quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Que significa ser “religiosamente livre”?


É possível libertar a mente isto é, nossa própria mente, a mente individual — da tirania das igrejas, das crenças organizadas, dos dogmas, dos sistemas de filosofia, das várias práticas da ioga, e todas as preconcepções sobre o que seja a Realidade ou Deus, e, livres de tudo isso, descobrirmos por nós mesmos se existe “liberdade religiosa”? Porque, sem dúvida, só a liberdade religiosa pode oferecer, definitiva e fundamentalmente, a solução de todos os nossos problemas, tanto individuais como coletivos.
Isso, com efeito, significa: Pode a mente descondicionar-se? Porque, em última análise, nossa mente é resultado do tempo, da tradição, de uma vasta experiência — não só a experiência do presente, mas também a experiência coletiva do passado. A questão, pois, não é de como enobrecermos o nosso condicionamento, como melhorá-lo — como está tentando fazer a maioria de nós — porém, antes, de libertarmos completamente o nosso espírito de todos os seus condicionamentos. A questão verdadeira, parece-me, não é de decidirmos a que religião pertencer, que sistema de filosofia adotar, que disciplinas praticar para alcançarmos a percepção de uma Realidade existente além dos limites da mente, porém, sim, de descobrirmos por nós mesmos, pela nossa compreensão individual, pela investigação própria e autoconhecimento, se a mente pode ser livre. Esta é a maior de todas as revoluções, a única revolução — a libertação da mente de todos os seus condicionamentos.
Afinal de contas, para descobrir algo que seja eterno, descobrir se tal coisa existe, não deve a mente pensar em termos de tempo; não deve acumular o passado, visto que tal acumulação gera o tempo.
As próprias experiências que colhemos têm de ser postas fora, porque elas manufaturam, constroem o tempo. Nossa mente, sem dúvida, resulta do tempo, condicionada pelo passado, pelas inumeráveis experiências, lembranças que acumulamos e que nos emprestam continuidade. Assim sendo, pode-se ser, de fato, livre, religiosamente — no sentido mais profundo da palavra “religião”? Porque religião, é bem de ver, não são ritos, dogmas, não é moral social, freqüentar a igreja todos os domingos, a prática da virtude, o bom comportamento, que nos levam à respeitabilidade. Nada disso é religião, por certo. Religião é muito mais do que isso, coisa muitíssimo diferente.
Se desejamos verificar o significado de ser “religiosamente livre”, acho necessário seja compreendido, integralmente, o problema da vontade, do desejo, com seus alvos, atividades, propósitos, “projeções” inumeráveis — a armadilha em que a mente está cativa. Parece-me, pois, que os nossos problemas só poderão ser resolvidos em definitivo, se deixarmos “queimar-se” totalmente o processo da vontade — coisa que parecerá completamente estranha a um espírito ocidental, e mesmo à mentalidade oriental. Porque, ao fim de contas, esta suposta religião que geralmente aceitamos, está baseada essencialmente no processo do “vir a ser algo”, de por fim alcançar um certo estado, que é projetado ou inventado, não é verdade? Podemos, em raros momentos, experimentar um “novo estado”, mas, imediatamente, pomo-nos a perseguí-lo — o que também implica o cultivo da vontade de ser, de ser algo — e nele estará o processo do tempo, não é verdade? Se a mente deseja alcançar algo além do tempo, além das limitações das experiências, baseadas essencialmente no condicionamento da ação, do pensamento, do sentimento; se desejamos alcançar algo além de tudo isso sem dúvida é necessário que nossa mente, constituída que é de tantas atividades e desejos, finde, cesse as suas atividades. E isto, na verdade, significa: compreensão de todo o processo da mente condicionada. Afinal de contas, é bem óbvio, a mente condicionada, que se formou e moldou segundo a cultura de uma dada sociedade, não pode encontrar algo que se acha além de todo o pensar. E a compreensão que nos faz achar o que está além é revolução, — a verdadeira religião.
