quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Mente livre

(Paris V)

A mente religiosa difere sobremodo daquela que crê na religião. No sentido psicológico, a mente religiosa está livre da sociedade, livre também de todas as formas de crença, todas as formas de exigência de experiência e auto-expressão. O homem sempre criou, através das idades, um conceito a que deu o nome de “Deus”. Para o homem, a crença nesse conceito chamado Deus sempre foi necessária, porque vê que a vida é desgraçada, uma sucessão de batalhas, conflitos, aflições — com uma ocasional centelha de luz, de beleza, de alegria.
A crença num conceito, numa fórmula, numa idéia, se tornou necessária porque a vida pouco significa. A rotina diária, o emprego, a família, o sexo, a solidão, a opressão, o conflito da auto-expressão, são coisas insignificantes; e, no fim de tudo, a morte! Portanto, o homem tem de crer, a crença se lhe tornou uma imperiosa necessidade.

Conforme o clima e a capacidade intelectual dos inventores dessas idéias e fórmulas, estabeleceu-se o conceito de Deus, do Salvador, do Mestre, e o homem sempre tentou, por esse meio, alcançar um estado de suprema felicidade, de Verdade, a realidade de um estado mental inteiramente a salvo de perturbações. Os autores dessas idéias e conceitos estabeleceram um sistema ou caminho para ser percorrido a fim de alcançar-se aquela Realidade. E o homem tem torturado a sua mente — pela disciplina, o controle, a renúncia, a abstinência, a austeridade — inventando diferentes caminhos para aquela Realidade. Na Ásia, há muitos caminhos que conduzem à Realidade (pelo menos é o que se diz), conforme os temperamentos e as circunstâncias, e tais caminhos são seguidos para se alcançar aquela Realidade que não pode ser medida pelo homem, pelo pensamento.

No Ocidente, há um Salvador; só por meio dele pode achar-se aquela coisa suprema. Todos os sistemas do Oriente e do Ocidente implicam um constante controle, uma constante deformação da mente, a fim de ajustá-la ao padrão fixado pelo sacerdote, pelos livros sagrados, por todas essas coisas deploráveis que constituem a essência mesma da violência. Sua violência não consiste apenas em renunciar à carne, mas também em renunciar a toda forma de desejo, a toda forma de beleza, por meio do ajustamento a determinado padrão.

Têm-se registrado milagres, de certa natureza, tanto no Oriente como no Ocidente; mas, milagres são das coisas mais fáceis de operar. E os que realizam tais milagres são ungidos como santos; são homens que “bateram todos os recordes” de ajustamento a um padrão, expresso em sua vida diária. Têm eles muito pouca humildade, porque a humildade não pode ser exibida exteriormente; o cingir uma tanga, uma túnica, não é de modo nenhum um atestado de humildade. Como toda virtude, a humildade existe de momento em momento, não pode ser produto de cálculo, não pode ser estabelecida como um padrão para ser seguido.

Mas o homem, através das idades, sempre fez isso; o iniciador, aquele que por primeiro experimentou uma certa coisa chamada Realidade, estabeleceu um sistema, um método, um caminho, que o resto da humanidade ficou seguindo. Os seus discípulos, por meio de hábil propaganda e de ardilosas maneiras de cativar a mente humana, estabeleceram uma busca e um sistema de dogmas e rituais. E nessa rede o homem ficou emaranhado. Quem deseja descobrir aquilo que o homem está sempre a buscar deverá submeter-se a uma certa espécie de deformação, certa espécie de repressão, de tortura, a fim de alcançar aquela suprema beleza. Intelectualmente, pode-se perceber o absurdo que há em tudo isso; intelectualmente, percebe-se o absurdo de ter qualquer crença que seja, e a insensatez de qualquer ideologia. Intelectualmente, a mente poderá dizer que uma coisa é absurda e livrar-se dela; porém, interiormente, intimamente, está sempre a buscar, fora dos rituais, dos dogmas, das crenças, dos Salvadores, fora de todos os sistemas, que são óbvias invenções do homem. Vendo que seu Salvador, seus deuses, são invenções, pode um homem libertar-se deles com relativa facilidade. É o que está fazendo o homem moderno (não sei porque se faz uso da palavra “moderno”; o homem foi sempre muito semelhante ao que é hoje, através de gerações e gerações). Mas, hoje em dia, o clima é tal que ele está negando totalmente a autoridade do sacerdote, da crença e do dogma, em suas próprias raízes; para ele, Deus morreu — morreu muito jovem! E, não havendo nem Deus, nem crença, não existe outro conceito senão o do prazer físico, concreto, da satisfação física, e de uma sociedade evoluída. Vive o homem para o presente, negando totalmente a concepção religiosa.

