Nesta tarde desejo falar sobre um assunto talvez um pouco estranho para vós — estranho, mas não porque eu esteja representando o meu país de origem; desejo investigar esse estado que se chama sanidade.
É dificílimo ser perfeitamente são, pois mui poucos de nós somos verdadeiramente equilibrados, sãos, racionais, clarividentes. Ter sanidade é não estar em contradição dentro de si, é ser, interior e exteriormente, sobremodo equilibrado — e isso significa que, psicologicamente, há ordem. Esse estado de sanidade é muito raro.
Um dos sinais de sanidade é a inexistência de contradição interior, de qualquer desequilíbrio. É um estado de perfeita correspondência — real e não teórica — entre o pensamento e a ação. O que pensais é o que fazeis; não há contradição entre as duas coisas, e a crença é inexistente, porque estais ocupados com fatos, com o que é, e não com o que deveria ser. O que deveria ser não é real; a realidade está no “que é”. A mente que deseja compreender a natureza da sanidade e da ordem deve por certo estar livre de toda a crença, dogma, superstição, ideal, porque, obviamente, tudo isso contradiz o que realmente é: e, quando existe essa contradição (e ela existe na vida de quase todos nós), dela resultam várias formas de desarmonia e desequilíbrio.
Assim, parece-me que, para podermos investigar, por nós mesmos, se existe isso que se pode chamar a Verdade, algo que se acha muito além das meras projeções da mente sutil, sagaz, filosófica, ou daquela que foge da rotina diária da existência física, de tédio e de ajustamento — para, individualmente, podermos investigar isso, deve haver uma ordem extraordinária em nossa vida; “ordem”, no sentido de não haver contradição de espécie alguma. Porque a contradição gera o desequilíbrio — como acontece ao homem que deseja a paz, porém na vida real tudo faz para não ter paz. São duas coisas incompatíveis, e a perturbação, a tensão motivada por essa contradição gera, dentro em nós, a inimizade e acarreta aquela falta de equilíbrio, de sanidade.
Pois bem; vou falar a respeito de algo que não é oriental nem ocidental, algo a que costumamos referir-nos com a palavra “meditação”. Porque, a meu ver, se não sabemos meditar, ou se nossa mente não se acha num estado de meditação, muito perdemos na vida. Presentemente, nossa vida é bastante superficial, vazia, estúpida; e, quando uma mentalidade limitada tenta adivinhar o que é misterioso, incognoscível, o que ela cria é obviamente uma imagem de sua própria limitação. A questão, pois, é se a mente vulgar, a mente que está cheia de preocupações, de desespero, que luta ansiosamente para mudar, para tornar-se alguma coisa — se essa mente insignificante é capaz de transformar-se, de romper suas limitações, ampliar seus horizontes; pois, se disso não for capaz, é quase impossível haver sanidade. Sanidade é ordem, tanto exterior como interior; e é também muito importante a maneira de estabelecer essa ordem.
Interiormente, quase todos nos achamos em extrema desordem. Podeis ter muita cultura, conhecimentos muito bem coordenados, clareza objetiva; por fora, podemos mostrar muita firmeza, muita habilidade no argumentar, porém, interiormente, achamo-nos, quase todos, confusos e em conflito. Isso se pode observar na vida de muitos escritores talentosos. Porque tem talento e se acham em contradição consigo mesmos, sob forte pressão e tensão, produzem literatura de todos os gêneros, mas basicamente, essa produção é obra de espíritos doentes. E, geralmente, ouso dizer, estamos confusos; não há claridade interior. Essa claridade não pode ser descoberta com a ajuda de outrem, nem por seguirmos alguma autoridade ou sistema de pensamento, antigo ou moderno. Tal claridade é ordem; e a ordem, em seu sentido fundamental, sutil, é virtude. A moralidade que a sociedade impõe não é absolutamente moralidade. A moralidade social é imoralidade, porque causa toda espécie de contradição, toda espécie de ambição e competição. A sociedade, por sua própria natureza — seja a do mundo comunista, seja a do mundo ocidental — produz, com efeito, um conformismo externo, social, a que se chama “moralidade”; mas, se a examinarmos profundamente, perceberemos que essa moralidade é imoral.
Estou falando sobre a virtude — a qual nenhuma relação tem, absolutamente, com a sociedade e sua pretensa moralidade. A virtude só pode tornar-se existente quando há, em nosso interior, ordem psicológica. Quando compreendemos a estrutura social — a estrutura psicológica da sociedade, da qual fazemos parte — nessa compreensão há ordem, e da ordem vem a virtude. Sem a virtude, não há para a mente nenhuma possibilidade de clareza, sanidade; por conseguinte, a sanidade e a virtude andam juntas. Considero importantíssimo compreender isto, porque, para a maioria, a virtude se tornou muito cansativa, coisa ridícula e antiquada, sem significação, principalmente no mundo moderno. Não se entenda que estou advogando a superficial moralidade da sociedade; estamos investigando juntos — espero — esta questão: o que é a verdadeira virtude.