O que é significativo, portanto, não é que sejais cristão, budista ou hinduísta, um “seguidor”, um homem que troca uma religião por outra para satisfazer sua particular vaidade, aceitando certas formas de rituais e abandonando as antigas — sabeis as sensações que se experimentam quando se assiste a uma cerimônia religiosa. Tudo isso, a meu ver, é prejudicial, completamente inútil, para a mente que deseja descobrir o verdadeiro. Mas o abandono desse caminho, por ação da vontade, só pode naturalmente gerar mais condicionamento, o que acho muito importante compreender. Estamos habituados a exercer esforço, visando a um resultado. É por isso que nos exercitamos; praticamos certas virtudes e lutamos por alcançar um certo padrão de moralidade, o que indica esforço, de nossa parte, para chegarmos a algum lugar, não é verdade?
Seria desejável refletirmos sobre isto, discuti-lo, investigá-lo juntos — investigar como libertar a mente de todo condicionamento; se ela pode ser descondicionada pela ação da vontade, pela análise de todos os processos de pensamento e suas respectivas reações — ou se existe uma maneira totalmente diferente de proceder, ou seja com um percebimento em que sejam “queimados” pela raiz todos os processos de pensamento. Todo pensar, obviamente, é condicionado; não existe “pensar livre” — tal coisa não existe. O pensar, sendo produto de nosso condicionamento, nossa cultura, nosso clima, nosso fundo social, econômico, político, nunca pode ser livre. Os próprios livros que ledes, as próprias praxes que observais, têm suas bases no vosso próprio fundo (background); e todo pensar só pode provir desse mesmo fundo.
Assim, se pudermos estar vigilantes (poderemos apreciar mais adiante o que significa “estar vigilante”) talvez possamos “descondicionar” a mente, sem o processo da vontade, sem a determinação de descondicioná-la. Porque determinação denota uma entidade que deseja, uma entidade que diz: “Tenho de descondicionar a minha mente”. Essa própria entidade é produto do nosso desejo de alcançarmos um certo resultado; portanto, já existe um conflito. Mas, podemos estar cônscios de nosso condicionamento, simplesmente cônscios? Assim, não há conflito algum. Na chama desse percebimento, se o permitimos, podem consumir-se todos os nossos problemas.
No fundo, todos temos o sentimento de que existe alguma coisa além do nosso pensar, dos nossos insignificantes problemas e tribulações. Há, porventura, momentos em que “experimentamos” esse estado. Mas tais experiências, infelizmente, se tornam um obstáculo ao ulterior descobrimento de coisas mais importantes; pois nossa mente gosta de apegar-se a toda coisa que experimentamos. Tomando tal coisa pelo Real, lhe ficamos apegados; mas, justamente este apego impede o experimentar de coisa muito mais importante.
A questão, por conseguinte é: Pode a mente condicionada, olhar-se a si própria, perceber o seu condicionamento, sem fazer escolha, abstendo-se de comparações e de condenação, para ver se na chama desse percebimento não se consome, pela raiz, o problema, o pensamento, que a preocupam? Não há dúvida de que toda espécie de acumulação, de conhecimentos ou de experiência, toda espécie de ideal, toda “projeção” da mente, toda prática deliberada, para moldar a mente — o que ela deve ser e não deve ser — não há dúvida de que tudo isso está a paralisar o processo da investigação, do descobrimento. Se examinardes bem esta questão, se refletirdes a fundo a seu respeito, vereis que a mente tem de estar livre de todo condicionamento, para que possa ter “liberdade religiosa”. E é só nesta liberdade religiosa que todos os nossos problemas podem ser resolvidos.