Começa-se por rejeitar os deuses externos e os sacerdotes das religiões. Estas devem ser totalmente rejeitadas, porque não têm valor algum, sempre geraram guerras e dividiram os homens. As religiões, não importa se judaica, hinduísta, cristã, muçulmana, destruíram o homem, dividiram a humanidade, e sempre foram uma das principais causas da guerra e da violência. E, percebendo isso, o homem rejeita a religião, põe-na à margem como coisa infantil, imatura. Intelectualmente, isso é muito fácil; quem vive neste mundo e observa os métodos de exploração por parte das igrejas e dos templos, que pode fazer senão negar? Mas, muito mais difícil é um homem libertar-se da crença e do buscar, no nível psicológico. Todos desejamos achar uma certa coisa não contaminada pelo homem, não contaminada pelo pensamento sutil; uma certa coisa que a razão não possa destruir. Intimamente, todos buscamos, porquanto nossa vida é um tormento, uma batalha, uma aflição, uma rotina. Pode um homem ter a capacidade de expressar-se pela palavra, pela pintura, pela escultura, pela música, mas mesmo essa capacidade pode tornar-se um tanto vazia. A vida, tal como a conhecemos, é muito vazia e, conseqüentemente, procuramos preenchê-la com a música e a literatura, com diversões e entretenimentos, com idéias, com conhecimentos; mas, se nos investigamos mais profundamente, descobrimos como estamos vazios, como é superficial a nossa existência — embora tenhamos títulos, haveres, capacidades.

A vida é vazia e, percebendo esse fato, andamos em busca de meios e modos, não só de preencher esse vazio, mas também de alcançar uma certa coisa não mensurável pelo homem. Uns tomam drogas, L.S.D. ou qualquer outra das várias drogas psicodélicas que expandem a consciência. Por meio delas, alcançam-se ou experimentam-se certos estados, porque se deu ao cérebro uma certa sensibilidade. Mas, tais resultados são puramente químicos. São resultados produzidos por agentes externos. A pessoa toma a droga na esperança dos resultados e tem em seguida, interiormente, tais experiências. E como cada um tem suas crenças, cada um experimenta de acordo som elas. São coisas similares (as drogas e as crenças), e, contudo o homem fica preso à crença — ao narcótico da própria crença, ou à crença no narcótico químico. Fica, inevitavelmente preso na rede de seus pensamentos. Mas, ao perceber bem isso, o homem rejeita a crença — quer dizer, fica inteiramente livre de todas as crenças. Isso não significa que ele se torna agnóstico, que se torna pessimista ou amargurado. Pelo contrário ele percebe a natureza da crença e a razão por que a crença se tornou tão desmedidamente importante; a razão é o medo — basicamente, é esta a razão. Medo — não só da vida, do diário tormento, mas também medo de não “vir a ser”, de não “realizar-se” psiquicamente, de não preencher-se, de não alcançar poder, prestígio, fama — tudo isso cria muito medo, mas esse medo podemos suportar; porém, foi por causa desse medo interior que a crença se tornou tão importante. Ante a absoluta inanidade da vida, a pessoa persiste apegada à crença; ainda que se livre da autoridade externa da crença — da crença inventada pelos sacerdotes, em todo o mundo — cria, para si própria, sua crença particular, a fim de encontrar aquela coisa extraordinária que o homem sempre buscou.

