terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

KRISHNAMURTI EM CARMEL - parte 2


Entrevista concedida por Krishnamurti ao escritor inglês Rom Landau, na cidade de Carmel, Estados Unidos.

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No encontro seguinte não pensamos mais em andar e fomos diretamente para o nosso local, à sombra dos pinheiros, no alto do outeiro. Que lugar ideal para conversarmos! Nem uma só alma humana passava ali durante o dia, e a vista era maravilhosa. O único ruído era o das ondas quebrando-se de encontro aos rochedos. Já não me sentia intimidado pelos assuntos sobre os quais julgava ser meu dever interrogar Krishnamurti; sabia poder falar-lhe abertamente acerca de qualquer coisa; e senti haver chegado o momento de interrogá-lo sobre assuntos sexuais.

A vida na Inglaterra ensinara-me a considerar o sexo como assunto de muito menor importância do que eu julgara nos dias em que vivera no Continente. Aprendera a tratar as questões sexuais como tratamos os parentes mais pobres, ou como fazia a sociedade do tempo da rainha Vitória em relação às pernas das mulheres: fingindo que elas não existiam ou nunca se referindo a elas. Tal atitude pode oferecer uma solução temporária e é, sem dúvida, de valor prático em todas as circunstâncias mais convencionais da vida. Não resolve, porém, o problema essencial. Não traz felicidade, nem liberta todas aquelas forças que o sexo, adequada e honestamente expresso, deve criar. A hipocrisia, ou melhor, o fingimento em assuntos sexuais, pode ser louvável em face de certos aspectos necessariamente superficiais da vida de uma comunidade; mas a hipocrisia nunca será mais que um simples meio de fuga - de nos furtarmos a enfrentar a realidade. A hipocrisia esconde o sexo por detrás de centenas de anteparos, cada um dos quais capaz de ocultá-lo apenas durante curto espaço de tempo, sem nada fazer para resolver o problema essencial, que permanece. Entre as pessoas que encontram a satisfação sexual num perfeito amor, o problema do sexo não existe, mas essas pessoas são poucas. A maioria não é capaz de regular seus impulsos de maneira satisfatória. Ouçamos os casos dos tribunais policiais de qualquer país; perguntemos a nossos amigos médicos; peçamos a nossos amigos casados e não casados que nos digam toda a verdade sobre si mesmos, falemos seriamente com educadores - e descobriremos esta triste verdade.

Perguntei a Krishnamurti se ele julgava condenável que as pessoas fortemente sexuadas cedessem a seus instintos. "Nada é condenável se resulta de algo que esteja realmente dentro de nós", foi sua resposta. "Atenda a seu instinto, se ele não foi instigado por estimulantes superficiais e o consome interiormente - e, assim, não haverá problema sexual em sua vida. Só se cria o problema quando alguma coisa dentro de nós, real, encontra oposição por parte de considerações intelectuais".

“Mas certamente não são apenas considerações intelectuais que levam muitos a julgarem errada a satisfação de uma forte necessidade sexual, mesmo se ela é tão forte que não possa ser suprimida.”

"A supressão nunca resolve um problema. Nem a autodisciplina o faz. Isto é apenas substituir um problema por outro".

“Mas, como espera você que milhões de pessoas, escravas do sexo, resolvam o atrito entre suas necessidades e esse senso judicioso que tenta impedi-las de satisfazerem esses desejos? Na Inglaterra é muito menor o número de pessoas dominadas pelo sexo, mas vejamos esse país, a América do Norte; ou a maioria dos países da Europa; consideremos muitas das nações orientais - para elas suas necessidades sexuais são um grave problema.”

Notei uma expressão de ligeira impaciência na fisionomia de Krishnamurti. "Para mim este problema não existe", disse ele; "afinal, o sexo é uma expressão do amor, não é? Eu pessoalmente extraio tanta alegria do contato da mão de uma pessoa de quem eu goste, quanto qualquer outro de suas relações sexuais."

“E que diz das pessoas comuns que não alcançaram o seu grau de maturidade, ou outro qualquer nome que se lhe dê?”

