quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Sobre a crença em Deus - II


PERGUNTA: Vós atingistes o real. Podeis dizer o que é Deus?

KRISHNAMURTI: Como sabeis que atingi o real? Para sabê-lo, seria necessário que vós também o tivésseis alcançado. Não estou dando uma resposta sutil. Para conhecer uma coisa deveis estar em relação com ela; deveis ter tido também a experiência, pessoalmente e, por conseguinte, vossa afirmação de que alcancei a realidade, não tem, evidentemente, sentido. Que importa, se eu a alcancei ou não? O que estou dizendo não é verdadeiro? Ainda que eu seja o mais perfeito dos homens, se o que digo não é verdadeiro, por que me dais atenção? Ora, por certo, meu atingimento da realidade nada tem que ver com o que estou dizendo, e o homem que venera outro homem, por ter esse outro alcançado a realidade, está, em verdade, rendendo culto à autoridade e, por conseguinte, nunca encontrará a verdade. Nenhuma importância tem compreender o que se diz sobre a realidade, ou conhecer o homem que a atingiu, não achais?
Sei que a tradição manda "acompanhar o homem que atingiu a realidade". Mas como saber que ele a atingiu? O que se pode fazer é acompanhá-lo; mas, mesmo isso é dificílimo, hoje em dia. Há muito pouca gente boa — no genuíno sentido da expressão — gente que não esteja à procura de alguma coisa, atrás de alguma coisa. Os que estão buscando alguma coisa, ou desejando alguma coisa, são exploradores, e, portanto, é muito difícil achar-se um companheiro para amar.
Idealizamos os indivíduos que alcançaram a realidade, e esperamos que eles nos dêem alguma coisa — o que constitui uma relação falsa. Como se pode estar em comunhão com um homem que atingiu a realidade, quando está ausente o amor? Esta é a nossa dificuldade. Em todas estas discussões, não nos amamos realmente uns aos outros; somos desconfiados. Desejais alguma coisa de mim: instrução, atingimento do real, ou minha companhia — e tudo isso indica que não amais. Como desejais alguma coisa, estais aqui para explorar. Quando amamos, realmente, uns aos outros, a comunhão é instantânea. Então não importa mais que vós tenhais alcançado a realidade e eu não, ou que estejais num plano superior ou inferior. Como nossos corações estão murchos, Deus se tornou extraordinariamente importante. Isto é, desejais conhecer a Deus, porque perdestes a melodia do vosso coração, e saís atrás do cantor, pedindo-lhe que vos ensine a cantar. Ele poderá ensinar-vos a técnica, mas a técnica não conduz à criação. Não sois músico pelo simples fato de saberdes cantar. Podeis conhecer todos os passos de uma dança, mas se não há criação no vosso coração, estais apenas funcionando como máquinas. Não podeis amar, se vosso fim é unicamente alcançar um resultado. Não existe aquilo que chamamos ideal, que é apenas um alvo para ser alcançado. A beleza não é objeto que se alcance; ela é a realidade, agora, não amanhã. Quando há amor, compreende-se o desconhecido, sabe-se o que é Deus, e não se precisa de ninguém para ensiná-lo. Esta é a beleza do amor. Ele é, em si, a eternidade. Como não temos amor, queremos que alguém, ou Deus, no-lo dê. Se amássemos deveras, sabemos como seria diferente este mundo? Seríamos verdadeiramente felizes. Por conseguinte, não colocaríamos nossa felicidade em coisas, na família, em ideais. Seríamos felizes e, conseqúentemente, as coisas, as pessoas e os ideais, não dominariam nossas vidas. Tudo isso é secundário. Porque não amamos e porque não somos felizes, pomos nosso interesse nas coisas, pensando que elas nos trarão a felicidade, e uma das coisas em que pomos nosso interesse é Deus.
Desejais que eu vos diga o que é a realidade. Pode o indescritível ser posto em palavras? Pode-se medir o imensurável? Pode-se aprisionar o vento na mão? Se o fazeis, é o vento? Se medis o que é imensurável, é o imensurável? Se o formulais, é o real? Naturalmente que não, pois no momento em que descreveis algo que é indescritível, ele não é mais o indescritível. Do momento em que traduzis o incognoscível no conhecido, ele deixa de ser o incognoscível. Entretanto, é isso o que buscamos, sequiosamente. Queremos sempre saber, pois teremos então a possibilidade de continuar a existir, a possibilidade — assim pensamos — de conquistar a felicidade final, a permanência. Queremos saber por que não somos felizes, por que estamos lutando, insa-namente, por que estamos exaustos, degradados. No entanto, ao invés de reconhecermos o fato simples — que somos entes degradados, estúpidos, cansados, agitados — queremos fugir do conhecido para o desconhecido, que por sua vez se torna o conhecido; desse modo, nunca podemos achar a realidade.
Consequentemente, ao invés de perguntar quem atingiu o real ou o que é Deus, por que não aplicais toda a vossa atenção e vigilância ao que é? Encontrareis então o desconhecido, ou, melhor, ele virá ao vosso encontro. Se compreenderdes o que é conhecido, experimentareis aquele silêncio extraordinário, não provocado, não forçado, aquele vazio criador, no qual, e só nele, a realidade pode surgir. A realidade não pode vir àquele que está em "vir a ser", lutando; só pode vir àquele que está em ser, que compreende o que é. Vereis, pois, que a realidade não está ao longe; o desconhecido não está longe de nós; ele se acha em o que é. Assim como a solução de um problema se encontra no problema, assim também a realidade se encontra em o que é; se pudermos compreender o que é, conheceremos então a verdade.
É sobremodo difícil ter consciência da estupidez, da avidez, da malevolência, ambição, etc. O fato mesmo de estar cônscio do que é, é a verdade. O que nos liberta é a verdade, e não a luta para ser livre. A realidade, pois, não está distante de nós, mas nós a colocamos a distância, porque desejamos que ela nos sirva de continuidade pessoal. Ela está aqui, agora, imediatamente. O eterno, ou o atemporal, existe agora, e o agora não pode ser compreendido pelo homem que está aprisionado na rede do tempo. Para libertar o pensamento do tempo, é preciso ação; a mente porém, que é indolente, preguiçosa, cria sempre novos empecilhos. Essa libertação só é possível pela meditação correta, que significa ação completa — não ação contínua, e a ação completa só pode ser compreendida pela mente que compreende o processo da continuidade, que é memória — não a memória fatual, mas a memória psicológica. Enquanto funcionar a memória, a mente não poderá compreender o que é. Nossa mente, entretanto, o nosso ser total, se torna extraordinariamente criador, passivamente vigilante, ao ser compreendida a significação do findar, porque no findar há renovação, ao passo que na continuidade há morte, decomposição.
Krishnamurti
A Primeira e última liberdade
_____________________________________________________

Participe do nosso grupo no Facebook

Participe do nosso grupo no Facebook
Grupo Jiddu Krishnamurti
Related Posts with Thumbnails

Vídeos para nossa luz interior

This div will be replaced