade tem de buscá-la e “pegá-la”. Portanto, é necessário compreender profundamente essa questão do desejo de experiência. Vede, por favor, quanto isso é importante. Qualquer forma de esforço, de desejo, de busca da verdade, de exigência de experiência, é o observador a querer algo transcendental e a esforçar-se por alcançá-lo; sua mente, por conseguinte, não é lúcida, incorrompida, não-mecânica. Quando a mente está a buscar uma experiência, por mais maravilhosa que seja, isso significa que o “eu” a está buscando — o “eu”, que é o passado, com todas as suas frustrações, aflições, esperanças.
Observai, por vós mesmo, como funciona o cérebro. Ele é o depósito da memória, do passado. Essa memória está sempre a reagir, “gostando” e “não gostando”, justificando, condenando, etc.; a reagir de acordo com seu condicionamento, de acordo com a cultura, a religião, a educação, nela armazenadas. Esse depósito, de onde surge o pensamento, guia a maior parte de nossa vida. Está dirigindo e moldando nossa vida, a cada minuto do dia, consciente ou inconscientemente; está gerando pensamento, gerando o “eu”, que é a essência mesma do pensa mento e das palavras. Pode esse cérebro, com seu conteúdo — o “velho” — tornar-se completamente quieto — só despertando quando necessário operar, funcionar, falar, agir, porém, a maior parte do tempo, completamente estéril?
Meditação é descobrir se o cérebro, com todas as suas experiências, pode tornar-se absolutamente quieto. Não forçado a isso, porque, no momento em que o forçamos, torna a surgir a dualidade, a entidade que diz “Eu gostaria de ter experiências maravilhosas e, portanto, tenho de obrigar o meu cérebro a quietar-se.” Nunca o conseguirá! Mas, se começardes a investigar, a olhar, a observar, a “escutar” todos os movimentos do pensamento, seu condicionamento, seus alvos, seus temores e prazeres; observar como o cérebro funciona — vereis então que ele se tornará sobremodo quieto; essa quietação não é um estado de sono, pois o cérebro se acha então sumamente ativo e, portanto, em silêncio. Um dínamo grande, em perfeito estado de funcionamento, quase não faz barulho; só quando há atrito, há barulho.
Cumpre-nos descobrir se nosso corpo é capaz de ficar sentado ou deitado, em completa quietação, sem nenhum movimento, sem estar sendo forçado. Podem o corpo e o cérebro — pois estão psicossomaticamente relacionados — tornar-se quietos? Há vários exercícios para pôr o corpo quieto, mas tais exercícios implicam coerção; o corpo quer erguer-se e andar, mas lhe impomos que fique quieto, e começa a batalha: querer sair à rua e querer ficar sentado e quieto.
A palavra “ioga” significa “ajuntar”. O próprio termo “ajuntar” é impróprio, porque implica dualidade. Provavelmente a ioga, como uma determinada série de exercícios e movimentos respiratórios, foi inventada na Índia há milhares de anos. Sua finalidade é manter as glândulas, os nervos e todo o organismo funcionando saudavelmente, sem remédios, e sobremodo sensível. O corpo precisa ser sensível, porque de outro modo não se pode ter um cérebro claro. É fácil ver este simples fato que precisamos ter um corpo perfeitamente são, sensível, alertado, e um cérebro a funcionar muito claramente, não emocionalmente, não pessoalmente; o cérebro é então capaz de pôr-se absolutamente quieto. Mas, como conseguir isso? Como pode o cérebro, que anda sempre tão ativo — não apenas durante o dia, mas também quando dormimos — ficar em completo repouso, inteiramente quieto? Decerto, nenhum método produzirá esse efeito, já que todo método implica repetição mecânica, que entorpece e embota o cérebro; e, nesse estado de embotamento, pensais ter experiências maravilhosas!
Como pode o cérebro, que anda sempre a monologar ou a palrar, sempre julgando, avaliando, “gostando” e “não gostando”, constantemente variando, quietar-se de todo? Estais vendo, por vós mesmo, quanto é importante ter o cérebro completamente quieto? Porque, em qualquer momento em que o cérebro está agindo, sua ação é reação do passado, traduzida em pensamento. Só quando totalmente quieto, é ele capaz de observar uma nuvem, uma árvore, a correnteza de um rio. Podeis ver quanto é bela a luz que brilha naquelas montanhas e, contudo, estar com o cérebro totalmente quieto. Já deveis ter observado isso, não? Como sucede? A mente, em presença de algo extraordinário, como um mecanismo extremamente complicado, um maravilhoso computador, ou um esplendoroso pôr do Sol, fica perfeitamente quieta, ainda que por uma fração de segundo. Sabeis, quando se dá um brinquedo a uma criança, como o brinquedo a absorve, como a criança fica toda interessada nele. Do mesmo modo, a majestade das montanhas, a beleza de uma árvore, a correnteza das águas, absorvem a mente e a põem quieta. Mas, nesses casos, o cérebro é posto quieto por alguma coisa. Pode o cérebro imobilizar-se sem a ingerência de nenhum fator externo? Não descobrindo nenhuma maneira de quietá-lo, certas pessoas esperam pela graça de Deus, rezam, têm fé, absorvem-se em Jesus, nisto ou naquilo. É bem evidente que essa absorção numa coisa externa só pode verificar-se numa mente embotada, entorpecida. O cérebro está em contínua atividade, do despertar ao adormecer — e mesmo então a atividade cerebral prossegue. Essa atividade, na forma de sonhos, é o mesmo movimento do dia, continuado durante o sono. O cérebro nunca tem um momento de repouso, nunca diz “Acabei”. Leva para as horas de sono os problemas que acumulou durante o dia, e, ao despertardes, os mesmos problemas continuam, ininterruptamente: um círculo vicioso. O cérebro, para que possa quietar-se, não deve ter sonhos. Quando o cérebro está quieto durante o sono, introduz-se na mente uma capacidade inteiramente nova. Como pode o cérebro, sempre tão intensa e ardorosamente ativo, imobilizar-se, natural e simplesmente, sem nenhum esforço ou coerção? Eu vo-lo mostrarei.
Como dissemos, durante o dia o cérebro está incessantemente ativo. Se ao despertardes e olhardes pela janela, exclamais “Oh, que chuva!” ou “Que dia maravilhoso, mas quente demais” — já pusestes o cérebro em movimento! Assim, no momento de olhardes pela janela, não digais para vós mesmo uma só palavra. Isso não significa reprimir as palavras, porém, apenas, compreender que no momento em que dizeis “Que linda manhã!” ou “Que tempo horrível!” — o cérebro se põe em movimento. Mas se, olhando pela janela, observais as coisas sem pronunciardes uma única palavra (e isso não é reprimir a palavra), se ficais apenas observando, sem a imediata intromissão da atividade cerebral, tendes então a solução, a chave do problema (de pôr o cérebro quieto). Quando não reage o velho cérebro, começa a despontar o cérebro novo. Podeis observar as montanhas, os rios, os vales, as sombras, as árvores formosas, as maravilhosas nuvens, totalmente iluminadas, além das montanhas — sem pronunciar uma palavra, sem comparar.
Mas, isso se torna bem mais difícil quando se observa outra pessoa, porque, aí, já tendes imagens estabelecidas. Observai, ainda assim! Assim observando, com claro percebimento, vereis que a ação assume uma extraordinária vitalidade: é a ação completa, que nunca é levada para o próximo minuto. Compreendeis?
Todos nós temos problemas, profundos ou superficiais — insônia, brigas com a mulher, problemas que vamos levando de dia para dia. Os sonhos são a repetição desses mesmos problemas, a interminável repetição do medo e do prazer. Isso, decerto, entorpece a mente e embota o cérebro. Ora, é possível pôr fim a cada problema, no momento de surgir? — não levá-lo para diante? Tomemos um problema: alguém me insulta, chama-me “idiota”. Instantaneamente, o velho cérebro reage, dizendo “Idiota é você!” Se, antes de o cérebro reagir, me torno perfeitamente cônscio do que foi dito — uma coisa desagradável — abro um intervalo, de modo que o cérebro não pode logo precipitar-se para a arena. Assim, se durante o dia observardes, em vossos atos, o movimento do pensamento, percebereis que ele está a criar problemas, e que problemas são coisas incompletas e, por conseguinte, têm de ser levados para diante. Mas, se observardes com o cérebro realmente quieto, vereis que a ação é completa, instantânea; não se leva para diante o problema, não se leva para diante o insulto, o elogio: é coisa acabada. E, depois, durante o sono, o cérebro já não levará consigo as “velhas” atividades do dia, estará em completo repouso. E, estando o cérebro quieto durante o sono, verifica-se um rejuvenescimento de toda a sua estrutura — desponta a inocência. A mente “inocente” é capaz de ver o verdadeiro — não a complicada mentalidade do filósofo ou do sacerdote.
A mente inocente abrange aquele todo em que está contido o corpo, o coração, o cérebro e a mente propriamente dita. A mente inocente, jamais atingida pelo pensamento, pode ver o verdadeiro, o real. Isso é meditação. Para alcançar-se aquela maravilhosa beleza da verdade e seu êxtase, é necessário lançar a base adequada. Essa base é a compreensão do pensamento, que gera medo e nutre o prazer; é a compreensão da ordem e, por tanto, virtude. Fica-se, assim, livre de todo conflito, de toda agressividade, brutalidade e violência. Lançada essa base da liberdade, desponta uma sensibilidade que é a culminância da inteligência, e a vida do homem se torna, em todos os seus aspectos, inteiramente diferente.

