A história da humanidade está em você: a vasta experiência, os medos profundamente arraigados, as ansiedades, a dor, o prazer e todas as crenças que o homem acumulou através dos milênios. Você é esse livro. Ele não foi publicado por nenhum editor; não está à venda. Inútil ir a algum analista, porque o livro dele é o mesmo que o seu. Sem ler esse livro cuidadosa, paciente, hesitantemente, você nunca será capaz de transformar a sociedade em que vivemos, a sociedade que é corrupta, imoral. Existe muita pobreza, injustiça, e assim por diante. Qualquer pessoa séria estaria preocupada com o estado das coisas no mundo atual, com todo o caos a corrupção, guerra – o maior de todos os crimes é a guerra. Para produzir uma mudança radical em nossa
sociedade e em sua estrutura, a pessoa tem que ser capaz de ler esse livro que é ela própria; e a sociedade em que vivemos foi criada por nós, cada um de nós, por nossos pais, avós e assim por diante. Todos os seres humanos criaram essa sociedade e, enquanto a sociedade não for transformada, haverá mais corrupção, mais guerra e destruição da mente humana. Assim, para ler esse livro que é a própria pessoa, é preciso aprender a arte de escutar o que o livro está dizendo. Escutar implicar não interpretar. Apenas observar, como você observa uma nuvem. Não se pode fazer nada a respeito da nuvem ou das folhas da palmeira balançando ao vento, ou em relação à beleza do pôr-do-sol; não se pode alterá-los. Da mesma forma, é preciso aprender a arte de escutar o que o livro está dizendo. O livro é você; ele revelará tudo.
Há outra arte, a da observação, a arte de ver. Quando você lê o livro que é você mesmo, não existem você e o livro. Não existe o leitor e o livro separado. O livro é você.
Há ainda outra arte, a arte de aprender. Os computadores podem aprender; eles podem ser programados e repetirão aquilo que lhes foi ordenado. Primeiro nós experimentamos, acumulamos conhecimentos, e os armazenamos no cérebro; então o pensamento nasce sob a forma de memória e segue-se a ação. Dessa ação você aprende. Assim, aprender é acumular mais conhecimento. Isso é o que a mente que está atenta, desperta, está fazendo todo o tempo, como um computador. Experiência, conhecimento, memória, pensamento, ação – eis o que estamos fazendo todo o tempo, o que chamamos “aprender” – aprender com a experiência. Essa tem sido a história do homem – constante desafio e resposta a esse desafio. O livro é todo o conhecimento da humanidade, que é você.
Sei que vocês provavelmente são muito cultos, muito educados, mas estou expondo tudo isso em uma linguagem muito, muito simples. Entretanto, a palavra não é a coisa. Por favor, tenham isso em mente todo o tempo: a palavra não é a coisa. O símbolo nunca é o real. Desse modo, como eu disse, existe a arte de ver, a arte de escutar e a arte de aprender. O homem nunca é livre do conhecido; por isso, nosso aprendizado torna-se mecânico. A arte de aprender implica algo totalmente diferente. Aprender significa investigar os limites do conhecimento e mover-se. Agora, com esses três processos – escutar, observar, aprender – vamos juntos ler o livro da vida. Você está lendo o livro junto comigo; não estou lendo o seu livro. Estamos lendo o livro humano que é você, o orador e o resto da humanidade. Por favor, dê um pouco de atenção a isso. Se sabemos como ler o livro que somos nós mesmos, todos os conflitos e dores, chegam a um fim. Somente essa é a mente religiosa, não a que acredita; não a que executa todos os rituais, mas a que é livre. Tendo lido completamente o livro, é apenas essa mente que recebe a benção da verdade.
Qual o primeiro capítulo nesse livro? É o seu livro, qual é o conteúdo desse capítulo? À parte a existência física, o organismo com todos os males do corpo: a doença, a preguiça, a morosidade, a falta de alimento apropriado, de nutrição conveniente – à parte tudo isso, qual é o primeiro movimento? Você pode ter olhado para o seu rosto, penteado o cabelo, empoado a face e tudo o mais, mas nunca olhou para dentro. Se olhar para dentro de si mesmo, você não se descobre um ser humano de segunda-mão? Pode ser bastante desagradável considerar-se um ser humano de segunda-mão. Mas estamos cheios de conhecimento de outras pessoas – o que alguém ou algum mestre ou guru disse, o que Buda disse, o que o Cristo disse, e assim por diante. Estamos cheios disso. Da mesma forma, se você foi à escola, faculdade ou universidade, lá também lhe foi dito o que fazer, o que pensar. Assim, se compreender que é um ente de segunda-mão, você poderá pôr isso de lado e olhar.