"Para começar, cumpre que todos considerem o sexo nas suas justas proporções. O que domina os homens, hoje em dia, não é tanto o sexo como necessidade vital interior, mas, sim, as imagens e os pensamentos relativos ao sexo. Toda a nossa vida moderna é propícia a eles. Olhemos ao redor de nós. Dificilmente abrimos um jornal, viajamos no "metrô", ou passamos por uma rua sem encontrar anúncios e cartazes que tentem nossos instintos sexuais para louvar um par de meias, uma nova pasta de dentes ou uma certa marca de cigarros. Creio que jamais houve tantas moças seminuas figurando entre as páginas dos jornais e das revistas como atualmente. Em todas as lojas, cinemas e cafés, as ascensoristas, empregadas e vendedoras estão preparadas, enfeitadas como mulheres perdidas para tentarem nossos instintos sexuais. Elas mesmas não têm consciência disso, mas suas roupas curtas, pernas expostas, rostos pintados, penteados extravagantes, o constante atrativo físico que são obrigadas a exercer sobre o freguês, nada mais fazem senão estimular nossos instintos sexuais. Oh! É brutal, simplesmente brutal! O sexo foi rebaixado ao papel de servo de comerciante sem imaginação. Se alguém resolve editar uma nova revista, em vez de recorrer à sua imaginação para organizar uma capa interessante e atrativa, o que faz é apenas publicar a fotografia colorida de uma moça com os lábios semi-abertos, escondendo sugestivamente o seu peito e parecendo uma perfeita prostituta. Estamos sendo constantemente atacados, e já não sabemos se se trata de nossa própria necessidade sexual ou de vibração sexual produzida artificialmente pela vida ao redor de nós.Este apelo degradante, enfático, a nosso instinto sexual é um dos mais detestáveis sinais de nossa civilização. Tire-se isto e a maior parte da chamada necessidade sexual desaparecerá".

"Não sou um moralista", acrescentou Krishnamurti depois de uma pausa, "Nada tenho contra o sexo, e sou contra a supressão do sexo, a hipocrisia sexual e mesmo o que se chama autodisciplina sexual, que nada mais é que uma forma específica de hipocrisia. Mas acho censurável que o sexo seja diminuído, introduzido em todas essas formas de vida às quais ele não pertence".

“Não obstante, Krishnaji, seu mundo sem essa excessiva atração sexual só seria encontrado no País da Utopia. Estamos tratando do mundo como realmente é, e como provavelmente ainda será no futuro, muito tempo depois que você e eu tenhamos desaparecido.

"É possível, mas isto não me interessa. Não sou um médico; não posso prescrever meros remédios; cogito única e simplesmente da verdade espiritual fundamental. Se você deseja remédios e métodos parciais, procure um psicólogo. Só posso repetir que se nos reajustarmos de maneira que permitamos que o amor se torne um sentimento onipresente no qual o sexo seja uma expressão de genuína afeição, todos os cruéis problemas do sexo deixarão de existir".

Levantou o olhar durante alguns segundos, dando depois profundo suspiro. "Ah! Se vocês, homens, fossem capazes de compreender que estes problemas não existem na realidade, e que são apenas vocês que os criam, e que os têm de resolver! Não o posso fazer para vocês - ninguém sincero e fiel à verdade o pode. Só me preocupo com a verdade espiritual e não com o charlatanismo espiritual" - Tinha a voz cheia de desilusão; parou e deitou-se no chão.

Comecei a compreender o que Cristo queria dizer quando falava no seu amor a todos os seres humanos, sem distinção; que todos os homens são irmãos. Realmente, o sentimento onipresente do amor (no qual o sexo se tornasse sem importância, sem, porém, ser eliminado) parecia a única forma de amor digna de um ser humano amadurecido e consciente. Não obstante, eu me perguntava se o próprio Krishnamurti teria chegado a esse estágio de percepção da vida no qual o amor pessoal tivesse sido substituído pelo amor universal, quando todos os seres recebessem igual afeição.

“Você não ama algumas pessoas mais que outras?, perguntei-lhe. Afinal, mesmo uma pessoa como você tem de ter suas preferências sentimentais.”