Krishnamurti – 30 de julho de 1970
Do Livro: A QUESTÃO DO IMPOSSÍVEL – Ed. ICK

Codependência espiritual

Se a mente não estiver lúcida, cheia de saúde e de energia, não pode estar naquele estado de meditação que é absolutamente essencial para descobrir essa Realidade que está para além de todo o pensamento, para além de todo o desejo. Qualquer forma de dependência psicológica, qualquer espécie de fuga, através da bebida, através de drogas, numa tentativa para tornar a mente mais sensível, apenas a entorpece e a deforma. Quando abandonamos tudo isso - o que temos de fazer se somos realmente sérios - ficamos em face do que é viver interiormente só. Não se está então dependente de nada, nem de ninguém, de nenhuma droga, de nenhum livro, de nenhuma crença. Só então a mente não tem medo, só então se pode perguntar qual é a finalidade da vida. E se chegarmos a esse ponto, faremos a pergunta? A finalidade da vida é viver - não no caos completo e na confusão a que chamamos vida - mas viver de um modo inteiramente diferente, viver uma vida plena, completa, e viver dessa maneira hoje. É esse o verdadeiro significado da vida - que não é viver como um herói, mas viver interiormente de modo completo, sem medo, sem luta, sem toda esta miséria.

Só uma mente livre pode encontrar aquela imensidão extraordinária que não é invenção da própria pessoa, nem de algum filósofo, guru ou líder. Uma mente equilibrada é sábia, e não moldada por juízos e opiniões. O grande problema está em que adoramos os ídolos criados por nós, e assim nos tornamos mais e mais confusos e cansados... A idolatria de "mestres", "salvadores" e “líderes”, o futuro como meio de autopromoção, etc. Na tentativa de fugir da sua própria monotonia, o "eu" procura por atividades, sensações e excitações interiores e exteriores, as quais são substitutos para a ausência de eu. Nestes substitutos, ele espera perder-se. Muitas vezes, sai-se bem, mas o sucesso só serve para lhe aumentar o tédio. Vai buscando substituto após substituto, com cada um deles a criar problemas, conflitos e sofrimento. Persegue-se, interiormente e exteriormente, o esquecimento de si mesmo; uns voltam-se para as atividades religiosas, outros, para o trabalho e atividades. Mas é impossível esquecer o "eu". O barulho que se faz interiormente ou exteriormente poderá abafar o "eu", mas este não tarda a surgir, sob forma diferente, com outra máscara; pois tudo o que se reprime acaba por encontrar um meio de se libertar. O esquecimento de si mesmo através da bebida ou do sexo, pela idolatria ou pelo saber, leva à dependência; e tudo o que cria dependência, cria problemas. Se para nos libertarmos, se para nos esquecermos, se para sermos felizes dependemos de “drogas receitadas ou não”, de "Mestres" - os "Mestres" ou as drogas tornam-se o nosso problema. A dependência gera a inveja, o medo, o desejo de possuir; e então o medo e o modo de o dominar transformam-se para nós num terrível problema. Ao buscarmos a felicidade criamos problemas, e deles ficamos prisioneiros.