Acompanhe-me, por gentileza: a primeira observação é que vivemos em contradição, que não há ordem em nós. Ordem não é programação. É colocar tudo no lugar certo. Mas ordem implica algo muito maior que a disciplina mecânica de um hábito particular, ou de uma função normal. Desta forma, a pessoa descobre nesse livro, no primeiro capítulo, que vivemos uma vida extraordinariamente confusa, desordenada – querendo uma coisa e negando que a queremos, dizendo uma coisa e fazendo outra, pensando uma coisa e fazendo outra. Assim, há contradição constante. Onde há contradição, tem de haver conflito. Você está acompanhando o livro que é você mesmo vivendo de uma maneira desordenada, em perpétuo conflito. Esse conflito alastrou-se como ambição, realização, identificação com uma pessoa, um país, uma idéia, sem nunca viver com o real. Assim, vivemos em desordem – politicamente, religiosamente, em nossa vida familiar.
Temos de descobrir o que é ordem. O livro irá lhe contar, se você souber como lê-lo. Ele diz que você vive em desordem. Acompanhe-o, vire a próxima página. Então você descobrirá o que significa viver em desordem. Se uma pessoa compreende a natureza da desordem, não intelectual, ou verbalmente, mas de fato, o livro está dizendo: não traduza, não transforme isso num conceito intelectual, mas leia-o apropriadamente. Quando você o lê, ele diz que suas contradições existem, e elas só irão terminar se você compreender a natureza da contradição. Contradição existe quando há divisão como hindus e muçulmanos, judeus e árabes, comunistas e não-comunistas, esse constante processo divisório entre os vários tipos de Budistas, os vários tipos de Hindus, Cristãos e assim por diante. Onde há divisão, tem de haver conflito, que é desordem. Quando você compreende a natureza da desordem, dessa compreensão, das profundezas dessa compreensão da natureza da desordem, vem, naturalmente, ordem.
Ordem é como uma flor desabrochando naturalmente, e essa ordem, essa flor, nunca fenece. Sempre há ordem na própria vida quando se lê realmente o livro, que diz: onde há divisão, tem de haver conflito.
O próximo capítulo diz: enquanto você estiver funcionando centrado, rumo à periferia, tem de haver contradição. Isto é, enquanto estiver agindo de forma autocentrada, egoística, egocêntrica e personalisticamente, restringindo a totalidade dessa vida imensurável a esse pequeno “eu”, você inevitavelmente criará desordem. O “eu” é algo muito pequeno, criado pelo pensamento. O pensamento, o nome, a forma, a estrutura psicológica e a imagem que ela construiu de si mesma, dizem: “Eu sou alguém”. Enquanto existir atividade autocentrada, tem de haver contradição, tem de haver desordem. E o livro diz: não pergunte como não ser autocentrado. Quando você pergunta como, você está pedindo um método. Se você segue o método, essa é outra forma de atividade autocentrada. O livro está dizendo a você tudo isso, não eu. O orador não está traduzindo o livro. Estamos lendo-o juntos. Enquanto você pertencer a qualquer seita, grupo, religião, estará obrigado a criar conflito. Isso é difícil de engolir porque todos nós acreditamos em alguma coisa. Você acredita em deus, outro não; outro acredita no Buda, outro em Jesus, e o Islã diz existir alguma outra coisa. Assim, a crença produz divisão no relacionamento entre as pessoas. Não há necessidade alguma de crença quando você está unicamente preocupado com fatos – fato sendo aquilo que está realmente acontecendo em seu livro.
Então surge o problema de como ler o livro, se você está separado dele. Quando pega um romance ou uma novela de suspense, você lê como alguém de fora, virando as páginas, na companhia de toda excitante história, e assim por diante. Mas aqui o leitor é o livro. Ele o está lendo como se estivesse lendo uma parte de si mesmo; não está lendo um livro qualquer. O livro também diz que o homem tem vivido sob a autoridade – política, religiosa, do líder, do guru, do homem que sabe, do intelectual, do filósofo. Sempre se conformou com um padrão de autoridade. Por favor, escute muito cuidadosamente o que o livro está dizendo: existe a autoridade da lei – existe a autoridade do policial, de um governo eleito, do ditador. Não estamos falando desse tipo de autoridade. Estamos lendo a respeito da autoridade que a mente busca com o propósito de sentir-se segura.
A mente está sempre buscando segurança. O livro diz: quando você está buscando segurança psicológica, está inevitavelmente criando autoridade – a autoridade do sacerdote, da imagem, do home que diz: “Sou iluminado, vou esclarecê-lo”. Assim o livro diz: livre-se de todo esse tipo de autoridade; o que significa: seja uma luz para você mesmo. Não dependa de ninguém para a compreensão da vida, para a compreensão desse livro. Para ler esse livro não deve haver ninguém entre você e ele – nenhum filósofo, nenhum sacerdote, nenhum guru, nenhum deus, nada. Você é o livro que está lendo. Portanto, deve haver libertação da autoridade do outro, seja a do marido ou a da esposa. Isso significa ser capaz de fica sozinho.
