VAMOS hoje palestrar acerca da religião e da mente religiosa, e também sobre a realidade, a meditação, e a mente capaz de perceber o verdadeiro. A dificuldade que iremos encontrar será que cada um tratará de traduzir o que se vai dizer em conformidade com seu peculiar condicionamento, sua particular cultura. Se queremos descobrir alguma coisa, temos de abandonar completamente tudo o que o homem criou intelectual ou emocionalmente, ficar totalmente livres dessas coisas. Temos de rejeitar tudo o que o homem inventou, no seu desejo de encontrar a realidade, e esta será outra dificuldade.
Antes de mais nada, que é religião? Qual o estado da mente que faz esta pergunta? A religião sempre representou um relevante papel em nossas vidas. Ela constitui provavelmente a base de nossa vida e, se não investigamos a fundo a estrutura e natureza da mente religiosa e, externamente, tratamos de promover uma revolução social, isso será de insignificante valia. Para se compreender a natureza da mente religiosa, cumpre investigar primeiramente o problema da busca e o significado da busca. Porque buscamos e que é que queremos achar?
No buscar, há a entidade que busca, e a coisa buscada, portanto, dualidade. E que poderá achar o "eu" que busca? O que ele achar estará de acordo com seu condicionamento. Se um indivíduo é cristão, achará o que sua cultura e a respectiva propaganda lhe ensinou; se é hinduísta, achará o que a cultura hinduísta lhe ensinou, e assim por diante. Dessarte, em conformidade com vossa cultura, vosso condicionamento, vossos conhecimentos, ides descobrir o que chamais Verdade, Felicidade, etc. Por conseguinte, o passado vai buscar, no futuro, uma certa coisa já determinada. Não haverá, pois, descobrimento da verdade e, sim, um descobrimento feito consoante o passado, ou seja de acordo com o conhecimento, a experiência, a memória.
Portanto, a mente que deseja perceber o verdadeiro deve estar livre do passado, de seu condicionamento. Isto é, se sois hinduísta, deveis achar-vos inteiramente livre de todo condicionamento conceptual, de toda tradição. Do contrário, descobríreis o que a tradição dita, o que a tradição vos manda achar. Assim, para perceber o verdadeiro, a mente deve estar livre de todo o seu condicionamento, de sua particular cultura, livre de toda e qualquer crença. Porque toda crença se baseia no desejo de consolação, de segurança, ou no medo. Vós não credes que o Sol se erguerá amanhã; sabeis que ele se erguerá. Só a mente que, vendo-se incerta e confusa, busca segurança e consolação, crê. Deveis, pois, estar totalmente livre de crenças, vale dizer, livre de conclusões e ideais.
Enquanto escutais, observai o fato de que a mente escurecida pela crença - que se baseia no desejo de consolo, de segurança, desejo gerado pelo medo - não pode de modo nenhum ver o verdadeiro, ainda que o deseje sequiosamente. Percebeis isso como um fato real? Se percebeis, deixais de crer e vossa mente fica livre para observar. Estais, enquanto escutais, observando vossas próprias crenças, vossas próprias conclusões? Para poderdes perceber com clareza, vossa mente deve achar-se totalmente livre de crença, totalmente livre de vosso Deus ou de meu Deus.
Enquanto ouvis esta palestra, estais livre de vossa crença? Ou levais uma tão pesada carga de condicionamento que, privado de vossas crenças, vos vereis desorientado, assustado, e a elas mais apegado? A mente que se acha nesse estado é, sem dúvida, uma mente irreligiosa. A mente que busca jamais descobrirá a verdade; e vosso condicionamento vos impele a buscar. Pode, pois, a mente perceber esta verdade que toda busca implica conflito dualista e que a mente em que há conflito está deformada e, portanto, incapacitada para ver com clareza?
E, por certo, a mente que observa rituais não é também uma mente religiosa; está em busca de estímulos, de sensações e excitações várias. Deste modo, pode a mente que quer investigar séria e apaixonadamente lançar para o lado todos os rituais, todas as crenças, toda busca, pois, como já explicamos, essas coisas impedem a percepção?
