(J. Upadhyaya, Professor Emérito da Universidade de Benares, um erudito em Budismo e sânscrito, já realizou importantes debates com Krishnamurti. Suas observações foram feitas através de um tradutor cujas palavras foram revistas para maior facilidade de leitura. Interjeições ocasionais que não seguem o fluxo do diálogo principal foram retiradas. "K" indica Krishnamurti, "JU", o Professor Upadhyaya, e há outros interrogantes.)
K - Senhor, ontem estivemos falando sobre um homem comum, bem educado, felizmente não muito educado, sem profissão especial. Ele começa a olhar o mundo como um grande rio que corre. Ao entrar no mar, esse rio está agitado, pois acumulou um grande volume de água nos últimos milhares de anos. A agitação, o conflito, a correnteza do delta, a totalidade do vasto rio entrando no mar, isso é o mundo. E ele sobe o rio. Ele não é, de modo algum, uma pessoa religiosa; apenas um homem comum a subir esse rio. E, subindo o rio, cada vez mais, subindo a montanha, ele chega ao ponto em que o rio nasce. Ele aprendeu várias técnicas, várias disciplinas, ciência, conceitos; esse rio é a totalidade da existência humana e ele chega à nascente desse rio numa alta montanha. Lá, o rio é muito pequeno e lá está ele após milhões de anos. Ele está sozinho lá em cima, cheio de si, e compreende que aquele rio todo é ele próprio, não num sentido teológico, teórico ou hipotético. O rio é como um funil, enorme no começo e muito pequeno no fim. Ele subiu esse vasto rio, foi subindo cada vez mais até onde brota e lá descobre que ele é o próprio rio. Ele é o mundo e o mundo é egoísta; todo esse movimento é egocêntrico. Esse é o fim do funil, pequeno e estreito.
Ali ele começa a investigar e lentamente descobre a vastidão do outro lado do funil, algo muito mais vasto do que o rio e ele não sabe como sair dali. Ele leu e as pessoas disseram que há uma coisa imensa além desse egoísmo. Ele nada sabe disso. Sendo um homem bastante cético, que duvida muito, ele vive cheio de dúvidas e questiona as suas próprias experiências, o seu próprio pensar, o seu próprio modo de viver. Ele nunca se disciplinou e isso é importante para ele. Nunca se disciplinou porque tem apenas seguido o rio desde o começo; partindo da foz, subiu o rio até a nascente, mas não fez disso uma disciplina. Ele atingiu a nascente, que é o egoísmo, e não sabe como ir além. Ficou parado ali.
Muitos instrutores, autoridades, cientistas já lhe disseram o que fazer, que ele se compõe de átomos, células, como o homem começou e evoluiu até o estado atual do cérebro, nesse tempo infindável. Ele aceita tudo isso porque é obviamente natural. Porém ele chegou a um ponto em que descobriu não existir autoridade espiritual alguma. Ele deixou tudo isso e subiu até a origem do rio e lá não existe guia, ninguém para ajudar. Ele descobre não haver ninguém que possa ajudá-lo espiritualmente, interiormente. Enquanto ele subia, tinha esperança de que alguém pudesse ajudá-lo, porém descobriu que não existe, para isso, uma única pessoa, nenhum guru, no céu ou em qualquer livro ou em qualquer filosofia. E lá está ele desarvorado, consciente de sua solidão, sem poder permanecer lá. Sente anseio de subir mais, porém não há mais para onde subir. Foi a esse ponto que ele chegou. Será que me expressei com clareza?
JU - O senhor descreveu tudo muito claramente, mas eu gostaria de perguntar se todo indivíduo que está nesse rio, nessa corrente, tem que permanecer assim, desamparado, ou será que ele pode evitar ser arrastado pela corrente e criar alguma coisa, uma ilha, na qual esteja seguro? Será que ele pode ficar livre da corrente?