A felicidade conseguida por intermédio de uma qualquer coisa ou pessoa, tem de gerar inevitavelmente conflito, pois deste modo os meios tornam-se muito mais significativos e importantes do que a própria felicidade. Se a minha felicidade depende daquele grupo, o grupo torna-se importantíssimo para mim e tenho de o defender dos outros. Nessa luta, a felicidade que antes eu achava na beleza do grupo é esquecida completamente, perde-se, e só me resta o grupo. O grupo, em si, é de pouco valor; mas eu atribui-lhe um valor extraordinário por ser um meio para a minha felicidade. Assim, o meio torna-se substituto da felicidade.

Quando o meio pelo qual obtenho a minha felicidade é uma pessoa, então o conflito e a confusão, o antagonismo e a dor são muito maiores. Se as relações estão simplesmente baseadas no uso, haverá um outro tipo de relação não superficial entre as partes? Se me sirvo de alguém para conseguir a minha felicidade, estarei de fato em relação? Estar em relação significa estar em comunhão com outro em diferentes níveis; e existirá essa comunhão quando o outro me serve de instrumento para a minha felicidade? Nessa utilização do outro, não estarei eu à procura de isolamento, no qual penso ser feliz? A este isolamento chamo "relacionamento"; mas o que realmente se passa é que não há nenhuma comunhão neste processo. Só pode existir comunhão quando não existe medo; e acontece a corrosão do medo e do sofrimento onde há utilização do outro e dependência psicológica. Como nada pode viver em isolamento, todas as tentativas feitas pela mente para se isolar, só a levam à frustração e ao sofrimento. Para escapar a este sentimento de vazio, procuramos encher-nos de ideais, de pessoas, de coisas; e voltamos ao princípio de onde partimos: à busca de substitutos.

Inconscientemente, muitos de nós, prestamos culto ao sofrimento, idealizamo-lo e com ele vamos vivendo, tentando encontrar respostas para o mesmo, através da ação do intelecto, sem perceber que o intelecto, por si só, não resolve problema nenhum. Poderá explanar problemas - e qualquer pessoa inteligente é capaz disso - mas a explicação, por mais erudita, por mais subtil que seja, não é a realidade. De nada serve explicar a um homem cheio de fome os excelentes alimentos que existem; isso para ele não vale nada. Os intelectuais criam uma finalidade ideológica, de acordo com a qual procuramos viver. E, não sendo capazes de resolver esses problemas, voltamo-nos para o passado; para a nossa juventude ou para a cultura tradicional, conforme a raça, o país, etc. Quanto mais urgente se torna o problema, tanto mais nós fugimos para alguma explicação ideológica vinda do passado ou relativa ao futuro; e ficamos aprisionados nessa armadilha.

Ao que parece, há pouca gente verdadeiramente séria. Por palavra "sério" entendo a capacidade de examinar um problema até ao fim, e resolvê-lo. Resolvê-lo, não de acordo com as inclinações pessoais ou o temperamento de cada um, ou segundo a pressão do ambiente, mas deixando tudo isso de parte e investigando até ao fim a verdade relativa a uma dada questão. Essa seriedade parece bastante rara. Para que possa ser resolvido um problema básico, temos de ter essa seriedade e ainda uma certa capacidade de percebimento, de atenção, porquanto ninguém pode resolvê-los por nós.

Evidentemente, que nem as velhas religiões, nem organizações bem planejadas e aperfeiçoadas por uma determinada autoridade ou sacerdote - nada nem ninguém desta categoria pode ajudar-nos; são coisas obviamente sem significação. Pode observar-se em todo o mundo que a chamada “nova geração” está atirando aos ventos todas essas coisas sem sentido - igrejas, deuses, crenças, dogmas, rituais. Para o homem sensato essas autoridades perderam toda a importância. É claro que não tem sentido dependermos de qualquer espécie de autoridade quando o mundo se acha em tal estado de confusão e de sofrimento; principalmente da autoridade organizada num plano religioso, com as respectivas sanções.

Não se pode confiar em ninguém, nem em “Salvadores”, nem em Mestres - em nenhuma pessoa, incluindo este que vos fala. E, depois de termos posto de lado totalmente todos os livros, filosofias, santos, anarquistas, gurus, líderes, vemo-nos frente a frente conosco mesmos, tais como somos. Não há filosofia, literatura dogmas, rituais, capazes de pôr fim à emoção-violenta e ao sofrimento. Precisamos reconhecer isso, antes de passarmos adiante. Quanto mais sério o indivíduo é, e quanto mais urgente é o problema, essa própria urgência recusa a autoridade que tão facilmente aceitamos.

Permitam-me sugerir-lhes que não se limitem a ouvir palavras; palavras são palavras e pouco significam. Semanticamente, podemos penetrar-lhes o significado, mas a palavra não é a coisa, a explicação não é o fato - o que é. Qualquer um está sujeito a cair na armadilha verbal, e ficar escutando, infinitamente, só palavras. Palavras são cinzas, não têm sentido profundo. Mas se ouvirem para além das palavras, se se observarem como realmente são; se se observarem, não egocentricamente, não introspectiva ou analiticamente, mas apenas observando o que efetivamente acontece, descobrirão então, pessoalmente, não só a violência superficial (a cólera, o desejo de posição, etc.) mas também a emoção-violenta profundamente enraizada.