Nossa investigação, por conseguinte, deve visar, não à solução de nossos problemas imediatos, mas, sim, a descobrir se a mente — não só a mente consciente, mas também a inconsciente, a mente profunda, onde estão depositadas todas as tradições, lembranças, e herança racial — se a totalidade da mente pode ser posta de lado, abandonada. Acho que tal coisa só é possível, quando a mente é capaz de um estado de percebimento em que não haja exigência em nenhum sentido, nem pressão de espécie alguma — um estado de simples vigilância e percebimento. Penso ser uma das coisas mais difíceis o nos pormos assim vigilantes; porque o problema imediato, a solução imediata, nos está prendendo toda a atenção — e por isso são tão superficiais a nossas vidas! Ainda que recorramos a todos os analistas, leiamos todos os livros, adquiramos muito saber, freqüentemos as igrejas, rezemos, meditemos, pratiquemos muitas disciplinas, nossa vida, não obstante, é muito superficial, pois não sabemos penetrar-lhe as profundezas. A meu ver a compreensão, o modo de penetração que nos levará às maiores profundidades, está no percebimento — no estarmos cônscios, simplesmente, dos nossos pensamentos e sentimentos, sem condenação e sem comparação — no simples observar. Se o experimentardes, vereis como isso é difícil; porque nossa educação, em todos os seus aspectos, só nos prepara para condenar, aprovar, comparar.
Nessas condições, parece-me que o nosso problema — que na realidade independe do tempo é o de descobrirmos por nós mesmos, “experimentarmos” diretamente o que significa libertar a mente de todos os condicionamentos. É relativamente fácil livrar-se do nacionalismo, das qualidades raciais hereditárias, de certas crenças e dogmas, não pertencer a nenhuma igreja, ou religião — isso é relativamente fácil, para todo aquele que refletiu seriamente sobre estes assuntos; mas, é muito mais difícil ir mais longe do que isso, ultrapassar estes limites. Pensamos ter feito muito quando sacudimos de nós algumas das camadas superficiais de nossa cultura ocidental ou oriental. Mas o penetrarmos mais além, sem ilusões, sem enganarmos a nós mesmos, — isso é extremamente difícil. A maioria de nós nos falta para tal a necessária energia. Não me refiro à energia que se cria pela abstinência, pela renúncia, pelo ascetismo, pelo controle — pois a energia oriunda dessas coisas é de uma qualidade falsificada, já que desfigura a observação; refiro-me àquela energia que nasce quando a mente já não está buscando coisa alguma, já não sente necessidade de buscar, nem de descobrir, nem de “experimentar”, e, portanto, está verdadeiramente tranqüila. Só nesse estado a mente é capaz de descobrimento; porque só a mente tranqüila está apta a receber algo que não é “projeção” dela própria. A mente tranqüila é livre; é a mente religiosa.
Podemos considerar realmente este assunto, não como um grupo, “experimentando” coletivamente, o que, aliás, é relativamente fácil — mas podemos, como indivíduos, investigar realmente e descobrir por nós mesmos até que grau e até que profundidade estamos condicionados? E podemos estar cônscios desse condicionamento, sem lhe opormos nenhuma reação, sem condená-lo, sem procurar mos alterá-lo, sem substituirmos o antigo condicionamento por um condicionamento novo estar cônscios com tanta simplicidade e tão profundamente, que o próprio “processo” de condicionamento — que, afinal, é simplesmente o desejo de estar seguro, o desejo de permanência — seja “queimado” pela raiz? Podemos descobrir isso por nós mesmos — e não porque um outro falou a seu respeito — percebê-lo diretamente, de modo que a própria raiz, o próprio desejo de segurança, permanência, seja de todo consumido? É esse desejo de permanência, quer no futuro quer no passado, esse apego à experiência acumulada, — que nos impele à busca da segurança. E esse desejo não pode ser “queimado”, consumir-se de todo? Porque é ele que cria condicionamento. Esse desejo que quase todos temos, de saber, buscando nesse saber nossa própria segurança, esse desejo de experiência, para nos tornarmos mais fortes, não se pode acabar definitivamente não pela volição, mas fazendo-o consumir-se na chama do percebimento, de modo que a mente fique livre de todos os seus desejos, e possa então surgir aquilo que é Eterno?
