sábado, 13 de novembro de 2010

Educar o educador: abandonar o idealismo no ensino

Este artigo apareceu na revista Parábola, edição de outono de 2000. O encontro aqui registrado ocorreu em Bombaim, Índia, no dia 13 de março de 1948. Embora aberto ao público, destinava-se em primeira instância aos educadores e professores. As perguntas levantadas e as respostas a elas têm a mesma relevância hoje como em 1948.

Através do mundo todo vem se tornando cada vez mais evidente que o educador precisa se educar. Não se trata de educar a criança, mas antes o educador porque ele precisa disso muito mais do que o estudante. Afinal de contas, o estudante é como uma planta tenra que requer orientação, ajuda; mas se o ajudante é ele próprio incapaz, estreito, intolerante, nacionalístico e tudo mais, naturalmente o seu produto será o que ele é. Assim, parece-me que a coisa mais importante não é tanto a técnica do ensinar, mas a inteligência do próprio educador.

Em todo o mundo, a educação tem falhado, porque produziu as duas mais colossais e destruidoras guerras da história. Desde que ela falhou, substituir meramente um sistema por outro parece-me completamente fútil, mas se existe a possibilidade de mudar o pensamento, o sentimento e a atitude do professor, então, talvez possa haver uma nova cultura, uma nova civilização. Em meio a todo este caos, miséria, confusão e luta, seguramente a responsabilidade do professor - seja ele um empregado do governo, um instrutor religioso ou apenas um professor de informação - é extraordinariamente grande.

Assim, nosso problema não é tanto a criança - o menino ou a menina - mas o professor, o educador. E educar o educador é muito mais difícil do que educar a criança, porque o educador já está conformado e fixado. Ele funciona dentro de uma rotina porque não está realmente preocupado com o processo do pensamento, com o cultivo da inteligência. Ele está somente fornecendo informação e o homem que simplesmente dá informação quando o mundo todo está desabando à sua volta seguramente não é um educador. Isto significa que a educação é um meio de vida? Encará-la como um meio de vida, explorar as crianças em proveito próprio parece-me contrário ao propósito real da educação.

É possível proporcionar o ambiente certo, as ferramentas necessárias e tudo mais, porém o importante é o educador descobrir o que significa toda esta existência. Porque vivemos, lutamos, educamos, porque existem guerras, discórdia permanente entre homem e homem? Estudar todo este problema e pôr nossa inteligência em ação é seguramente a função de um verdadeiro mestre.

O professor que não pede nada para si mesmo, que não usa o ensino como meio de adquirir posição, poder ou autoridade; o professor que está realmente ensinando não para o lucro, não segundo uma certa linha, mas que está se dedicando, crescendo, despertando a inteligência na criança porque está cultivando a inteligência em si mesmo - tal professor tem o lugar principal na civilização. Afinal todas as grandes civilizações têm estado baseadas em professores, não em engenheiros e técnicos. Os engenheiros e técnicos são absolutamente necessários, mas aqueles que despertam a inteligência moral e ética são obviamente de primordial importância. Eles só podem ter integridade moral, estar livres do desejo de poder, posição e autoridade quando não pedem nada para si mesmos, quando estão além e acima da sociedade, não estão sob o controle dos governos e são livres da compulsão da ação social que é sempre ação segundo um padrão.

O professor precisa estar além dos limites da sociedade e de suas exigências para ser capaz de criar uma nova cultura, uma nova estrutura, uma nova civilização; mas atualmente estamos apenas preocupados com a técnica de como educar um menino ou uma menina sem cultivar a inteligência do professor - o que me parece completamente fútil. Estamos agora principalmente preocupados aprender uma técnica e aplicar esta técnica à criança e não com o cultivo da inteligência, que a ajudará a lidar com os problemas da vida.

Quando respondo estas questões, espero que tenham paciência comigo se não entrar em detalhes e sim lidar primariamente não com a técnica, mas com a abordagem correta do problema.

Interlocutor. Que papel pode a educação desempenhar na presente crise mundial?

Krishnamurti: Encarando tanto as causas quanto as conseqüências da guerra, da atual crise social e moral, naturalmente começamos a perceber que a função da educação é criar novos valores, não meramente implantar os valores existentes na mente do aluno, que simplesmente o condiciona sem despertar sua inteligência. Mas quando o próprio educador não enxergou as causas do presente caos, corno pode ele criar novos valores, despertar a inteligência, impedir as novas gerações de seguir os mesmos passos, que levam em última instância a novos desastres? Seguramente é importante para o educador não simplesmente implantar certos ideais e transmitir apenas informação mas empenhar todo o pensamento, todo o cuidado, toda a afeição para criar o ambiente certo, a atmosfera certa, de maneira que quando a criança chegar à maturidade seja capaz de lidar com qualquer problema humano que surja. Assim, a educação está intimamente relacionada à presente crise mundial e todos os educadores pelo menos na Europa e na América, estão se dando conta de que a crise é conseqüência da educação errada. A educação só pode ser transformada educando o educador e não meramente criando um novo padrão, um novo sistema de ação.