Podemos arranjar tempo para analisar toda a estrutura emocional e intelectual do nosso ser; analisá-la passo a passo, como fazem os analistas, na esperança de estabelecer uma relação normal entre o indivíduo e a sociedade; ou podemos ver que somos violentos e compreender diretamente a causa dessa violência. Assim sabemos qual é essa causa. Mas ver todas e cada uma das formas de violência exige tempo; destrinçar a violência, completamente, em todas as suas formas, é um trabalho de meses, de anos. Esse processo parece-me absurdo. É como um homem ser violento e tentar ser não violento e, enquanto o está tentando, continuar a semear os germes da violência. A questão, pois, é se somos capazes de ver instantaneamente a coisa no seu todo, e resolvê-la imediatamente. É disso que se trata realmente, e não de proceder pouco a pouco, dia após dia, mês após mês. Essa é uma tarefa terrível, desanimadora, interminável, exigindo uma mente meticulosa, analítica, capaz de dissecar, de ver cada aspecto e não perder uma só particularidade - pois, perdendo-se alguma particularidade, o quadro sai todo errado. Isso não só exige tempo, mas encerra também um conceito que formamos sobre o que é "ser livre da violência". Esse conceito, esse pensar de que nos servimos para tentarmos libertar-nos da violência, cria, de fato, violência; a violência é criada pelo pensamento. A questão, pois, é esta: É possível perceber a coisa na sua totalidade, imediatamente? - não intelectualmente, porque, se ela é formulada como um problema intelectual, não se encontra nenhuma solução e a pessoa acaba suicidando-se, como o fazem muitos intelectuais - suicidando-se de fato ou inventando uma teoria, uma crença, um dogma, um conceito e ficando escravos dele (o que é também uma forma de suicídio), ou voltando às velhas religiões, tornando-se católico, protestante, evangélico, hinduísta, adeptos de filosofias Orientais, etc.

A questão, pois, é se há possibilidade de ver a coisa na sua totalidade, imediatamente e, com esse ato de ver, pôr-lhe fim? Ninguém pode responder a esta pergunta senão vós mesmos - isto é, quando a ela respondem sem dependerem de qualquer autoridade, de quaisquer conceitos intelectuais ou emocionais, quaisquer fórmulas ou ideologias. Mas, como dissemos, isso exige muita seriedade e uma grande observação - observação, quando estamos sentados num carro, vendo tudo à nossa volta; observação daquilo que está à nossa frente, a mover-se, a transformar-se; observação, sem motivo algum, de todas as coisas tal como são. O que é tem muito mais importância do que o que "deveria ser". Como resultado desse empenhamento, dessa atenção, talvez venhamos a saber o que é adquirir a capacidade de amar.

Deixai-me sugerir-vos que não aceiteis o que o "escritor" está a dizer; ele não tem qualquer autoridade, não é vosso instrutor nem vosso guru; porque, se o fosse, então seríeis seu seguidor, e ser seguidor é destruir-se a si próprio e também aquele que se está a seguir. Estamos a tentar descobrir a verdade a respeito da codependência espiritual, para que a mente se liberte definitivamente dela, ficando portanto interiormente livre de toda a codependência psicológica em relação a outrem. Se tudo isto está bem claro, podemos então prosseguir; e cada um de vós poderá descobrir, por si mesmo -- e não através do "escritor", das suas palavras, idéias ou pensamentos -- se a mente pode libertar-se completamente da codependência espiritual. A sabedoria, a sagacidade, não está nos livros, nem no conhecimento acumulado da experiência dos outros. Seguramente, a sabedoria vem-nos no autoconhecimento, na autodescoberta da estrutura total de nós mesmos. Na compreensão de nós mesmos reside o fim do sofrimento psicológico e também o começo da sabedoria. Como pode a mente ser sábia quando está prisioneira do sofrimento e do medo? Só quando o sofrimento psicológico -- que também é medo -- acaba, existe a possibilidade de se ser sábio.

Se compreenderem a Verdade e não seguirem indivíduos verão que cada um de vocês é um discípulo da Verdade. A Verdade não dá esperança; ela dá compreensão. Não há compreensão no culto à personalidade. Continuo a afirmar que todas as cerimônias são desnecessárias para o crescimento espiritual. Se quiseres procurar a Verdade, precisam sair, ir para bem longe das limitações da mente e do coração humanos e lá descobri-la - e esta Verdade está dentro de vocês. Não é mais simples ter a própria vida como meta do que ter mediadores, gurus, líderes, que inevitavelmente diminuirão a Verdade e, portanto, a trairão?

As idéias ou teorias não transformam de fato a mente e o coração. Não há persuasão, não há castigo ou recompensa que possa impedir a astúcia da mente e a crueldade do coração. Não há crença ou dogma capaz de dissuadir a mente, fazê-la abandonar o curso que está seguindo, para alcançar aquilo que deseja. E seria lamentável se cada um de nós saísse destas reuniões levando uma taça cheia de cinzas - de meras idéias e palavras, que nenhuma transformação produzem. E a transformação só é possível quando percebemos ou vemos o fato real.

Muito temos discutido, analisado, citado, argumentado pró ou contra; entretanto, continuamos exatamente como éramos: embotados, insuficientes, insensíveis, completamente absorvidos em nossos próprios compromissos e problemas. E não há quantidade de re­flexão, de ansiedade ou de temor que possa dissolver nossos problemas. Não nos interessam idéias; promoção não revela o fato, e você tem que compreender o fato. Nem o templo, nem o livro, nem o guru, nem o líder, pode lhe ensinar a olhar; mas você tem que olhar por si mesmo, tem que ser sua própria luz; e para ser sua própria luz você não deve seguir ninguém. Não existe nenhuma autoridade quando você é uma luz para si mesmo - você não tem nenhum guru, nenhum líder, você não é um seguidor. Quando você é uma luz para si mesmo, você é uma entidade criadora, e a criação não pode ocorrer se existe qualquer forma de preguiça. A preguiça é a essência da autopiedade. Somos preguiçosos, indolentes, dados a pensar de maneira descuidada, sem nenhuma precisão. Nossa mente está tão confusa como nosso coração e igualmente embotada. E, para compreender a preguiça - não como livrar-se da preguiça - temos que aprender sobre ela; não vamos acumular conhecimentos sobre a preguiça, conhecimentos que se tornam meramente verbais. O aprender implica investigação. E, para investigar, a mente deve estar livre para descobrir; e não há liberdade, se você apenas consente, concorda ou nega, ou se defende atrás de uma barreira de palavras e conclusões.