Portanto, o homem busca. A natureza, a estrutura da busca é bem clara. Porque buscamos? Essencialmente por egoísmo — um egoísmo esclarecido, porém sempre egoísmo. Porque, diz a pessoa: “A vida é tão sem valor, tão vazia, monótona, estúpida! Deve haver mais alguma coisa e, por isso, irei àquele templo, àquela igreja, àquele...”. Mais tarde, a pessoa rejeita tudo isso e começa a buscar profundamente. Mas o buscar, em qualquer forma que aja, se torna, psicologicamente, um obstáculo. Isso precisa ser compreendido com toda a simplicidade e clareza. Podemos, objetivamente rejeitar a autoridade de qualquer agente externo que promete levar-nos à verdade suprema — de fato o fazemos. Mas (uma vez compreendida a natureza da busca) é necessário rejeitar também todas as formas de busca, porque, afinal, que estamos buscando? Se investigais, o que é que estais procurando, o que é que desejais, não percebeis que estais buscando alguma coisa que já conhecestes, que perdestes e desejais achar? Essa é uma das implicações do buscar. No buscar, está contido o processo do reconhecimento; isto é, quando achais qualquer coisa que estejais buscando, deveis ser capazes de reconhecê-la, senão a busca não tem sentido nenhum. Por favor, continuai a prestar atenção. Uma pessoa busca uma certa coisa, na esperança de achá-la e, ao achá-la, de reconhecê-la. Mas o reconhecimento é ação da memória e, por conseguinte, supõe que já conhecíeis a coisa, que ela já fora vislumbrada por vós; ou, tendo sido tão condicionado pela intensa propaganda das religiões organizadas, vós vos hipnotizais para vos pordes naquele estado (estado de reconhecimento). Assim, quando estais buscando, já tendes um conceito, uma idéia relativa à coisa buscada; e quando a achais, isso significa que já a conhecíeis, senão não poderíeis reconhecê-la; portanto, ela não é verdadeira, em absoluto. Por conseguinte, devemos alcançar aquele estado mental realmente livre de toda busca, de toda crença — sem nos tornarmos pessimistas, sem nos estagnarmos. Pois tendemos a pensar que, se não buscamos, se não nos esforçamos, se não lutamos, se não buscamos incessantemente, definharemos. E não sei porque não devemos definhar — como se já não estivéssemos a definhar... A gente definha quando morre, quando envelhece, quando o organismo físico perece. Nossa vida é o “processo” do definhar, porque, nela, na vida diária, nós imitamos, copiamos, seguimos, obedecemos, nos ajustamos; tudo isso são formas de definhamento. Assim, a mente que já não está presa a nenhuma forma de crença, a nenhuma crença por ela própria criada, que já não está a buscar coisa alguma — embora isso possa ser um pouco mais difícil — está sumamente ativa. A verdade é uma coisa que só existe de momento em momento; como a virtude, como a. beleza, ela não tem continuidade. O que tem continuidade é produto do tempo, e o tempo é pensamento, o tempo é sofrimento, o tempo é...

Vendo o que o homem fez a si próprio, quanto se torturou, quanto se embruteceu — tornando-se nacionalista, absorvendo-se num certo entretenimento, como a literatura ou isto ou aquilo — vendo todo esse padrão de vida, perguntamos a nós mesmos: “É necessário passar por tudo isso?” Entendeis esta pergunta? Tem um ente humano necessidade de passar por todo esse processo, passo a passo: rejeitar a crença (se está de fato vigilante), rejeitar a busca de qualquer espécie, rejeitar a tortura da mente, rejeitar a satisfação dos apetites? Vendo o que o homem fez a si próprio, no intuito de encontrar aquilo a que chama Realidade, perguntamos (perguntai-o a vós mesmo e não a mim) - se existe um meio, um “estado de explosão” que tudo rejeita repentinamente — pois o tempo não é o meio adequado.

A busca supõe o tempo — achar no fim de certo tempo (daqui a dez anos ou mais), ou na próxima encarnação (em que crê toda a Ásia). Tudo isto implica tempo: livrar-nos gradualmente de todos esses conflitos e problemas; tornar-nos pouco a pouco mais judiciosos, mais hábeis, mais sabedores; descondicionar a mente lenta e gradualmente. É isso o que o tempo encerra. O tempo, evidentemente, não constitui o meio adequado, e também não o constitui a crença, nem as disciplinas artificiais, impostas por um sistema, por um guru, por um instrutor, por um filósofo, por um sacerdote. Tudo isso é infantilidade. Mas é possível, sem termos de passar por tudo isso, encontrar aquela coisa inefável? Pois ela não pode ser chamada. Por favor, compreendei este fato tão simples: ela não pode ser chamada e não pode ser buscada. Nossa mente é tão estúpida e limitada, nossas emoções tão vulgares, nossas maneiras de vida tão confusas, que aquela imensidão não pode ser convidada a entrar em nossa pequenina casa, num pequeno aposento, ainda que asseado e bem arrumado. Não podemos “convidá-la”; para convidá-la, precisamos conhecê-la, e nós não podemos conhecê-la (não importa quem diga que podemos), porque, no momento em que digo “conheço-a”, não a conheço. No momento em que digo que a achei, não a achei. Se digo que a “experimentei”, nunca a experimentei. Tudo isso são maneiras astuciosas de explorar outro homem — amigo ou inimigo.

Ao perceberdes isso, não intelectualmente, porém na vida diária, em vossas atividades cotidianas (quando escreveis, quando falais, quando saís de carro ou passeais a sós numa floresta) — ao perceberdes isso, num relance (não precisais de ler volumes para o perceberdes), compreendereis toda a estrutura. E só podeis compreendê-la como um todo, quando vos conheceis; quando vos conheceis simplesmente, tal como sois, como um resultado de toda a humanidade, quer sejais hinduísta, muçulmano, cristão, quer sejais qualquer outra coisa. Quando vos conheceis como sois, compreendeis toda a estrutura do esforço humano — embustes, hipocrisias, brutalidades, busca.