Interlocutor: Os ideais têm lugar na educação?

Krishnamurti: Certamente não. Os ideais e o idealista em educação impedem a compreensão do presente. É um enorme problema tentar lidar com isto em cinco ou dez minutos; é um problema sobre o qual nossa estrutura inteira está baseada, isto é, temos ideais e educamos de acordo com estes ideais. Não é verdade que os ideais impedem a correta educação que é a compreensão da criança como ela é e não como deveria ser? Se quero entender uma criança não devo ter um ideal do que ela deveria ser. Para compreendê-la devo estudá-la como ela é. Colocá-la dentro da moldura de um ideal é meramente forçá-la a seguir um certo padrão, sirva-lhe ou não; e o resultado é que ela está sempre em contradição com o ideal ou então conforma-se tanto com ele que deixa de ser um ser humano e age como um mero autômato sem inteligência.

Portanto, não é o ideal um verdadeiro obstáculo para a compreensão da criança? Se você como pai realmente quer compreender seu filho você olha para ele através do véu de um ideal? Ou simplesmente o estuda porque tem amor no coração? Você o observa, observa seus humores, suas idiossincrasias. Porque existe amor, você o estuda. É somente quando não existe amor que há ideal. Observe-se e notará isto. Quando não há amor você tem estes enormes exemplos e ideais, através dos quais você força, compele a criança. Mas quando existe amor, você a estuda, observa e lhe dá a liberdade de ser o que é; você a orienta e ajuda, não em direção ao ideal, não de acordo com um certo padrão de ação, mas para fazê-la ser o que é.

Afinal, a função da educação é produzir um indivíduo integrado que é capaz de lidar com a vida inteligentemente - de maneira completa, não parcialmente como um técnico ou um idealista. Mas o indivíduo não pode ser integrado se estiver meramente perseguindo um padrão idealístico de ação. Obviamente os professores que se tornam idealistas são assaz inúteis. Ao observar verá que eles são incapazes de amor: têm corações duros e mentes áridas porque requer muito maior observação, maior afeição estudar e observar a criança do que forçá-la a um padrão idealístico de ação. Penso que meros exemplos que são outra forma de ideal, são também um estorvo à inteligência.

Provavelmente o que estou dizendo é contrário a tudo o que você acredita. Será preciso pensar sobre isto porque não é uma questão de recusa ou aceitação. É preciso penetrar nisto muito, muito cuidadosamente.

Interlocutor: É possível a educação na criatividade? Ou é a criatividade puramente acidental e, portanto nada pode ser feito para facilitar sua emergência?

Krishnamurti: Para formular de outra maneira a questão é se aprendendo uma técnica você será criativo, isto é, aprendendo a técnica de pintar você será um artista? A criatividade surge através da técnica ou a criatividade é independente da técnica? Você pode ir a uma escola e aprender tudo o que há para saber sobre pintura, sobre a profundidade da cor, a técnica de como segurar o pincel e tudo mais. Isto fará de você um pintor criativo? Ao passo que se você é criativo então tudo o que fizer terá a sua própria técnica. Uma vez fui ver um grande artista em Paris que não tinha aprendido uma técnica; ele desejava dizer algo e o dizia em argila, e também em mármore. A maioria de nós aprende a técnica, mas tem muito pouco a dizer. Negligenciamos, descuidamos a capacidade de descobrir por nós mesmos; temos todos os instrumentos da descoberta, mas não descobrimos nada diretamente. Assim, o problema é como ser criativo, o que engendra sua própria técnica.

Quando você deseja escrever um poema, o que acontece? Você o escreve. Se tem uma técnica, tanto melhor; mas se não tem, não importa: você escreve o poema e o deleite está no escrever. Afinal quando você escreve uma carta de amor, não está preocupado com a técnica, escreve com todo seu ser. Mas quando não há amor no seu coração você busca uma técnica, como colocar as palavras juntas. Se não ama você perdeu o principal. Você pensa que será capaz de viver feliz, criativamente, aprendendo uma técnica e é ela que destrói a criatividade - o que não significa que você não precisa dela. Afinal de contas quando se quer escrever um poema com beleza é preciso conhecer métrica e tudo mais. Mas se desejar escrevê-lo para si mesmo e não para publicar, então não tem importância: você escreve. Apenas quando se deseja comunicar algo a outro a técnica adequada é necessária, a técnica correta, para que não haja mal-entendido.