Penso ser esta a verdadeira revolução — e não a comunista ou qualquer outra forma de revolução. Estas não resolvem os nossos problemas; pelo contrário, aumentam-nos, multiplicando as nossas tribulações — o que, mais uma vez, é um fato bem óbvio. Sem dúvida, a única revolução verdadeira é a que liberta a mente de seu condicionamento e, por conseguinte, da sociedade. Não é, pois, a mera reforma da sociedade. O homem que está libertado da sociedade, uma vez que está livre de condicionamento, agirá pela sua maneira própria, e sua ação, por sua vez, influirá na sociedade. Nosso problema, por conseguinte, não é a reformação — como melhorar a sociedade, como ter um “Estado de Bem-Estar” (Welfare State) comunista, socialista, ou coisa parecida. Nosso problema não se refere à revolução econômica ou política, nem à paz pelo terror. Para um homem verdadeiramente sério, estas coisas não constituem problemas. O seu problema real é o de investigar se a mente pode libertar-se, de todo, de seu condicionamento e, talvez, nesta investigação, neste silêncio extraordinário, descobrir aquilo que ultrapassa todas as medidas.
Tenho aqui várias perguntas, e antes de a elas responder, acho importante verificar o que é que entendemos por “um problema”. Só existe algum problema quando a mente está ocupada — não achais? Tende a bondade de escutar e permiti-me sugerir-vos que não salteis a conclusões, uma vez que estamos tentando investigar juntos. Quando a mente está ocupada, seja com Deus, seja com assuntos culinários, com uma pessoa, uma idéia, uma virtude — sua ocupação, inevitavelmente, tem de criar problemas. Se estou ocupado com o descobrimento de Deus ou da Verdade, esta minha ocupação se torna um problema, porque me ponho então a indagar, a mendigar, em busca do método mais eficaz, etc. A verdadeira questão, por conseguinte, não se relaciona com o problema em si, porém, sim, precisamos investigar porque anda a mente sempre ocupada, porque busca a mente ocupações. Não me refiro às atividades diárias, dos negócios, etc., mas à ocupação psicológica da mente — a qual tem relação com a nossa vida de cada dia. Pouco importa com o que estejamos ocupados: se a respeito de Deus, da Verdade, do amor, do sexo, de assuntos culinários — tudo é a mesma coisa; não há “ocupações nobres”. A mente busca ocupações, precisa estar ocupada com alguma coisa, tem horror a se ver não ocupada. Verificai, numa ocasião qualquer, quanto vos ocupam os vossos problemas e o que sucederia se não estivésseis tão ocupados: descobriríeis logo o horror que a mente tem de ver-se sem nenhuma ocupação. Nossa cultura, nossa educação, em todos os seus aspectos, nos ensinam que a mente deve estar ocupada; no entanto, acho que a própria ocupação cria o problema. Isto não significa que não existem problemas; há problemas; mas eu acho que a ocupação com o problema é que nos impede de compreendê-lo. É realmente interessante observar a mente, observar a nossa própria mente e verificar como está sempre ocupada com uma coisa ou com outra; nunca se acha um momento em que ela esteja quieta, desocupada, vazia, nunca se encontra um espaço sem limites.
Como andamos sempre tão ocupados, os nossos problemas aumentam sem cessar. E a mera solução de um dado problema, sem se compreender por inteiro o processo da ocupação mental, só tem o efeito de criar outros problemas. Assim sendo, não haverá possibilidade de compreendermos esta peculiar insistência da mente em estar ocupada, seja com idéias, especulações, conhecimentos, ilusões, estudos, seja com sua própria virtude e seus próprios temores? Estar livre de tudo isso, ter uma mente não ocupada, é muito difícil, porquanto significa, com efeito, a cessação de todas estas reações da memória, que chamamos “pensar”.

Krishnamurti – 17 de junho de 1955 – Londres
Do livro: Transformação Fundamental - ICK
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