Essas coisas são distrações que impedem a clareza necessária ao aprender. Isso concerne especialmente àqueles que vivem sujeitos a várias formas de liderança e autoridade, e que facilmente deslizam para a letargia mental, para a preguiça, que facilmente aceitam atitudes e valores. Assim, temos que perceber que, para aprender, deve haver liberdade para investigar.

Como disse, a essência da preguiça é a autopiedade. Vou entrar mais profundamente nesta afirmação porque se não compreendermos esse problema, esta questão da autopiedade, não compreenderemos o que se segue, ou seja, o sofrimento. Ser indolente é correto, é bom no sentido de não estarmos incessantemente ativos, como formigas, ou sempre fazendo alguma coisa, como um macaco. A mente da maioria de nós está constantemente ocupada com alguma coisa: palavras, problemas, idéias, assuntos; sempre a tagarelar consigo mesmo, nunca inativa, indolente, quieta — sempre sob tensão. E a mente que não é indolente - que não é preguiçosa, mas tem aquela placidez e sua essencial suavidade - percebe num clarão o que é verdadeiro. Essa inatividade, essa indolência, essa consciência de um lazer infinito não deve ser confundida com conforto. A mente que tem lazer é uma mente excepcional, porquanto não está envolvida na rede da ação, não está perenemente a tagarelar consigo mesma ou a respeito de alguma coisa. Assim, existe uma qualidade de lazer, de quietude, um senso de indiferença que é necessário. Mas esse senso de quietude - esse senso de ilimitado vazio, em que pode ocorrer um lampejo do real - só é possível quando compreendemos não só a indolência do corpo, mas também a indolência com que aceitamos idéias, pensamentos, asserções e conclusões, que então se tornam rotinas que ficamos seguindo - como um bonde sobre trilhos. E não sabemos, nem sequer estamos cônscios desses trilhos, dessas rotinas. Isso é indolência: não saber, não estar cônscio de que seu pensamento, seu sentimento e suas atividades “correm” perpetuamente pelos mesmos trilhos, pelas mesmas rotinas. Aquilo que você pensou aos vinte e cinco ou trinta anos hoje você ainda pensa - não há alteração, não há rompimento, não há nada novo, nada fresco.

Assim, é importante compreender o processo da mente que se tornou preguiçosa. Há preguiça quando há ajustamento, estabilização num “cantinho” que você fixou para si mesmo e para sua família e onde você se sente seguro, emocional e mentalmente; sentindo que você alcançou um certo resultado e felicitando-se pelo seu êxito. Isso indica que você chegou a um ponto em que se sente bem seguro, livre de toda perturbação – aí então começa a preguiça. E é essa preguiça que é a essência da autopiedade.

Você sabe o que quero dizer por “autopiedade”? Autopiedade significa o íntimo sentimento de não poder contar com ninguém; ter esse íntimo sentimento de estar abandonado, desprezado, de não ser amado, embora ame; de ser fracassado, de sentir que é necessário ter algum êxito; de ser isto ou aquilo - a interminável afirmação do próprio eu. Em suas lágrimas, em suas felicidade, em sua frustração, em sua agonia está o fio - o fio inquebrável - da autopiedade atravessando toda a sua vida; e isso é indolência. Foi aí que você começou a se submeter, a se estabilizar, a engordar mentalmente. E todos buscam segurança nessa indolência. E, uma vez estabelecido esse sentimento de segurança psicológica, deste centro a pessoa age, a pessoa é, aí está sua vida.

Por favor, como eu disse, não apenas escute as palavras, mas observe sua própria mente, seu próprio estado de consciência; veja em que grau de exatidão as palavras representam o seu próprio estado; observe sua própria mente em funcionamento. Então o que foi dito terá significação; mas, se você está somente confiando nas palavras, então você está vazio, e sua taça jamais se encherá, ainda que você possa ficar buscando por toda a eternidade. Assim, escutar é, realmente, a observação de sua mente; ver é, realmente, observar o movimento de seu próprio pensamento. Porque é o pensamento, a palavra, que o impede de escutar, de ver. E se você quer compreender todo o problema do sofrimento, o problema da ação, você tem que compreender a autopiedade.

Você está experimentando os meus ensinamentos ou você está experimentando você mesmo? Espero que veja a diferença. Se você está experimentando o que estou dizendo, então você deve chegar ao “E agora?” porque então você está tentando atingir um resultado que você pensa que eu tenho. Você pensa que eu tenho algo que você não tem, e que se você experimentar o que estou falando, você também vai ter isso – o que é o que a maioria de nós faz. Abordamos essas coisas com uma mentalidade comercial – farei isso para obter aquilo. Vou adorar, meditar, sacrificar a fim de conseguir algo.

Agora veja, você não está praticando os meus ensinamentos. Eu não tenho nada a dizer. Ou melhor, tudo o que estou dizendo é: Observe a sua própria mente, veja até onde a mente pode chegar; portanto, você é importante, não os ensinamentos. É importante para você descobrir os caminhos do seu próprio pensamento e o que esse pensamento implica, como estive tentando assinalar nessa manhã. E se você estiver realmente observando o seu próprio pensamento, se estiver percebendo atentamente, experimentando, descobrindo, deixando passar, morrendo a cada dia para tudo o que você juntou, então você nunca irá colocar a questão: “E agora?”

Veja, confiança é inteiramente diferente de autoconfiança. A confiança que vem quando você está descobrindo de momento a momento é inteiramente diferente da autoconfiança que surge da acumulação de descobertas – o que se torna conhecimento e lhe dá importância. Você vê a diferença? Portanto o problema da confiança desaparece completamente. Há somente o constante movimento de descoberta, o constante ler e entender – não a leitura e entendimento de um livro -, mas de sua própria mente, essa total e vasta estrutura da consciência. Então você não está de forma alguma buscando um resultado. É somente quando você está buscando um resultado que você diz: “Eu fiz essas coisas todas e não obtive nada, e perdi a confiança. E agora?” Ao passo que se você estiver examinando, entendendo os caminhos de sua própria mente sem buscar uma recompensa, um fim, sem a motivação do ganho, então existe autoconhecimento, e você vai ver uma coisa maravilhosa que vem a partir daí.