Mas seguramente ser criativo é um problema completamente diferente e requer uma extraordinária investigação de si mesmo. Não é urna questão de dom. Talento não é criatividade. Pode-se ser criativo sem ter talento. Assim o que queremos dizer com criatividade? Para penetrar nisto completa e profundamente é preciso entrar totalmente no problema da consciência. Afirmo que todos nós podemos ser criativos no verdadeiro sentido da palavra, não meramente produzir poemas e estátuas ou procriar. Certamente ser criativo significa estar naquele estado em que a verdade pode surgir. E a verdade pode surgir apenas quando se dá a completa cessação do processo do pensamento. Quando a mente está completamente quieta, sem estar compelida, forçada em direção a um certo padrão de ação; quando a mente está realmente quieta, não compelida, então, neste estado a verdade pode surgir. Esse estado é criação e criação não é para poucos, não é o talento ou o dom de poucos. Aquele estado criativo pode ser descoberto por quem quer que entregue a mente e o coração a estudar o problema.

Interlocutor. Quem você chamaria de professor perfeito?

Krishnamurti: Obviamente não o professor que tem um ideal, nem o que está tendo lucro em ensinar, nem o que construiu uma organização, nem o que é instrumento do político, nem o que está confinado a uma crença ou a um país. O mestre perfeito, certamente, é aquele que não pede nada para si mesmo, que não está preso na política, no poder, em posições, não pede nada para si mesmo porque interiormente é rico. Sua sabedoria não está nos livros, sua sabedoria está no experimentar e o experimentar não é possível se ele está buscando um fim. O experimentar não é possível para quem o resultado é mais importante que os meios; para aquele que quer mostrar que produziu muitos alunos que passaram brilhantemente nos exames e obtiveram mestrados e bacharelados de 1ª classe ou o que quer que seja. Obviamente como a maioria de nós quer um resultado, dedicamos escassa atenção aos meios empregados e, portanto nunca podemos ser professores perfeitos.

Um professor que é perfeito deve estar além e acima do controle da sociedade. Ele deve ensinar e não lhe dizerem o que ensinar, o que significa que ele não deve ter posição na sociedade, não deve ter autoridade na sociedade porque no momento em que tem autoridade ele é parte da sociedade e como a sociedade está sempre se desintegrando, um professor que é parte da sociedade nunca pode ser um mestre perfeito. Ele deve estar fora dela, o que significa não pedir nada para si mesmo; por conseguinte a sociedade deve ser tão esclarecida que suprirá suas necessidades. Mas nós não queremos tal sociedade nem tais professores. Se nós tivéssemos tais professores então a sociedade atual estaria em perigo. A religião não é crença organizada; a religião é a busca da verdade que não pertence a nenhum país, a nenhuma crença organizada, não está em nenhum templo, igreja ou mesquita. Sem a busca da verdade nenhuma sociedade pode existir por muito tempo e enquanto existir está fadada a produzir desastre.

Certamente o professor não é um simples distribuidor de informação; o professor é alguém que aponta o caminho para a sabedoria. E aquele que aponta o caminho para a sabedoria não é o guru. A verdade é muito mais importante que o professor; portanto quem está em busca da verdade deve ser simultaneamente estudante e professor. Em outras palavras você deve ser o perfeito professor para criar uma nova sociedade e para engendrar o perfeito professor você deve compreender a si mesmo. A sabedoria começa com o autoconhecimento e sem autoconhecimento a mera informação leva à destruição. Sem autoconhecimento o avião torna-se o mais destrutivo instrumento da vida, mas com autoconhecimento é um meio de ajuda humana. Assim o professor deve ser alguém que não está preso nas garras da sociedade, não joga o jogo do poder dos políticos, não procura posição ou autoridade. Ele descobriu em si mesmo aquilo que é eterno e por isso é capaz de compartilhar este conhecimento que ajudará outro a descobrir seus próprios meios de iluminação.

Esta plaqueta foi feita para ser presenteada aos educadores e professores do Brasil e de outros lugares do planeta.

Krishnamurti

Coordenação editorial: José de Souza Pinto Junior
Tradução: Heloysa Dantas
Revisão: Laerte João Magnanini e Angela Dantas
Digitação: Laura Dantas
Editado por: Gior Danus

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