Interrogante - Será que ele pode encontrar uma energia interior para permanecer nessa ilha sem ser arrastado pela corrente?
K - Senhor, conforme eu disse, o que está sujeito a revisão, ele está sempre em movimento, subindo o rio; não existe ilha alguma porque, movimentando-se, o próprio movimento lhe dá força. Ele esteve cercado pelo tumulto, pelo sofrimento, porém agora ele se movimenta para fora, subindo. Como dissemos ontem, não acredito nesse movimento de subir o rio. Subi o rio, observei todo o movimento em torno de mim e percebo que eu sou parte dele. Ontem dissemos que não sou diferente desse movimento. Eu sou esse movimento. Eu sou a humanidade. Não digo que é a humanidade e eu, porém, que eu sou a humanidade. Perambulei por toda parte e descobri isso. Enquanto subo o rio, o movimento cria a sua própria disciplina. O homem estático necessita de disciplina; mas, para o homem que está em constante movimento, subindo sempre o rio, não existe ilha alguma, exatamente porque está em movimento. Ele não deixa que se formem ilhas; talvez que invente ilhas e rochedos a que se agarrar, mas o rio o impede de fazer isso uma vez que ele percebe as conseqüências de proceder assim.
JU - No interior do homem existe o anseio de transcender essas tristezas e aflições sórdidas, de sair desse turbilhão de sofrimentos, porém ele nunca está fora disso. O homem não tenta sair dessa corrente porque é parte dela.
K - Senhor, foi assim que ele passou a sua juventude, na embocadura do rio, no sexo, no poder e tudo mais que ele vê como um hábito, um condicionamento, e sente-se saturado de tudo isso. Não lhe atribua qualquer espécie de motivo espiritual. Ele está exausto e entediado com toda essa brincadeira. Diante do tédio, da indolência, ele diz: "Por Júpiter, preciso sair disso." Não é que algo interior o esteja impelindo. Ele parte daí.
Interrogante - O senhor quer dizer que o tédio o impele para o alto?
K - Não, não estou dizendo isso. Ele apenas se movimenta para fora disso. Ele começa aí. Ele é tudo isso; ele quer sexo, poder e diz a si próprio: "Meu Deus, basta." Por que imputar-lhe uma coisa que ele vai rejeitar? Ele começa a se afastar daí. Ele quer saber onde o rio começa. Se ele quiser ficar lá, ele fica lá; mas ele está curioso para descobrir a origem do rio. Eis tudo. A grande maioria gosta de ficar na foz do rio. Gosta de drogas, sexo, poder, posição, conhecimento - não é assim?
Interrogante - Acho que ninguém nega isso. O que dizemos é que há alguma espécie de energia que o faz seguir o rio.
K - Curiosidade. Ele quer descobrir. Por que não sermos simples? Ele está curioso; ele quer saber. Ele já está farto de toda essa amolação e diz: "Meu Deus, estou saturado de tudo isso." O senhor não fica enfastiado de sexo depois de muito sexo? Desculpe.
JU - Senhor, qual é a origem do desejo sexual?
K - Biologicamente, é a procriação. Biologicamente, todas as glândulas estão preparadas para isso.
JU - Não concordo. Há um êxtase no qual ocorre o auto-esquecimento; isso é alegria.
K - Isso é sexo.
JU - Isso é sexo, mas, não, biológico e, sim, como fator psicológico; é um impulso que arranca o homem do movimento de...
K - Qual? Sexo?
JU - A ânsia pelo êxtase, pelo auto-esquecimento.
K - Um momento, senhor. Eu posso tomar uma droga e esquecer-me de mim próprio. Posso ir a um concerto e ouvir a Nona Sinfonia e esquecer-me completamente de mim próprio. Posso ir a um templo e praticar puja a fim de me esquecer de mim mesmo.
JU - Eu sou a humanidade. Tenho uma porção de coisas em comum com o homem, porém sou também um indivíduo.