A verdade é a harmonia desse self que é a vida. Agora, para ela não pode haver nenhum caminho. Como poderia haver? Para a revelação desse self não pode haver nenhum caminho. Tudo - cada experiência, cada sentimento, cada movimento que existe dentro do self, cada sombra, cada sofrimento, cada prazer – engrandece a alma. Não pode haver caminho. Mais uma vez você irá me perguntar: “Mas e aquele caminho que nos foi falado?” Eu não estou interessado nele. O homem é livre – por favor comece por essa base – e ele deve desenvolver a sua liberdade na sua maneira única, assim ele não pode trilhar o caminho de ninguém mais. Eu não espero que você concorde comigo. Mas examine, sem ser preconceituoso, o que eu digo: que, para o desenvolvimento da alma, não pode haver caminho. Se essa é a verdade – e eu mantenho que é, o que é liberdade, o que é equilíbrio e bom senso – então a verdade é uma terra sem caminho, e se você se aproxima dela por qualquer caminho, não é a verdade. Ela desafia qualquer caminho porque você aproxima-se dela através da limitação.

Não, não vou ser apanhado nos seus caminhos. Não é a consumação de todos os caminhos; todos os caminhos são limitações, assim eu não quero usar essa palavra. Em sua mente, tudo tem uma limitação - e, se você se aproxima dela através da limitação, você não irá entender o ilimitado; mas ao desenvolver a sua maneira única, o seu próprio entendimento – o entendimento de cada um deve ser o mesmo, eventualmente, porque o self de cada um é o mesmo – você irá conseguir.

Cada um deve desenvolver seu próprio caminho, sua singularidade, sua própria maneira. Não posso dizer que existe um caminho estabelecido, traçado para cada um. Isso iria significar que você seria um prisioneiro nesse caminho. Você até pode ter uma experiência através de outra pessoa, se você é espiritualmente desenvolvido em emoção e grande inteligência, mas você terá que tomar cuidado para não se iludir. Você terá que quebrar essa limitação para descobrir a verdade. Contar com os outros é inteiramente fútil; eles não podem trazer-nos a paz. Nenhum líder irá dar-nos a paz, nenhum governo, nenhum exército, nenhum país. O que trará a paz é a transformação interior, que levará à ação exterior. A transformação interior não significa isolamento ou retraimento da ação exterior. Pelo contrário, só pode haver ação correta quando há pensar correto, quando há autoconhecimento. Se você não conhece a si mesmo, não há paz. Só terá paz quando você compreender o perigo, quando compreender sua responsabilidade, quando você não deixar a tarefa a cargo de outra pessoa. Se você compreender o sofrimento, se reconhecer a necessidade de ação imediata, inadiável, haverá então de transformar a você mesmo. Só virá a paz quando você for pacífico, quando você viver em paz com o seu próximo.

Assim, de quem você está aprendendo? Dos livros? Do líder? Do guru? E talvez, se a sua mente é brilhante, pelo observar? Até agora parece que você está aprendendo do que vem de fora: aprendendo, acumulando conhecimento e a partir desse conhecimento você está agindo, estabelecendo uma carreira e assim por diante. Se você está aprendendo de si mesmo – ou melhor, se você está aprendendo observando a si mesmo, seus preconceitos, suas conclusões definitivas, suas crenças, se você está observando as sutilezas do próprio pensamento, sua vulgaridade, sua sensibilidade, então você se torna o que ensina e o que é ensinado. Então você não depende de ninguém interiormente, de nenhum livro, de nenhum especialista – embora, é claro que se você está se sentindo mal com algum tipo de doença, você deve ir a um especialista, isso é natural, isso é necessário. Mas depender de outra pessoa, não importa quão excelente ela seja, o impede de aprender sobre si mesmo e o que você é. E é muito, muito importante aprender o que você é, porque o que você é produz essa sociedade que é tão corrupta, imoral, onde a violência se espalha enormemente, essa sociedade que é tão agressiva, cada um buscando seu próprio sucesso, sua própria maneira de preenchimento. Aprender o que você é não através dos outros, mas pelo observar a si mesmo, sem condenar, sem dizer “Isto é assim mesmo, eu sou assim, não posso mudar” e continuar. Quando você observa a si mesmo sem nenhuma forma de reação, de resistência, então o próprio observar atua; como uma chama, ele queima toda a estupidez, todas as ilusões que a pessoa tem.

Assim, aprender se torna importante. Um cérebro que cessa de aprender se torna mecânico. É como um animal amarrado em uma estaca que pode se mover apenas de acordo com o comprimento da corda, a correia que está amarrada na estaca. A maioria de nós está amarrada a uma estaca peculiar de nós mesmos, uma estaca e uma corda invisíveis. Você se movimenta dentro das dimensões da corda e é muito limitado. É como um homem que fica pensando em si mesmo o dia inteiro, sobre seus problemas, seus desejos, seus prazeres e o que ele gostaria de fazer. É conhecida essa constante ocupação consigo mesmo. É muito, muito limitada. E essa própria limitação engendra várias formas de conflitos e infelicidades. Aprender, observar a ponto de não haver nenhum lugar que não tenha sido descoberto, observado em si mesmo. Isso é realmente ser livre e autônomo do seu próprio condicionamento particular. O mundo é dividido pelos condicionamentos. Aprender liberta o cérebro e o pensamento do prestígio, da posição, do status. Aprender traz igualdade entre os seres humanos.

Quando existe uma continuidade, uma tradição, formada pelo conhecimento e passada de geração a geração, então o passado, que é a acumulação do conhecimento, obscurece o real presente vivo. Quando o conhecimento se torna uma rotina, mecânico, ele torna o cérebro limitado, rígido e insensível. Conhecimento não é beleza, mas o conhecimento é necessário para perfurar um poço. Se deixarmos o conhecimento ser a única autoridade, e esperarmos uma ascensão através do conhecimento, então estamos vivendo em uma ilusão fatal. Estamos dizendo que o conhecimento tem seu lugar na vida cotidiana, mas o quando o conhecimento é a única substância da nossa vida, então nossa vida deve estar confinada à atividade mecânica.