O livro diz: você discutiu, leu o primeiro capítulo sobre a desordem, a ordem e a autoridade. O próximo diz: vida é relacionamento; relacionamento em ação. Não somente com aqueles de quem é intimo: você está relacionado com toda a humanidade. Você é semelhante ao resto dos seres humanos, onde quer que eles vivam, porque eles sofrem, você sofre, e tudo o mais. Psicologicamente, você é o mundo e o mundo é você. Portanto, você tem tremenda responsabilidade. Então o livro diz no capítulo seguinte: o homem tem vivido com medo desde tempos imemoriais – medo, não somente da natureza, do ambiente, da doença, de acidentes e assim por diante, mas também as muito profundas camadas de medo, as profundas, inconscientes, inexploradas ondas de medo. Vamos ler o livro juntos até o capítulo e terminar e dizer: “Observe o medo e você será capaz de pôr fim a ele”. O livro outra vez pergunta, na página seguinte: que é medo? Como ele surge, qual a sua natureza? Por que o homem não resolveu o problema? Por que vive com ele? Acostumou-se a ele? Aceitou-o como forma de vida? Por que o homem, o ser humano, não solucionou o problema para que a mente seja totalmente livre do medo? Enquanto houver medo, você viverá na escuridão. E se sua adoração resultar dessa escuridão, ela será absolutamente sem sentido.
É muito importante penetrar mais fundo na natureza do medo. Como surge o medo? Da lembrança de coisas passadas – lembrança de alguma dor, de alguma coisa que você fez, que não devia ter feito; uma mentira que contou, não quer que seja descoberta e teme que o seja; uma ação que corrompeu sua mente. Você pode estar com medo daquela corrupção, daquela ação? Ou pode estar com medo do futuro, de perder um emprego, ou de não se tornar cidadão proeminente em um quintalzinho qualquer. Temos inumeráveis formas de medo. As pessoas têm medo do escuro, da opinião pública, da morte, de não se realizar – o que quer que isso signifique. E há o medo da doença; a pessoa pode ter muita dor física que fica registrada na mente e ela tem que volte. Assim o livro diz: siga em frente, leia mais; o que é medo? É ele criado pelo pensamento? É ele criado pelo tempo? Estou saudável agora, mas quando envelhecer ficarei doente e isso me assusta. Isso é tempo. Ou o pensamento diz: algo pode me acontecer, posso perder o meu emprego, ficar cego, perder minha esposa, o que quer que seja. É essa a raiz do medo? – o livro está perguntando. Assim você diz: vire a página e descobrirá a resposta você mesmo; não o orador. O livro diz que o pensamento e o tempo são fatores do medo. Que pensamento é tempo.
A página seguinte pergunta: é possível à mente humana, a você que está lendo o livro que é você mesmo, ser completamente livre do medo, de tal forma que não haja mais o leve sopro de medo? O livro diz novamente: não peça um método. Métodos significam repetição, um sistema; o sistema que você inventar não dissolverá o medo, porque então você estará seguindo um sistema e não compreendendo a natureza do medo. Portanto, não busque um sistema, mas simplesmente compreenda a natureza do medo. Ele interroga: o que você quer dizer por compreender? Ou você compreende a construção verbal e o significado da palavra, o que é uma forma especifica de atividade intelectual, ou você vê a verdade. Quando você enxerga a verdade, então a coisa desaparece. Quando enxergar claramente, por si próprio, que o pensamento e o tempo são fatores do medo, não como uma afirmação verbal, mas como uma parte de você mesmo – em seu sangue, em sua mente, no seu coração, que o tempo é o fator – então verá que o medo não tem mais lugar, somente o tempo. Porque o medo foi criado pelo tempo. E pelo pensamento. Tenho medo do que possa acontecer, tenho medo de minha solidão. Nunca examino minha solidão – o que ela significa – mas tenho medo dela, o que significa que fujo dela; mas essa solidão é a minha sombra, ela me persegue. Não se pode fugir da própria sombra. Do mesmo modo, se você tiver a paciência da observação, que não é fugir, mas observar, olhar, escutar, ouvir o que o livro está dizendo, ele dirá que o tempo é o fator, não o medo; por isso você tem de compreender o tempo. Se compreender o tempo, talvez então não haja um fim para o medo.