K - Eu duvido disso.
JU - Eu sou a humanidade, mas com uma forma particular.
K - Já dissemos tudo isso ontem. Dissemos: "Eu sou a humanidade; eu sou a totalidade da humanidade." Não é isso? O homem passou por tudo - tristeza, prazer, dor, sexo, drogas. Ele passou por tudo isso e está saturado de tudo. Não lhe atribua qualquer estranho impulso interior. Ele está farto de tudo. Para ele isso não tem significado. Ele passou por isso. Esteve envolvido nisso. Ele praguejou, obedeceu e desobedeceu. Como está cheio de tédio - e estou usando a palavra tédio de propósito - ele começa a indagar: "Será a minha vida apenas este amaldiçoado tédio, este tédio sem sentido?" E ele começa a subir a corrente. Isso é muito importante. Ele está em movimento. Esse tédio é estático. Será que estou falando com clareza?
JU - É estático porque é apenas uma repetição?
K - Repetitivo, mecânico, habitual e tudo o mais. No momento em que ele se põe em movimento porque está entediado com tudo, percebe que o movimento não tem disciplina. É aí que vamos entrar em conflito com todos aqui. Enquanto houver movimento, não há disciplina. Ele está subindo a encosta porque...
Interrogante - Esse movimento vem por si próprio...
K - Isso mesmo.
Interrogante - Ele vem porque há tédio; não há lei, e um movimento sem lei é criativo, tem frescor; não está associado ao tempo.
K - Isso mesmo; o senhor compreendeu. Deixem-me terminar o que quero dizer e depois poderão atacar. Ele apenas começou. Ele está saturado de tudo, ele passou por tudo isso. Ele não é espiritualista, puro, nada disso. Ele começou aí, ficou entediado e tornou-se muito cético. Isso é importante. Ele é cético, cheio de dúvidas e questionador. Nada disso tem significado algum para ele e então ele se movimenta, naturalmente, não porque esteja buscando alguma elevação. Ele se movimenta e, nesse movimento, percebe as dificuldades do movimento, as dificuldades para sair disso. Então ele começa a indagar por que acha isso difícil. Falando em renúncia, diz: "Não quero saber de renúncia." Ele não acredita em renúncia. E acrescenta: "Compreendo agora por que tudo se tornou um hábito: sexo, drogas, buscar posição, estar preso à linguagem e ao conhecimento; tudo está aqui. Eu sou parte disso porque colecionei uma porção de lembranças e também porque sou casado, tenho filhos e vivo nessa confusão." E vem alguém para lhe dizer que faça isto e aquilo a fim de alcançar alguma coisa e ele responde: "Pelo amor de Deus, não quero o seu conselho." Entendem? Essa é a posição de um homem inteligente. Ele duvida de tudo - Buda, Cristo e todas as igrejas - e diz: "Pelo amor de Deus, não quero nada disso!"
Desse modo, ele está em movimento. E diz: "Estarei realmente em movimento? Ou ainda estou lá, simulando estar em movimento? Será que compreendi realmente tudo isso, o processo biológico, o papel psicológico, a função do cérebro, as reações físicas, a necessidade biológica, as glândulas? Estarei, de fato, em movimento, ou apenas fingindo estar em movimento?" E, ao fazer essa pergunta, ele se torna honesto, profundamente honesto, intensamente honesto, sem fingimento algum. Aí, então, começa a humildade. Com isso ele está movimentando-se, aprendendo, observando. Ele diz: "Não sou diferente da humanidade; sou tudo isso; mas estou vigilante." E, subindo e movimentando-se, diz: "Não existe disciplina para mim. Não aceitarei imposição alguma, qualquer esforço, nada. Já passei por tudo isso." Desse modo ele continua em movimento constante e o movimento é o seu próprio aprender, sem acumular conhecimento. E, ao chegar à origem do rio, ele diz: "Todo esse enorme esforço que fiz (a escalada física e, não, a psicológica) foi totalmente inútil porque aquilo que estava lá está aqui em cima também. De nada me adiantou subir; sou tão egocêntrico aqui quanto era lá." Isso é tudo.