Assim como mantemos nosso quarto bem arrumado, limpo, agradável — e isso fazemos todos os dias — assim também há necessidade de ordem interna; mas, a ordem interna exige muito mais atenção, exige percebimento de tudo o que se passa na esfera intima. A mente deve estar consciente de todos os seus pensamentos e sentimentos, de seus desejos e ânsias, patentes e secretos; dessa percepção resulta a ordem, que é virtude.
Se se investiga um pouco mais profundamente a virtude, percebe-se que ela não é uma coisa que se pode conservar permanentemente; e nisso consiste a beleza da virtude. Não se pode dizer: “Aprendi o que significa ser virtuoso, e não há mais o que aprender.” A virtude não é um fenômeno contínuo, permanente. A virtude é a ordem que renasce a cada momento e, por conseguinte, nela existe liberdade, e não revolta. Como vos fiz ver outro dia, revolta não é liberdade, a revolta fica sempre dentro do padrão social; e a liberdade está fora desse padrão. O padrão ou molde da sociedade é psicológico: é inveja, avidez, ambição, os variados conflitos em que tomamos parte. Nós somos a sociedade que nós mesmos criamos; e se não estamos livres dela, não há nenhuma possibilidade de ordem. A virtude, pois, é de suma importância, porque traz a liberdade. E nós devemos ser livres; mas não é isso o que quer a maioria das pessoas. Poderão desejar liberdade política — liberdade para votar num certo político, ou liberdade nacional; mas isso não é liberdade, absolutamente.
A liberdade é coisa inteiramente diferente; e a maioria de nós não deseja a liberdade interior, no sentido profundo da palavra, porque isso significa que o indivíduo terá de ficar completamente só, sem nenhum guia, nenhum sistema, sem seguir nenhuma autoridade. Para tanto, requer-se, dentro em nós, uma ordem extraordinária. Em geral, desejamos ter o amparo de alguém e, se não de uma pessoa, o amparo de uma idéia, de uma crença, de uma norma de conduta, de um padrão estabelecido pela sociedade, por um certo líder ou pessoa considerada “espiritual”, ou por nós mesmos fixado.
Assim, em regra aceitamos a autoridade. E cumpre tornar bem claro, aqui, que a autoridade a que nos estamos referindo não é a autoridade da Lei do país. Referimo-nos à autoridade que seguimos por medo de nos vermos sós, medo de firmar-nos sobre nossas próprias pernas; de não contarmos com ninguém para termos uma norma de vida, de conduta, ou clareza interior. Porque essa espécie de autoridade gera o menosprezo, gera a inimizade e a divisão entre os homens. O homem que busca a verdade não reconhece autoridade nenhuma, em tempo algum, e esse estar livre da autoridade é para nós uma das coisas mais difíceis de compreender, não só no mundo ocidental mas também no Oriente, porque pensamos que alguém pode pôr em ordem a nossa vida — um salvador, um mestre, um instrutor espiritual, etc. — coisa inteiramente absurda. Só mediante nossa própria clareza, nossa própria investigação, percebimento, atenção, começaremos a aprender todos os fatos relativos a nós mesmos; e desse aprender, dessa autocompreensão, vem a liberdade e a ordem e, por conseguinte, a virtude.
Assim, a percepção de que devemos estar inteiramente sós vem quando começamos a compreender-nos. O autoconhecimento é a base da sabedoria, e a sabedoria vem sempre só, pois não pode ser adquirida por meio de livros e de citações alheias. A sabedoria é algo que tem de ser descoberto por cada um, e não constitui um resultado do saber. O saber e a sabedoria não andam juntos. Surge a sabedoria na madureza do autoconhecimento. Sem autoconhecimento, não é possível a ordem e, por conseguinte, não há virtude.
Agora, aprender a respeito de si mesmo e acumular conhecimento acerca de si são duas coisas diferentes. Prestai um pouco de atenção. Espero que aqui não estejais a seguir-me ou meramente a aceitar o que estou dizendo, pois estamos investigando e descobrindo em cooperação. Estamos viajando juntos e, por conseguinte, estais tão vigilantes como o orador, trabalhando tão intensamente como ele, e isso significa que pesquisamos juntos.
Aprender e acumular conhecimentos são duas coisas diferentes. A mente que adquire saber jamais aprende. O que faz é só isto: acrescenta a si própria informações, experiência, na forma de conhecimento, e do fundo constituído por tais acumulações ela “experimenta” e, por conseguinte, nunca está realmente a aprender, porém a tornar-se mais sabedora, a adquirir mais e mais.
