Pergunta: No meu entender, afirmais que o estado de potência criadora é uma embriaguez difícil de deixar. Entretanto, falais freqüentemente da pessoa que cria. Quem é ela, senão o artista, o poeta, o arquiteto?
Krishnamurti: O artista, o poeta, o arquiteto é necessariamente criador? Ele não é também lascivo, mundano, ansioso de prosperidade? Não está, assim, contribuindo para o caos e as misérias do mundo? Não é responsável pelas suas catástrofes e sofrimentos? Ele o é, quando ambiciona a fama, quando é invejoso, quando é mundano; quando os seus valores são dos sentidos; quando é apaixonado. A circunstância de possuir um certo talento faz o artista criador.
Criar é coisa infinitamente, superior à mera capacidade de expressão. A simples expressão de efeito feliz, e os aplausos que suscita, não representam, por certo, manifestações da atividade criadora. Prosperar, neste mundo, significa ser deste mundo — o mundo da opressão, da crueldade, da ignorância e da malevolência. Não o achais? A ambição produz resultados, sem dúvida, ma não acarreta infelicidade e confusão, tanto para o que a realiza como para seu semelhante? O cientista, o arquiteto, podem haver trazido certos benefícios, mas não é certo que têm também trazido destruições e desgraças inenarráveis? É criar, isso? É criar, atiçar o homem contra o homem, como o fazem os políticos, os governantes, os sacerdotes.
A potência criadora surge quando estamos livres da servidão do anseio, com o seu conflito e seus pesares. Pelo abandono do “eu”, com sua positividade e crueldade, com suas lutas incessantes por vir a ser, surge a Realidade criadora. Na beleza de um pôr de sol ou de uma noite calma, já não sentistes uma alegria intensa e criadora? Num momento desses, estando o “eu” temporariamente ausente, ficais suscetíveis, abertos à Realidade. Essa é uma ocorrência rara, não buscada, independente de nossa vontade, mas o “ego”, havendo-a provado uma vez, em toda a sua intensidade, quer continuar a deleitar-se com ela, e por isso começa o conflito.
Todos nós temos conhecido momentos de ausência do “eu”, sentindo, em tais momentos, o extraordinário êxtase de criar, mas, em vez desses instantes raros e fortuitos, não será possível efetivarmos o verdadeiro estado no qual a Realidade é o eterno ser? Se buscais com diligência aquele êxtase, poderão, dessa atividade do “ego”, advir certos resultados, que não serão, entretanto, aquele estado que nos vem com o pensar e a meditação corretos. As tendências sutis do “ego” devem ser conhecidas e compreendidas, porquanto com o autoconhecimento vem o pensar e a meditação corretos.
O pensar justo vem no fluir constante da auto-vigilância, vigilância tanto das ações mundanas como das atividades meditativas. A potência de criar e o êxtase que a acompanha surgem na liberdade, no estar livre do anseio. E isso é virtude.
Krishnamurti – Do livro: O Egoísmo e o Problema da Paz – Editora ICK – 1949