JU - Depois de escutar essa parte final do que o senhor disse, compreendi o que o senhor quer dizer e compreendi também as limitações de minha compreensão, de meu entendimento. Ontem, começamos vendo como essa corrente está lá no delta. Não me interessa saber por que estou na corrente, ou se ela é eterna ou não. Só estou interessado numa coisa: que a corrente está aí e eu estou nela.
K - Mas o senhor é parte dessa corrente.
JU - Entretanto, estando na corrente, sinto necessidade de sair dela. Eu vou até aí.
K - Não; a corrente o deixa entediado?
JU - Não há desejo de sair dela, mas de ser transformado. Não estou interessado na origem da corrente; não me sinto inclinado a subir para descobrir.
K - Então fique onde está.
Interrogante - A corrente da qual o senhor falou é a totalidade do que sou?
K - Eu sou essa corrente.
Interrogante - Ele está tentando, de um modo ou de outro, reconhecer que ele está na corrente, mas que a corrente não é ele.
K - Isso é tudo.
Interrogante - Eu quero passar por uma transformação, quero sair da corrente. Isso também faz parte dela.
K - Eu não quero transformar-me. Não sei o que isso significa.
Interrogante - Foi o que eu disse. Não sabemos o que significa nada disso.
K - Senhor, eu sou isso. Eu não sou diferente disso, nem biológica nem psicologicamente, em nenhum sentido; átomos, células, tudo isso sou eu. E eu sou isso. Portanto, eu sou a humanidade. Para mim, isso tem, um enorme significado. Eu estou aí e pergunto "Será possível uma mudança qualquer?" Eu pensava que pudesse ocorrer uma mudança subindo a montanha e indo à fonte, porém verifico que ainda estou lá. Eu nunca saí de lá. Pensei que, subindo até a fonte, encontraria a explicação, porém essa explicação está lá; é o meu desejo e tudo mais; e lá, como aqui em cima, só há egoísmo. E vejo que; o egoísmo produziu uma terrível confusão, obviamente. Para ver isso não se precisa de muita penetração; pode-se ver que todos estão lutando uns contra os outros, as nações, e assim por diante. Então, observando isso, pergunto: "Será possível alguma mudança?" Não se trata de transformação. Transformação significa substituição de uma forma por outra. Não vou usar essa palavra, apesar de já tê-la usado. Assim, estou interessado na mudança. O que significa mudar? Disto para aquilo. Ou será que mudança é o fim? Mudar disto para aquilo implica tempo; portanto vou investigar o tempo. Portanto, posso perguntar: "Existirá alguma espécie de mudança?"
JU - O senhor quer dizer que existe um findar?
K - Um momento. O senhor é que está dizendo isso.
Interrogante - O senhor está dizendo que não existe mudança, findar ou qualquer outra coisa?
K - Não, o senhor está indo à minha frente. Afinal de contas, esse movimento e essa luta, o sofrimento, ouvir o mestre, mudar de mestre, trocar de gurus, obter mais conhecimento - cheguei a um ponto em que percebo que, se não houver uma mudança no seu modo de viver, o homem será destruído. Assim, eu me pergunto o que é,mudança. Mudança implica tempo e através do tempo, o homem jamais mudou. Por conseguinte indago se há mudança mesmo, ou apenas o findar. Findar significa morrer. Será que posso morrer, diariamente, para todas as coisas e não guardar nada do que ficou? Morro hoje para tudo que conheci; isso é morte. Então, indago se há continuidade ou simplesmente o morrer. E verei o que acontece. O homem que esteve lá chegou a esse ponto.
JU - Concordo com o senhor; portanto não há mudança; unicamente, o findar.