Aprender é sempre do presente ativo, não conhece o passado. No momento em que dizeis “Aprendi isso” — “isso” já se tornou conhecimento e, com esse fundo de conhecimento, podeis continuar a acumular, a traduzir, mas não continuareis a aprender. Só a mente que não está adquirindo, porém sempre aprendendo, poderá compreender, em todos os seus aspectos, essa entidade que chamamos EGO. Tenho de conhecer a mim próprio, a estrutura, a natureza, o significado da entidade total; mas tal não é possível se estou repleto de conhecimentos e experiência previamente adquiridos, ou se minha mente está condicionada, porque, então, não estou aprendendo, porém, meramente, interpretando, traduzindo, olhando com olhos empanados pelo passado.
Há, pois, enorme diferença entre saber e aprender. O saber tolhe a mente, ao passo que o movimento do aprender a liberta. Tenho de aprender continuamente sobre minha pessoa porque o que eu sou é uma entidade extraordinária, viva. A todo instante ocorre uma mutação, uma grande variedade de sugestões, de reações, e tudo isso tenho de observar, de aprender. Mas, se estou observando com a experiência e os conhecimentos previamente adquiridos, não estou aprendendo. Espero que isso esteja mais ou menos claro.
O aprender a respeito de si mesmo — não só as próprias reações fisiológicas e todas as compulsões e exigências biológicas, mas também o movimento interior do próprio pensamento — é necessário, para que se possa estabelecer a ordem. Só então pode começar a meditação. Como sabeis, há uma enorme quantidade de livros sobre meditação, e uma multidão de instrutores e indivíduos sagazes que têm escrito sobre como meditar, o que fazer. Não sei se estais interessados nisto. Se não, deveis estar, porque desconhecer o significado da meditação é a mesma coisa que ter só um braço ou nenhum. A maioria de nós anda em busca do misterioso, porque percebemos que nossa vida tem muito pouco sentido e significação. A rotina de freqüentar um escritório, de fazer e tornar a fazer, interminavelmente, uma certa coisa agradável ou desagradável, o incessante ajustamento a um dado padrão - tudo se nos torna cansativo e, por conseguinte, tratamos de buscar algo de misterioso, algo de extraterreno, de um outro mundo. Pensamos, pois, que, com isso que chamamos “meditação” — e que é uma das invenções da Ásia — encontraremos essa coisa extraordinária, uma realidade não construída pela mente.
Ora, muito importa compreender o que é meditação, por que na verdadeira meditação há grande beleza, uma grande intensidade, e só a mente que medita sabe o que é o amor. Ordinariamente não sabemos o que é o amor. Conhecemo-lo em relação com o prazer, mas não conhecemos a natureza do amor que não nasce do prazer. Isto é, quem quer que o observe, percebe que o amor, tal como o conhecemos, está sempre relacionado com o prazer: o prazer físico, o prazer de ter companhia, o prazer da associação, o prazer que se experimenta em amar a outrem, amar a pátria, etc., etc.
Ora, o prazer, como há dias assinalei, é produto do desejo; mas há uma ligeira, uma sutil diferença entre desejo e prazer. Não sei se já notastes, por vós mesmos, que, quando surge o desejo, o pensamento lhe dá continuidade. Vejo algo belo — uma casa, um carro, o que quer que seja — e verifica-se a reação do desejo; e o pensamento dá então continuidade ao desejo, que é prazer. Olho uma árvore, ou pessoa, e daí provém uma reação normal, saudável, sã. Mas, o que dá continuidade, duração a essa reação, é o pensar nela; por conseguinte, pensar no desejo é prazer. E a continuidade do desejo, como prazer, nega obviamente o amor.
Outrossim, para estabelecermos a ordem interior necessitamos de atenção e de um percebimento de quanto se passa, a cada momento, dentro de nós — sem rejeitar, sem fugir, porém simplesmente percebendo tudo, sem escolha.
Há enorme diferença entre atenção e concentração. Quando estais concentrados, vossa mente está totalmente focada numa determinada coisa, e quando a pessoa tem muita prática a tal respeito, pode erguer uma muralha que não deixa nada mais entrar. A concentração é exclusão, resistência e, por conseguinte, uma contradição, ao passo que a atenção é um estado de percebimento, portanto coisa muito diferente. Sabeis o que significa estar atento, cônscio? Estamos cônscios das dimensões deste salão, cônscios de sua deselegância ou desproporções; estamos cônscios dos presentes, das cores de seus trajes; cônscios do que se está passando exteriormente. Mas, não estamos verdadeiramente cônscios, se dizemos: “Não gosto daquela pessoa, daquela cor” — porque então detivemos o movimento do percebimento. Temos de estar cônscios do lugar, das cores, etc., sem nenhuma escolha. Estamos então aprendendo muito mais, nossa mente se acha muito mais ativa.