Estais agora livre de todas essas divisões? Deixastes de ser hinduísta, ou o sois ainda? Receio que ainda o sejais, e por uma razão muito simples: porque não sois sérios. Aceitais a vida tal como é e não vedes o perigo desse viver, a aflição, a agonia que ele traz; por conseguinte, atuais mecanicamente. Vós tendes de ser sério, porque a vida o exige; a vida é batalha, agonia, confusão, e, para haver um mundo diferente, devemos ser muito sérios; do contrário, se estamos buscando alguma coisa, cairemos nas redes dos chamados gurus. Eles nos oferecem sistemas, métodos, para alcançarmos a iluminação, para alcançarmos uma certa coisa a que chamam Deus, etc.
Ora, quando temos um sistema, um método, isso não implica um alvo fixo? Praticar certos atos para alcançar uma certa coisa implica que essa coisa já é conhecida e está fixada num ponto. Há, pois, como sabemos, numerosos sistemas de alcançar a iluminação, a verdade - como se a verdade fosse um estado fixo. "Uma vez alcançada, estarão terminadas vossas tribulações; portanto, segui este sistema!" Estais-me acompanhando?
Em primeiro lugar, pode um sistema conduzir-vos à realidade? Pensai nisso, primeiro logicamente. Sistema implica método, prática, gradualidade. Gradualmente, chegareis "lá". Gradualidade implica tempo. Gradualidade implica cultivo mecânico de um hábito e, por conseguinte, constante conflito entre "o que é" e "o que deveria ser". Gradualidade implica deformação da mente, incompreensão da estrutura e natureza da mente, do pensamento. Isto é, pensamos que, gradualmente, com o tempo, alcançaremos uma certa coisa já existente, fixada em alguma parte.
Ora, a verdade é uma coisa permanente, fixada num ponto; ou é ela uma coisa viva e, portanto, não há caminho a ela conducente e o que se requer não é a observância mecânica de um sistema, mas, sim, constante observação e percepção de tudo o que se está passando interiormente? Como sabeis, há muitos caminhos para a estação, e a estação é uma coisa fixa e permanente - a menos que seja destruída por um terremoto ou uma bomba. Ela lá está e pode ser alcançada por diferentes caminhos; mas, como somos muito crédulos e ávidos, desejamos aquilo que chamamos "a verdade", sem investigarmos profundamente se a Verdade pode ser uma coisa estática.
A mente religiosa é livre de toda e qualquer espécie de rotina, de sistema, de pensamento organizado.
Um dia, um homem andava pela rua e, em vez de olhar para o belo céu, ia olhando para o chão. De repente, viu, à distância, um objeto muito brilhante. Apressou-se em apanhá-lo e, mirando-o, quedou-se num estado de beatitude, pois era uma coisa extremamente bela. Assim, guardou-a no bolso. Atrás dele caminhavam dois outros homens. Disse um deles: "Que terá ele achado? Notou você a expressão do seu rosto, o êxtase em que ficou, olhando aquele objeto?" O outro - que por acaso era o diabo - respondeu: "O que ele achou foi a Verdade." E o primeiro: "Um mau negócio para você, ter ele achado a Verdade." "Absolutamente" retrucou o outro, "eu vou ajudá-lo a organizá-la".
É isso o que estamos fazendo; temos os sistemas, os métodos, as práticas, ensinados pelos gurus. Por conseqüência, a mente interessada em investigar a natureza da verdade deve estar livre de todo esforço organizado, toda prática organizada, toda busca organizada.
E, agora, que é a beleza? Cabe à mente religiosa descobrir o que é a beleza, porque, sem ela, não há amor. Ao perceberdes o que é a beleza, sabereis o que é amor. Esse estado de beleza e de amor é próprio da mente religiosa. Fora dele, não há mente religiosa. Que é, pois, a beleza? Como sabeis, a maioria das religiões negam a beleza. Os monges, os sannyasis, têm medo da beleza, porque, para eles, a beleza está associada ao desejo sensual; por conseguinte, na busca da realidade, temos de negar todo estado de desejo, todo estado de percepção do belo. Conseqüentemente, fazemos votos de toda espécie; mas, que acontece quando fazemos um voto? Ficamos num perpétuo estado de conflito interior. A mente, por conseguinte, se deforma e acaba num estado neurótico, incapacitada de perceber o verdadeiro. Que é, pois, a beleza? Muito importa fazer esta pergunta e examiná-la com todo o ardor, em vez de se ficar aí sentado, à espera de uma resposta. Que é a beleza? Ela se encontra na arquitetura, nas linhas de um edifício, num museu, num livro, num poema, em qualquer coisa modelada pela mão ou pela mente? A beleza requer expressão, precisa ser posta em palavras, numa pedra, num edifício? Ou é a Beleza uma coisa inteiramente diversa? Para descobrir-se o que é a Beleza e, por conseguinte, o que é o Amor, torna-se necessária a compreensão do "eu", o conhecimento de nós mesmos, não em conformidade com algum padrão ou sistema, porém observando-nos como realmente somos. Entendeis? Vou explicá-lo.