K - O senhor sabe o que significa isso?
JU – Sim, senhor, compreendi o que disse; mas na própria corrente existe a semente da continuidade porque a corrente é continuidade.
K - Não. A corrente é minha consciência, a consciência humana. Como eu sou a humanidade, eu sou essa consciência. E, se eu morrer para essa consciência, não estou mais nela. Não; não é – “eu não estar nela"; ela já não existe. Não sei como dizer isso.
JU - Senhor, existe uma continuidade da corrente da consciência que independe da minha ação de pôr fim a ela.
K - Senhor, essa consciência é tristeza, medo, avidez, inveja e assim por diante, o que é a essência do egoísmo. Ora, depois de viajar por todo esse caminho, desde a planície, cheguei a esse ponto. E pergunto se é possível a um ser humano, que é a totalidade da humanidade, sair dessa corrente. Eu sou essa corrente. Eu sou a humanidade. A Humanidade sofre, leva uma vida infernal e essa corrente continua porque, enquanto os seres humanos não tiverem saído dessa corrente, ela continuará. Enquanto a humanidade, que sou eu, estiver nessa corrente, ela continuará. Se essa "pessoa", que é a humanidade, sair dessa corrente, a corrente continuará, porém essa "pessoa", esse algo, estará fora da corrente. Portanto ela terá compaixão, inteligência. Então, isso age.
Interrogante - O senhor começou falando da corrente e dizendo que o senhor está na corrente. Como é que começa a subida?
K - Senhor, o homem é parte disso. Ele fica entediado; acaba cético e tudo mais, e reconhece ser esse tédio o destino de todos. Portanto, ele é todas as pessoas. A consciência de todos os seres humanos é a sua própria consciência e essa consciência vem desde o começo da existência humana. E ele pergunta se, algum dia, poderá sair dela. Não se trata de sair no sentido de "achar uma saída" ou "encontrar o nirvana". Ele indaga: "Será que posso sair dela? Poderá o ser humano dar um salto para fora dela, abandoná-la, não prosseguir mais na corrente?" Eis tudo! E qual é a dificuldade disso?
Interrogante - Eu sou a humanidade. E o que é que sai da corrente?
K - Nada. (Risos) Não, não é exatamente isso que quero dizer. Deixem-me explicar. Ele tem considerado isso como algo perpétuo, que é tempo. Posso usar a palavra "percepção interior", vislumbre, ver a totalidade da coisa como uma unidade, um movimento unitário que continua? Ele caminha supondo ser um movimento unitário e, de repente, percebe que não há nada. É isso que continua. Nada além disso. Nada. Nada no sentido de "nenhuma coisa". E a coisa é pensamento, que é um processo material. Então, ele diz: "Eis o fim do pensamento."
Interrogante - E nesse nada não existe dualidade entre o ego e...
K - Não. Apenas o nada. Ele passou por conflitos, passou pelo inferno; ele batalhou, lutou.
Interrogante - Findar e sair são a mesma coisa?
K - Eu cometo um erro quando uso,a palavra "sair". A corrente é o egoísmo. O egoísmo procura eternizar-se - seja o meu, seja o seu... a humanidade vive presa nele. E isso é pensamento. E agora isto: "Nada de movimento; quando não há movimento, estamos fora dele" - não, não é "fora dele" - "'há algo mais". Então, aparece K e diz que nunca esteve envolvido em ciúme, ansiedade, dor, sexo e tudo mais. É aí que eu quero chegar. Punditji, penso - estou usando a palavra "penso", desculpe-me se uso essa palavra - será que, a não ser biologicamente, podemos ter uma psique que nunca se transforme num centro? Compreende minha pergunta? No momento em que se vê isso, estamos livres disso, acabou.
JU - Por favor, explique isso um pouco mais.