Do percebimento exterior e, por assim dizer, transportada por essa vaga, a mente começa a tornar-se cônscia interiormente. Observai a vós mesmos, o movimento de vosso próprio pensamento, notai como ele está condicionado, percebei sua natureza, sua sutileza, seus antecedentes (background). Se vos concentrais nisso, não podeis observar. Se tomamos um segmento isolado da totalidade e tentamos aprender alguma coisa a respeito desse segmento, vemo-nos num estado de contradição. Mas se, exteriormente, a mente se acha cônscia, sem escolha, e começa a mover-se para o interior, então desse percebimento, em que não há escolha, provém, naturalmente, a atenção.
Quando estamos atentos a uma coisa — como talvez estejais agora ao que se está dizendo — estamos atentos com todo o nosso ser, não é exato? Estamos completamente cônscios, completamente atentos — com nosso corpo, nossos nervos, nossos olhos, nossos ouvidos, nossas emoções, nosso intelecto. Nesse estado de atenção, não existe nenhuma entidade que está atenta: só há atenção. Não estou falando grego ou dizendo coisas fantásticas. Trata-se de uma coisa muito simples, quando a fazemos realmente. Havendo concentração, que é um processo de exclusão, há também resistência e, por conseguinte, contradição. Mas, quando há atenção, nenhuma contradição existe, porque a mente atenta é capaz de concentrar-se sem nada excluir. Essa atenção não é um estado passível de desenvolver-se através do tempo; pois, como já acentuei, o tempo gera a desordem.
Se eu adio a ação, se digo que amanhã mudarei, entre agora e amanhã haverá pressões, influências e movimentos, de toda espécie. Por conseguinte, o tempo não produz a ordem. Só no momento imediato pode haver ordem, e não por meio do tempo. Só é possível a ordem quando se compreende toda a estrutura e natureza do tempo.
Tendes pois de compreender a estrutura externa da vida, estar em comunhão com ela, para, então, passardes do exterior para o interior, a psique, aquele feixe de memórias que sois vós mesmos, com todos os vossos condicionamentos, vos sas tradições, esperanças, temores, desesperos, ânsias; e, para percebermos essas coisas, a elas estarmos atentos e, por conseguinte, dissolvê-las, não necessitamos do tempo. Quando assim procedemos, nossa mente se torna penetrante, clara, sutil, porque já não existe nenhuma contradição, nenhum esforço para ser ou “vir a ser”. Contradição significa esforço. A mente que forceja para ser isto ou aquilo acha-se num estado de confusão; e todo e qualquer esforço que faça a fim de esclarecer-se, aprofundar-se, só produzirá mais escuridão, mais confusão.
Esse processo total é meditação.
Para a maioria de nós, a beleza é um estímulo, uma reação. Dependemos de um estímulo para sentir ou ver a beleza. Dizemos “Que belo crepúsculo!”, ou “Que belo edifício!” — Mas, há uma beleza que não é estímulo nem resulta de nenhum estimulante, e essa beleza não pode existir sem uma grande simplicidade. A simplicidade não depende do muito ou do pouco que temos, porém se torna existente quando há a clareza do autoconhecimento, do aprendermos a respeito de nós mesmos; e essa simplicidade constitui a natureza da humildade, que é austeridade.
Tudo isso é necessário para podermos ultrapassar as limitações da mente. Ora, quem é a entidade que as ultrapassa? Como disse, quando estamos intensamente cônscios, intensamente atentos, nenhuma entidade existe. Fazei isso, uma vez — espero que o estejais fazendo agora — para verdes a exatidão do que estou dizendo. Se estais inteiramente atentos ao que digo, só há audição e não existe nenhum “eu” a escutar a palavra. Quando a mente está interiormente atenta, e alcançou esse estado de atenção completa mediante a compreensão externa da natureza da palavra, não há então nenhuma entidade que diz “Ultrapassarei a palavra.”
Se estamos atentos, há um grande silêncio em nosso interior, não é verdade? Quando estais de fato escutando o que se está dizendo, com todo o vosso ser — sem aceitar, sem traduzir, sem rejeitar, sem tentar compreender, porém simples mente atentos — vossa mente se acha então extraordinariamente quieta, não é exato? Há um silêncio que não é artificial, que não foi criado pela vontade, pelo esforço. Vem esse silêncio quando se compreendeu toda a estrutura do EGO, e, onde há silêncio, há espaço. A mente que está em silêncio, que tem espaço — só ela conhece a beleza que não é estímulo.
Esse processo, todo inteiro, é meditação.
Krishnamurti
O Descobrimento do Amor – Cultrix – Páginas 47 à 55
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