Vivemos de palavras e as palavras se tornam nossa prisão. As palavras são necessárias para nos comunicarmos, mas a palavra nunca é a coisa. O real não é a palavra, mas a palavra se torna toda importante quando ela toma o lugar do que é. Você pode observar esse fenômeno quando a descrição se transformou na realidade, ao invés da coisa em si - o símbolo que adoramos, a sombra que seguimos, a ilusão do líder à qual nos agarramos. E assim as palavras, a linguagem, moldam as nossas reações. A linguagem torna-se a força que nos compele - e nossas mentes são moldadas e controladas pela palavra. As palavras nação, estado, Deus, família - e assim por diante - cercam-nos com todas as suas associações e assim nossas mentes tornam-se escravas da pressão das palavras. A palavra impede a percepção verdadeira da coisa ou da pessoa porque a palavra tem muitas associações. Essas associações, que de fato são lembranças, distorcem não apenas a observação visual, mas também a psicológica. As palavras então transformam-se numa barreira ao livre fluxo da observação. Existe um esnobismo enraizado na maioria de nós, e ver o que as palavras tem feito em nosso pensar e, sem escolha, ficar atento a isso, é aprender a arte da observação - observar sem associação.

Agora veja, se você escuta alguém por anos, e você vê por si mesmo a beleza do que está sendo dito, então você quer escutar mais; então isso lhe abre portas nunca vistas por você antes. Mas se não é assim, então o que está errado? O que está errado com o orador que diz essas coisas, ou o que está errado com o ouvinte? Por que será que um homem ou uma mulher que tem ouvido o orador por tantos anos não está mudado? Nisso há grande sofrimento, não há? O que está errado? Será que você não é sério? Será que você não se importa? Ou será que aquilo que o orador está dizendo não tem valor em si mesmo? Não tem valor? Para determinar se tem ou não, você tem que investigar o que o orador está dizendo. E, para investigar, você deve ter a capacidade de escutar, você deve ser capaz de olhar, você tem que dar seu tempo para isso. Assim, é sua responsabilidade ou é responsabilidade do orador? É nossa responsabilidade mútua, não é? Nós dois temos que olhar. O orador pode apontar, mas você tem que olhar, você tem que entrar nisso, você tem que aprender. E se sua mente não é diligente, cuidadosa, mas negligente, se sua mente não está observando, altamente sensível, isso é com você. Significa que você tem que mudar seu jeito de viver; tudo tem que ser mudado para aprender um modo de viver que seja inteiramente diferente. E isso requer energia; você não pode ser preguiçoso, indolente.

Assim, desde que é nossa responsabilidade mútua - talvez mais sua que do orador – talvez, você não tem dado sua vida para isso. Estamos falando sobre vida – não sobre idéias, não sobre teorias, práticas, nem mesmo técnicas – mas olhar para essa vida inteira, que é a sua vida, e cuidar dela. E isso significa não desperdiçar sua vida. Você tem um tempo muito curto para viver, talvez dez, talvez cinqüenta anos, mas não o desperdice. Olhe, dê a sua vida para entender isso.

Quando ouço um líder, aprendo sobre o líder, eu não aprendo sobre mim mesmo. Portanto quando eu aprendo sobre mim mesmo através do líder eu não estou observando a mim mesmo, estou observando a imagem que o líder criou sobre mim. Então não me libertei do líder. Ao olhar para mim mesmo, eu estou aprendendo sobre mim mesmo. Eu acumulo conhecimento sobre mim mesmo e depois, com esse conhecimento, eu observo? – o que é o mesmo processo que olhar para mim mesmo através do líder. Assim, eu posso aprender sobre mim mesmo – mas sem nenhuma acumulação? Esse é o único jeito de aprender, porque esse “mim mesmo” está sempre se movendo, está tremendamente ativo o tempo todo, e não posso aprender sobre essa atividade através de algo estático, seja isso o conhecimento que acumulei sobre mim mesmo ou o conhecimento de um líder. Portanto tenho que estar livre, não só do líder, mas livre também do conhecimento que juntei sobre mim mesmo ontem.

Estamos condicionados para acreditar em algum Deus ...quando não se sabe, acredita-se!
É o prazer que buscamos, a todas as horas. Queremos prazer cada vez maior, e o prazer supremo, naturalmente, é o de "alcançar Deus". Na busca do prazer encontra-se o medo; transportamos durante a vida essa lúgubre carga do medo. Medo, aflição, pensamento, violência, agressão - todos se interrelacionam. Por conseguinte, compreendendo-se claramente uma dessas coisas, compreendem-se as demais.

Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas compreensão... Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.