K - Senhor, fazemos a idéia de uma senda, uma meta, uma realização. O caminho exige disciplina, controle, sacrifício, todo esse horror. Mas surge alguém como K e diz: "Não caia nessa tolice... Fique atento à natureza, observe todos os sentidos e veja como eles criam o ego, e assim por diante. Se perceber isso como um tremendo movimento, num relance estará fora disso. Nada de escalada, sacrifício, renúncia, disciplina, prática - tudo isso é enganoso! Não me sinto inclinado a isso; não quero praticar."
Interrogante - Será que o compreendi bem? O que o senhor diz é que tudo aquilo que estivemos descrevendo é a consciência.
K - Sim, foi o que dissemos.
Interrogante - Foi o que o senhor disse. Ora...
K - O que é parte do egoísmo.
Interrogante - Sim, é o ego.
K - Fiquemos aí; é o egoísmo.
Interrogante - Então, o que o senhor disse por último, se compreendo...
K - Veja a inutilidade.
Interrogante - O senhor estava dizendo, há pouco, que elimina o tempo disso. Na compreensão disso, não entra o tempo. No momento em que passa, termina.
K - E eu tenho dúvidas quanto a isso. Indago se não me estarei enganando a mim próprio. Portanto comecei duvidando de tudo e termino duvidando. O senhor está perdendo algo. Comecei questionando, duvidando e perguntando. Não, perguntando a alguém - apenas perguntando. E termino duvidando, questionando e perguntando. E deixo essa pergunta viva. Não digo: "Existe alguma resposta?" Essa pergunta destrói tudo.
Interrogante - Não há conclusão alguma?
K - Punditji, o senhor e eu mantemos um diálogo. O senhor faz uma pergunta e eu respondo a ela. Em seguida, o senhor responde a essa pergunta. E continuamos assim - perguntando e respondendo. Chegamos a um ponto em que a própria pergunta é a resposta. A própria pergunta é tão vital, que rompe...
Interrogante - Acho que ajudaria muito se o senhor descrevesse esse estado outra vez. O senhor mencionou, antes, que K duvida dele, que nunca o experimentou; mas ele duvida também da ausência de pergunta, da ausência de experiência. Depois ele disse que a pergunta permanece e que a pergunta é a resposta. Poderia acrescentar algo mais? Basta repetir a mesma coisa. Isso ajudaria.
K - Aparece K, um estranho homem vindo do misterioso Himalaia, e pergunta: "Para que passar por tudo isso - os Budas, Cristo, disciplina, sacrifício, renúncia, controle? Não faça isso. Há algo mais." Portanto veja como tudo isso é inútil. Quando realmente perceber quão profundamente inútil é isso e quando perguntar por que isso surgiu e ficar com a pergunta, não procure uma resposta; a própria pergunta desabrocha e fenece. Como uma flor. Se deixarmos a flor em paz e simplesmente a observarmos cuidadosamente, a flor desabrocha e fenece - e, então, não existe flor alguma - não há mais nada.
Interrogante - Posso ir mais fundo? Disso o senhor já falou; todos sabemos disso; já estivemos falando sobre a questão. Porém o senhor disse algo mais: que, mesmo depois de ver a totalidade dessa corrente, de investigá-la, de findar, o seu fluxo continua. A pergunta permanece.
K - Isso mesmo. Isso mesmo.
Interrogante - E é uma pergunta tão poderosa, tão importante...
K - Não é uma pergunta feita ao acaso. É o meu próprio sangue.
Interrogante - ... que, permanecendo, encerra uma carga explosiva que independe de mim; é como se libertasse...
K - Ela nada tem a ver comigo; é como um fogo queimando.
Madrasta, 13 de janeiro de 1985
(Do Boletim nº 50 da "Krishnamurti Foundation Trust Ltd.", Londres, 1986. Tradução de Cecília Guimarães Lisboa - Publicado na CARTA DE NOTÍCIAS - Julho a Dezembro de 1986, pela ICK).