Pensamos existir um "eu" permanente que temos de compreender. Mas isso é uma suposição. O que temos de compreender é uma coisa viva, em constante mutação, em incessante movimento. Examinar uma coisa viva é bem diferente de examinar um "eu" permanente. Torna-se, pois, necessária a compreensão de nós mesmos, não de acordo com algum sistema ou de acordo com qualquer filósofo ou analista, porém pela auto-observação, porque se existe aquele "eu" permanente há divisão, por estar ele separado do que realmente somos. Onde há divisão, há necessariamente conflito; e onde há conflito não há beleza e, por conseguinte, não há amor.
Assim, investigando o que é a mente religiosa, temos de estar vigilantes, para conhecermos aquele estado extraordinário que é a beleza, e só podemos conhecê-lo quando há abandono total do "eu" e, por conseguinte, ardor, paixão; de outro modo, não pode haver amor. O amor não é prazer, desejo, concupiscência, pois não está associado ao sexo. A mente religiosa é aquela que conhece o movimento da virtude e da disciplina. Vejamos o que significa "disciplina".
A raiz da palavra disciplina significa "aprender". Prestai bem atenção a isto, a fim de verdes a verdade respectiva vendo-a, tereis uma extraordinária percepção da Realidade e não estareis como que hipnotizados por este orador. A palavra "disciplina" significa essencialmente "aprender", e não "ajustar-se", "imitar", "obedecer". Significa "aprender". Mas não tendes possibilidade de aprender, se quereis acumular o que aprendeis.
A acumulação de conhecimentos é necessária, para se saber o caminho de casa ou fazer qualquer coisa eficientemente. É necessária a aquisição de conhecimentos. Isto é, para aprenderdes uma língua, uma técnica, tendes de adquirir conhecimentos; essa aquisição é necessária se desejais ser engenheiro, cientista, etc. Aprender francês ou italiano é acumular palavras e conhecimentos, e o que se adquire é o passado - saber. O saber é sempre do passado; e esse saber atua quando necessário.
Ora bem; existe outra espécie de aprender, completamente diferente, um aprender que não é adquirir? No aprender pela observação não há aquisição. Para aprender o que é a ordem, não deve haver acumulação de conhecimentos sobre o que a ordem deve ser em si ou segundo vossos desejos ou o ensino de vosso profeta ou santo preferido: cumpre aprender o que a ordem é realmente. Ora, como podeis aprendê-lo? Prestai atenção a isto: vós viveis em desordem, e só conheceis essa desordem. Viveis num estado de contradição, de confusão, numa batalha constante. Isso é desordem. Ora, observando a desordem, aprendendo o que ela é, vem a ordem, a disciplina. Compreendeis? Tendes de observar a desordem, em vez de tentardes extrair a ordem da desordem; tendes, simplesmente, de observar a desordem, negando toda ação positiva. Que é desordem? Observai-a, observai-a em vós mesmo; vede vossa própria desordem quanto sois contraditório, corrigindo ora isto ora aquilo, ajustando, medindo, comparando e, por conseguinte, nunca livre. Interiormente, estais confuso a todos os respeitos, em completa desordem.