E, pergunta-se: É possível encontrar essa coisa sem a chamar, sem a esperar, sem a buscar, sem explorar? É possível ela aparecer, “acontecer”, como a brisa que entra pela janela aberta? Não se pode chamar a brisa, mas temos de deixar aberta a janela. Isso não significa ficar num estado de espera, que é uma outra maneira de enganar a nós mesmos; não significa que devamos abrir-nos, para recebê-la, pois isso é outra forma de pensamento.

Mas, se nos interrogamos sem buscar, sem crer, então, nesse próprio interrogar, achamos. Mas nós nunca nos interrogamos. Queremos ser informados, queremos tudo corroborado, confirmado; fundamentalmente, nunca estamos livres da autoridade interior e exterior, em todas as formas. Esta é uma das mais curiosas peculiaridades da estrutura de nossa psique. Queremos que nos digam as coisas. Somos o resultado do que nos é dito. O que se nos diz é propaganda milenar. Temos a autoridade do livro antigo, a autoridade do líder atual, ou de um orador. Mas se, fundamentalmente, realmente, rejeitamos toda e qualquer autoridade, isso significa que ficamos isentos de temores. Ser sem medo é olhar o medo, pois, como acontece em relação ao prazer, nunca entramos diretamente em contato com o medo. Nunca entramos em contato real com o medo, assim como entramos em contato com uma porta, uma mão, um rosto, uma árvore, quando os tocamos; só entramos em contato com o medo através da imagem do medo que criamos para nós mesmos. Só conhecemos o prazer pela metade. Nunca estamos diretamente em contato com coisa alguma. Não sei se já observastes, ao tocardes uma árvore (como o fazeis, quando passeais na floresta), se de fato a tocais. Ou existe uma cortina entre vós e a árvore, embora a estejais tocando? Para se entrar diretamente em contato com o medo, não deve haver imagem alguma, quer dizer, não deve haver nenhuma lembrança do medo de ontem. Só então é possível entrar em contato real com o medo real de hoje. Então, se não há lembrança do medo de ontem, tendes a energia necessária para enfrentar o medo presente; e necessita-se de uma tremenda energia para enfrentar o presente. Dissipamos essa energia vital — que todos nós temos por causa dessa imagem, dessa fórmula, dessa autoridade; e o mesmo acontece quando se está buscando o prazer. A busca do prazer é para nós sumamente importante. O prazer supremo é Deus — o Deus que supomos existir — mas ele pode ser a coisa mais aterradora que se possa conhecer; mas nós o imaginamos — o Supremo — e por isso nunca o encontramos. Mais uma vez, o fato é que — assim como reconhecemos um prazer como um prazer que ontem experimentamos — nunca estamos realmente em contato com a experiência real, com um estado real. A memória de ontem está sempre a cobrir, a velar o presente.

Assim, em vista de tudo isso, podemos ficar sem fazer nada, sem lutar, sem buscar, ficar totalmente “negativos”, totalmente vazios, inativos — uma vez que toda ação é resultado da “ideação”? Se já vos observastes quando agis, tereis visto que isso acontece por causa de uma idéia prévia, um conceito prévio, uma prévia lembrança. Há separação entre a idéia e a ação — um intervalo, ainda que muito pequeno, diminuto. Por causa dessa separação, há conflito. Pode a mente ficar completamente quieta, sem pensar, sem ter medo e, por conseguinte, sobremodo viva, ativa?

Conheceis a palavra “paixão”; esta palavra significa, muitas vezes, “sofrimento”. Os cristãos têm-na empregado para simbolizar certas formas de sofrimento. Não é nesse sentido que estamos empregando a palavra “paixão”. No completo estado de negação encontra-se a mais elevada forma da paixão; essa paixão implica o “total abandono de si próprio”. Para esse total “auto-abandono” necessita-se de austeridade em alto grau; austeridade que não seja a rudeza do sacerdote para com os que o cercam; que não seja a austeridade dos santos, que a si próprios torturam e que se tornaram austeros por terem embrutecido a própria mente. Austeridade é, com efeito, simplicidade, no mais alto grau — não simplicidade no vestir, no comer, porém simplicidade interior. Essa austeridade, essa paixão, é a negação total, a negação na forma mais elevada. Então, se tiverdes sorte (sorte! — isso não é questão de sorte: a coisa vem sem ser chamada!) É que deixais de lutar, de forcejar em busca de alguma coisa. Podeis então fazer o que quiserdes — porque haverá amor!

Sem essa mente religiosa, não é possível criar uma verdadeira sociedade. Temos de criar uma nova sociedade em que haja muito pouco ensejo para as terríveis atividades citadas pelo egoísmo. Só com a mente religiosa pode haver paz — exterior e interiormente.

Krishnamurti - 20 de abril de 1967 – Do Livro: A Essência da Maturidade - ICK


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