O livro está pedindo a você para descobrir qual é a relação entre tempo e pensamento. Pensamento é um movimento do conhecido para o conhecido. É um movimento: as lembranças do passado encontrando o presente, modificando-se e seguindo adiante. Esse movimento do ontem para o hoje e para o amanhã é o movimento do tempo, através do nascer ao pôr-do-sol. Existe também o tempo psicológico. Conheci a dor, espero que ela não se repita, mas ela pode acontecer de novo – esse é o movimento do passado através do presente, modificando-se e deslocando-se em direção ao futuro. Existe o tempo medido pelo relógio. Existe o tempo interior: você espera ser; não é, mas espera ser; você é violento, mas espera ser não-violento. Você é ganancioso, invejoso, mas, através do tempo, através da evolução, espera que gradualmente se livrará disso. Conseqüentemente, tempo é um movimento a partir do passado e do presente em direção ao futuro. Pensamento também vem do passado – conhecimento, memória, movimento. Portanto, tempo é pensamento.
A próxima pergunta é muito mais difícil de responder. Você tem que ter paciência para ir mais longe. Estou usando a palavra “paciência” num sentido especifico: ausência de tempo. Geralmente paciência significa: vá devagar, seja paciente, espere um pouco, não reaja apressadamente, aquiete-se, tenha calma, dê ao outro a oportunidade de se expressar, e assim por diante. Não estamos usando a palavra “paciência” nesse sentido. Estamos dizendo que paciência significa esquecer o tempo de modo que você possa olhar, possa observar; mas se observar através do tempo, será impaciente. Pode ser que você precise ter paciência para ler o próximo capítulo. Tempo é o fator do medo. Pensamento é tempo. Enquanto o pensamento estiver funcionando, você está condenado a ter medo.
O capítulo seguinte indaga: existirá uma interrupção do tempo, o fim do tempo? O tempo é o fator maior em nossa vida – não sou, mas serei; não sei, mas saberei; não sei essa língua particular, mas aprenderei, dê-me tempo. O tempo curará nossas feridas. O tempo embota a sensibilidade. O tempo destrói o relacionamento. O tempo destrói a compreensão porque a compreensão é imediata: não “aprenderei a compreender”. Por isso o livro está dizendo que o tempo desempenha um papel extraordinariamente importante em nossa vida. Nossos cérebros evoluíram através do tempo. Não é seu cérebro, ou meu cérebro, mas o cérebro humano, a mente humana, que é você. Você identificou esse cérebro como seu cérebro, como sua mente; mas não é sua mente ou seu cérebro, mas o cérebro humano, que evoluiu através de milhões de anos. Você vê que o cérebro, que é condicionado pelo tempo, pode unicamente operar no tempo. Estamos pedindo ao cérebro para fazer algo totalmente diferente. O livro afirma que seu cérebro, sua mente, funcionam no tempo. O tempo desempenhou um papel importante em sua vida. Não é solução de problema algum, exceto problema tecnológicos. Não o use para solucionar um problema – entre você e a sua esposa, entre você e seu emprego, assim por diante. É muito difícil compreender isso. Por favor, consagre sua mente a isso, a ler o livro apropriadamente.
Assim o livro pergunta: pode o tempo acabar? Se você não puser um fim a ele, o medo prosseguirá, com todas as suas conseqüências. E o livro diz: não pergunte como dar-lhe fim. Você não pode perguntar a alguém como acabar com o medo; ele não leu o livro, ele lhe dará apenas uma teoria. Pergunto-me se você compreende isso. Essa é a verdadeira meditação. Meditar é inquirir se o tempo pode parar. O orador diz que pode e que isso acontece; o orador diz isso, não o seu livro. O orador afirma que o tempo termina. Mas se acreditar nisso, você não está lendo o seu livro, estará vivendo apenas de palavras, e viver de palavras não dissolve o medo. Por isso você tem de ler o livro do tempo – entrar nele e explorar a natureza do tempo, ver como você reage ao tempo, como seu relacionamento é baseado no tempo. Mergulhe nisso. Isso significa que conhecimento é tempo. Se você está usando o conhecimento como um meio de avanço, está aprisionado ao tempo e, portanto, o medo, a ansiedade e o processo inteiro seguem em frente. Para inquirir sobre a natureza do fim do tempo, requer-se uma mente silenciosa, uma mente livre para observar, não amedrontada, livre para observar o movimento do tempo em você mesmo, como você depende dele. Se alguém lhe dissesse que não existe tal coisa como a esperança, você ficaria horrorizado, não ficaria? Compreende o que estou dizendo? Esperança é tempo.
Assim, você tem de investigar a natureza do tempo e compreender que seu cérebro, sua mente e seu coração, que são um, estão funcionando no tempo. Eles estão condicionados ao tempo e, portanto, você está pedindo algo totalmente novo. Você está pedindo ao cérebro, e à mente, para funcionar de outra forma e isso requer grande atenção.
Krishnamurti – Colombo, 9 de novembro e 1980.
Do livro: O Livro da Vida – Editora Giordano