E que faz uma pessoa ao perceber a própria confusão? Ao nos vermos confusos, desejamos agir, fazer alguma coisa, mas não sabemos o que fazer. Em vez de olharmos, observarmos, estudarmos a confusão, queremos fazer alguma coisa e, assim, ficamos cada vez mais confusos. Mas, cumpre-vos observar a confusão, e não fugir dela. Porque existe confusão? Isto é, a pessoa que não sabe o que deve fazer, que caminho tomar, se tornar-se comunista, socialista, "ativista"*, contemplativo, ou retirar-se de todo deste mundo insano, está confusa. Porque existe confusão? Existe confusão porque há ajustamento. Ajustamento implica medição, medição de si próprio - medição do que sou com o que eu deveria ser. Prestai atenção a isto, por favor. Ao perceberdes, ao verdes realmente que isto é verdade, termina a confusão. Há confusão porque, por efeito da educação, de circunstâncias de toda ordem, de pressões, tensões e compulsões em todas as formas, estais sempre medindo - medindo o que sois com o que devíeis ser, o ideal. E esta é uma das razões da confusão: comparação, ajustamento, obediência.
Ora, porque vos ajustais, porque medis, porque obedeceis? Vós vos ajustais porque desde a infância tendes sido ensinado a comparar-vos com outros. Observai, senhor, observai em vós mesmo esse comparar - que significa que o que sois não é importante, e o importante é o que "deveríeis ser". Há, pois, contradição: negação do que é e aceitação do que deveria ser: o herói, a imagem que projetasses. Mas, se vos abstendes inteiramente de comparar, sabeis o que sois, e o que sois é então completamente diferente daquilo que, pela comparação, pensáveis ser. Compreendeis? Isto é, comparo-me convosco: sois muito hábil, inteligente, brilhante e, comparando-me convosco, digo "sou estúpido". Mas, se não há comparação nenhuma, sou estúpido? Sou o que sou, e a isso não chamo "ser estúpido". Posso então agir, mudar, ultrapassar o que é; mas, se me comparo com outrem, não posso ultrapassar o que é.
E, por que razão obedecemos? Não sei se já considerasses este problema, se alguma vez investigasses porque obedeces a outrem. A raiz da palavra "obedecer" significa "ouvir". Quando repetidamente ouvis dizer que sois hinduísta, muçulmano, budista, cristão, comunista, sabeis o efeito que isso produz? Condiciona-vos a mente, não? Vós o repetis e, instintivamente, seguis, obedeceis. Dizem-vos neste país (e isso infelizmente se está espalhando por outros países) que necessitais de um guru. E vede como isso prejudica a vós mesmo, à vossa mente. A mente que obedece, que se ajusta, que compara, não é, de modo nenhum, uma mente religiosa.
Vede, senhor, que temos de compreender o que é virtude, pois virtude é ordem - não a virtude "praticada", exercitada. Não se pode "praticar" humildade. Ao compreender-se a vaidade, a humildade surge naturalmente. E cumpre, também, considerar a questão da meditação. Que é a meditação da mente religiosa? Dissemos que a pessoa religiosa é livre de toda crença, abandonou todos os sistemas, toda autoridade, toda prática. Sua mente é livre; essa liberdade faz parte da meditação.
INTERROGANTE: Não se pode estabelecer um meio de nos compreendermos uns aos outros, uma compreensão "comum"?
KRISHNAMURTI: Sabeis o que significa a palavra "compreensão" - não segundo o dicionário - o que significa "compreender"? Quando compreendeis uma coisa? A compreensão é um processo intelectual, emocional? Só compreendemos quando nossa mente está atenta e completamente em silêncio. Se tagarelo enquanto falais, como posso compreender o que dizeis? Se estou comparando o que dizeis com o que li ou sei ou experimentei, como pode haver comunicação entre nós? Tenho de ouvir-vos com atenção, zelo, afeição. E, desse zelo, dessa afeição, desse silêncio vem a compreensão, tanto verbal como não verbal. Eis a base comum. E, quanto à questão da meditação, ela não pode ser examinada no espaço de uns poucos minutos, pois é uma questão sobremodo complicada; temos de aprender a meditar, e não ser ensinados pelo orador "como meditar". No momento em que introduzis o "como", estais no caminho errado. Permiti-me sugerir-vos, respeitosamente: nunca peçais a ninguém o "como". Não faltará quem, pressurosamente, vos ofereça um método, mas, se vedes a nocividade do "como", essa própria percepção é suficiente.
(*) Partidário do ativismo (activism): doutrina segundo a qual a vida é ação e luta (Dic. "Funk & Wagnals"). (N. do T.)
Krishnamurti - Nova Deli, 20 de dezembro de 1970.
Do livro: O Novo Ente Humano - ICK
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