Krishnamurti tinha a voz tranqüila quando recomeçou a falar. "Para responder satisfatoriamente à sua pergunta, tenho antes de aludir a um ponto. Do contrário, você não poderá aceitar o que lhe vou dizer no espírito em que lhe é apresentado. Quero que saiba que estas palestras são tão importantes para mim quanto talvez o sejam para você. Não lhe falo simplesmente para satisfazer à curiosidade de um autor que está escrevendo sobre mim ou para auxiliá-lo pessoalmente. Falo principalmente para esclarecer muitas dúvidas para mim mesmo. Considero esta uma das grandes vantagens da conversação. Não pense, pois, que eu jamais diga alguma coisa na qual não creia de todo o coração. Não estou tentando impressioná-lo, convencê-lo, ou ensinar-lhe algo. Ainda que você fosse meu mais antigo amigo ou meu irmão, falaria de igual maneira. Digo tudo isto por desejar que você aceite minhas palavras como simples exposição de minhas opiniões e não como tentativas de convertê-lo ou persuadi-lo. Você acaba de interrogar-me sobe meu amor pessoal, e minha resposta é que já não conheço isto. Para mim, o amor pessoal não existe. Considero o amor um constante estado interior. Não me importa que esteja agora com você, com meu irmão ou com alguém inteiramente estranho - tenho o mesmo sentimento de afeição para com todos. Há quem pense, às vezes, seja eu superficial e frio, ser meu amor negativo e não bastante forte para concentrar-se numa só pessoa. Não é indiferença, mas simplesmente um estado de amor constante dentro de mim e que não posso impedir-me de dar a todos com quem entro em contato". Parou durante um segundo, sem saber se eu acreditava nele, e depois disse: "Várias pessoas ficaram escandalizadas com minha maneira recente de agir depois da morte da Sra. Besant. Não chorei, não me mostrei triste, porém sereno; continuei a minha vida habitual e disseram que eu era despido de todo sentimento humano. Como poderia fazê-las compreender que, dedicando meu amor a todos, nunca me sentiria afetado pelo desaparecimento de um indivíduo, mesmo que se tratasse da Sra. Besant? O sofrimento já não atinge aquele para quem o amor se tornou a base de todo o ser".

“Mas deve haver pessoas na sua vida que nada signifiquem para você ou de quem até desgoste.”

Krishnamurti sorriu: "Não há ninguém de quem eu desgoste. Não percebe que não sou eu que dirijo meu amor para uma pessoa, fortalecendo-o aqui, enfraquecendo-o ali? O amor está simplesmente aí como a cor de minha pele, o som de minha voz, faça eu o que fizer... Tem, portanto, de achar-se aí mesmo quando estou rodeado de indivíduos que não conheço ou de pessoas que nada "deveriam" significar para mim. Às vezes sou forçado a estar no meio de gente barulhenta, que não conheço; num comício, numa conferência, ou talvez numa sala de espera de alguma estação, onde a atmosfera está cheia de barulho, de fumo, de cheiro de tabaco e de várias outras coisas que me afetam fisicamente. Mesmo nessas ocasiões meu sentimento de amor a todos é tão forte quanto o é sob este céu, neste lindo local. Pensam muitos que sou presunçoso quando lhes digo que a dor e a tristeza e até a morte não me atingem. Não é presunção. O amor que me torna assim é tão natural que fico sempre surpreendido quando me interrogam sobre ele. E não sinto esta unidade apenas com os seres humanos. Sinto-a com as árvores, com o mar, com o mundo todo ao redor de mim. As diferenciações físicas já não existem para mim. Não falo de imagens poéticas, falo da realidade."

Quando Krishnamurti se calou, seus olhos brilhavam e havia nele aquela qualidade específica de beleza que costuma parecer sentimental ou artificial quando descrita em palavras e que, no entanto, é tão convincente quando encontrada na vida real. Não era magnetismo que parecia irradiar de sua pessoa, mas antes uma iluminação interior, difícil de ser definida, que se manifesta como pura beleza. Eu experimentava aquela sensação que costumamos sentir quando nos defrontamos com fortes impressões da natureza. Somente quando alcançamos o topo de uma montanha, ou a doce brisa do início da primavera, com a promessa de narcisos e matas cerradas, podemos talvez passar por esses estados de contentamento puro.

(Do livro de Rom Landau “God is my Adventure”, tradução de Marina Brandão Machado).

Publicado pela ICK, em 1982 no Boletim CARTA DE NOTÍCIAS nº1


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