Krisnamurti

SOBRE ENVOLVIMENTO POLÍTICO


            PERGUNTA: Um homem que abomina a violência pode tomar parte no governo de um país?
            KRISHNAMURTI: Ora, que é governo? Afinal de contas, um governo é, um governo representa o que nós somos. Na chamada democracia, seja qual for a sua significação, nós elegemos, para nos representar, aqueles que são iguais a nós, aqueles de quem gostamos, que têm a voz mais forte, a mente mais inteligente, ou o que quer que seja. Assim, evidentemente, o governo é o que nós somos, não achais? E que somos nós? Somos uma massa de reações condicionadas — violência, avidez, aquisicionismo, inveja, volúpia de poder, etc. Naturalmente o governo é o que nós somos, isto é, a violência sob diferentes formas; e como pode um homem em cujo ser realmente não existe a violência, pertencer, quer em nome, quer de fato, a uma estrutura que é violenta? Pode a realidade coexistir com a violência, que é o que chamamos governo? Pode um homem que busca ou que experimenta a realidade ter qualquer coisa em comum com os governos soberanos, com o nacionalismo, com uma ideologia, com a política de partidos, com um sistema de poder? O homem pacífico pensa que, aderindo a um governo, estará habilitado a prestar algum serviço útil. Que acontece, quando ingressa no governo? A estrutura é tão poderosa que o absorve, e ele muito pouco pode fazer. Senhor, isso é um fato, a que assistimos hoje no mundo. Quando uma pessoa ingressa num partido, ou se candidata a uma eleição para o parlamento, ou que quer que seja, tem de aceitar o programa do partido. Por conseguinte, deixa de pensar. E como pode um homem que se entregou a um outro — a um partido, a um governo, ou a um guru — achar a realidade? E como pode aquele que busca a verdade ter qualquer relação com a política das potências?
            Vede, Senhores, fazemos tais perguntas, porque nos agrada depender da autoridade exterior, do ambiente, para a transformação de nós mesmos. Esperamos que os chefes, os governos, os partidos, os sistemas, os padrões de ação, de alguma maneira nos transformarão, de alguma maneira implantarão a ordem e a paz em nossas vidas. Esta é por certo a base de todas as perguntas deste gênero, não é verdade? Pode um outro, seja um governo, um guru, ou um demônio, dar-vos a paz e a ordem? Pode alguém trazer-vos felicidade e amor? De certo que não. A paz só pode nascer depois de perfeitamente compreendida a confusão que nós mesmos criamos, compreendida não no nível verbal, mas interiormente; depois de afastadas as causas da confusão e da luta, teremos sem dúvida a paz e a liberdade. Entretanto, sem cuidarmos de eliminar as causas, preferimos recorrer à autoridade externa, para que nos dê paz; e o exterior é sempre submergido pelo interior. Enquanto existir o conflito psicológico, a ânsia de poder, de posição, etc., qualquer que seja a estrutura exterior, por melhor que tenha sido edificada, por mais benéfica e ordeira que seja, sempre será dominada pela confusão interior. Por conseguinte, é óbvio que devemos dar toda a importância ao interior e não ficar na mera dependência do exterior.

Krishnamurti – 7 de março de 1948 – Da Insatisfação à Felicidade


PERGUNTA: Porque meio podeis influenciar os chefes de um partido ou os membros de um governo e trabalhar através deles?

KRISHNAMURTI: Pela razão muito simples de que os chefes são fatores de degeneração na sociedade, e os governos são a expressão da violência. E como se pode, como pode qualquer homem que realmente deseja compreender a verdade, trabalhar por meio de instrumentos que são opostos à realidade? Ora, porque desejamos guias políticos ou religiosos? Pela razão muito clara que desejamos ser dirigidos, desejamos que nos digam o que devemos fazer ou o que devemos pensar. Nossa educação, nossas organizações sociais e religiosas estão baseadas nisso: elas não nos dizem como devemos pensar, mas o que devemos pensar. Em tais condições, naturalmente, tendes necessidade de guias, de chefes. Porque estais confusos, porque estais a desintegrar-vos, porque sofreis e não sabeis o que fazer, apelais para alguém, para guias políticos, religiosos, ou econômicos, para que vos ajudem a sair desta caótica condição de existência. Ora, pode qualquer guia, político ou religioso tirar-vos, desta miséria, desta confusão? Prestai atenção, por favor: temos aqui uma questão muito importante. Porque o posto de guia implica poder, posição, prestigio; o posto de guia implica exploração — tanto pelo que é guiado como pelo guia. Surge o guia porque os que são guiados querem ser guiados. Quer isso dizer que o seguidor explora o guia, e o guia explora o seguidor. Sem o seguidor, que é do guia? Vê-se frustrado, sente-se perdido. E sem guia, que é feito do seguidor? Temos, portanto, um processo de mútua exploração; e onde existe o desejo de poder, de posição, de domínio, de guia, não existe compreensão. Quando o guia se torna a autoridade, a pessoa que decide sobre todos os assuntos, políticos ou religiosos, então o seguidor se torna mero fonógrafo, mero autômato; e visto como a maioria das pessoas prefere repetir, prefere ficar vendo os guias agirem, o resultado é que nos tornamos improdutivos, incapazes de pensar. Foi isso, exatamente, o que aconteceu no mundo.
            Nosso problema, portanto, é: Porque necessitamos de guias ou chefes? Pode alguém conduzir-vos para fora da confusão, que vós mesmo estais criando? Outros poderão apontar-vos as causas de vossa confusão, mas ficai certos de que esses não se tornam guias. Eu, por exemplo, vos estou mostrando a causa da confusão, mas não estou com isso me tornando vosso guia nem vosso guru. Compete-vos percebê-la e proceder de acordo, ou deixá-la de lado. Se, porém, eu vos induzisse a entrar para uma organização, se me tornasse a vossa autoridade, nesse caso eu me tornaria importante; por conseguinte, a vossa confusão continuaria a existir, e estaríeis meramente a fugir da vossa confusão e a ligar muita importância à minha pessoa; mas é à vossa confusão que deveis ligar importância, e não a mim. Portanto, eu estou fora do jogo.
            O que tem importância é que compreendais o vosso próprio sofrimento, vossa própria confusão, vossa própria dor, e vossa própria existência desastrada. E, para compreender necessitais de alguém, seja quem for? O que precisais é observar com precisão, com clareza, com olhos não embaciados pelo preconceito. E isso deveis fazer por vós mesmo, deveis olhar para dentro de vós mesmo, para descobrir se tendes preconceitos. Quer isso dizer que deveis estar cônscio de vosso próprio processo, de vossas próprias idiossincrasias. Como em geral não nos mostramos dispostos a descobrir a nós mesmos e a examinar o processo do autoconhecimento, procuramos um guia — ou, antes, criamos um guia. O guia se torna, assim, importante, porque nos ajuda a fugir de nós mesmos. O guia pode ser adorado, guardado numa gaiola, e dele se pode murmurar. O guia, portanto, é na verdade um fator degenerativo. Positivamente, quando o indivíduo, quando uma sociedade, quando uma civilização apela para um guia, isso indica um estado de desintegração. Uma sociedade criadora não tem guia, porque, nela, cada indivíduo é uma luz para si mesmo. Uma sociedade assim é o resultado das relações entre pessoas que estão em busca de autoconhecimento e compreensão, profundos, fundamentais; e tais pessoas não têm necessidade de uma sociedade estática, com os seus guias ou chefes, com suas autoritárias organizações sociais.

Krishnamurti – Da Insatisfação à Felicidade – 29 de fevereiro de 1948

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