sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Diálogo sobre a dependência de Guias

Pergunta: Não devemos pôr em dúvida a vossa experiência e vossas palavras? Embora condenem certas religiões a dúvida, por considerá-la como algemas, não é a dúvida, como haveis dito, um ungüento precioso, uma necessidade?

Krishnamurti: Não é importante descobrir-se por que surge a dúvida? Qual é a causa da dúvida? Não surge ela quando seguimos a outrem? O problema não é, pois, a dúvida, porém a causa da aceitação de autoridade. Porque aceitamos, porque seguimos autoridades?

Seguimos a autoridade de outro, a experiência de outro, e depois duvidamos dela. Esse desejo de autoridade e a sua conseqüência, a desilusão, constitui um processo penoso para a maioria de nós. Censuramos ou criticamos a autoridade, o guia, o mestre que uma vez aceitamos, mas não examinamos o nosso próprio anseio por uma autoridade que nos guie e conforte. Uma vez compreendido esse anseio, compreenderemos também o significado da dúvida.

Não existe em nós uma tendência profundamente arraigada a procurarmos um guia, a aceitarmos uma autoridade? De onde procede esse impulso? Não procede de nossa própria incerteza, de nossa própria incapacidade de conhecer sempre o que é verdadeiro? Necessitamos de outrem que desenhe para nós o mapa que nos guiará pelo mar do autoconhecimento; desejamos segurança, desejamos um refúgio seguro e seguimos, por isso, a qualquer que nos queira dirigir. A incerteza e o temor levam-nos a procurar quem nos guie, obrigando-nos à obediência e à veneração da autoridade; a tradição e a educação criam para nós muitos padrões de obediência. Se por vezes não aceitamos nem obedecemos aos símbolos da autoridade exterior, é porque criamos nossa própria autoridade interior, a voz sutil do nosso “ego”. Mas, pela obediência não se pode conhecer a liberdade. A liberdade chega-nos com a compreensão, não pela aceitação de autoridade, não pela imitação.

O desejo de expansão pessoal gera a obediência e a aceitação, as quais, por sua vez, dão azo à dúvida. Consentimos e obedecemos, por que desejamos expandir o nosso “ego”, com o que renunciamos ao pensar. A aceitação priva-nos do pensar e impele-nos à dúvida. A experiência, principalmente a chamada experiência religiosa, oferece-nos um grande deleite e tomamo-la por guia, por norma. Mas, quando essa experiência já nos não sustenta nem inspira, começamos a duvidar dela. Só se manifesta dúvida a respeito de algo que admitimos anteriormente. Mas não achais absurdo, irrefletido, aceitar o que outrem sentiu? Vós é que deveis pensar e sentir, plena e profunda mente, vós é que deveis estar acessíveis ao Real. Não podeis estar abertos se vos pondes sob o manto da autoridade, seja de outrem seja daquela que vós mesmos criastes. Muito mais importante é o compreender o desejo de autoridade, de guia, do que aprovar ou desaprovar a dúvida. Compreendido o nosso desejo de orientação, desaparece a dúvida. Não há lugar para a dúvida no “estado criador”.

Está sempre em conflito quem se apega ao passado, à memória. A dúvida não faz terminar o conflito; só depois de compreender-se o anseio pode haver a felicidade suprema do Real. Cuidado com o homem que afirma saber.

Pergunta: Como sois tão contra a autoridade, existem sinais inequívocos, pelos quais se possa reconhecer, objetivamente, a libertação de outro indivíduo, independentemente da afirmação pessoal do próprio indivíduo de a haver conseguido?

Krishnamurti: Temos aqui, mais uma vez, o problema da aceitação de autoridade, de outro modo enunciado. Não o achais? Suponha-se que um indivíduo afirme ter-se libertado, que importância tem isso para outro? Suponhamos que estejais livres do sofrimento, que importância tem isso para outro? O que importa é procurar o indivíduo libertar-se da ignorância, porquanto é a ignorância a causa do sofrimento. Assim, pois, o principal não é saber quem conseguiu a libertação, porém saber libertar o pensamento das cadeias do “ego”, origem de seus sofrimentos. A maioria de nós não se interessa por esse ponto essencial, mas somente pelos sinais exteriores pelos quais seja possível reconhecer-se aquele que se libertou, a fim de que ele venha curar os nossos males. Desejamos ganho, em vez de compreensão; nosso desejo de orientação, de conforto, faz-nos aceitar a autoridade e por essa razão vivemos sempre à procura de especialistas. Sois vós a causa de vosso sofrimento e somente vós o podeis compreender e transcender; ninguém pode libertar-vos da ignorância, senão vós mesmos.

Não importa saber-se quem conseguiu a libertação; o que importa é que estejais cônscios de vossas atitudes e da maneira como acolheis o que se vos diz. Costumamos ouvir as palavras de outrem com esperança e temor; buscamos a luz de outro, porém não nos pomos vigilantemente passivos para compreender. Se o indivíduo libertado parece satisfazer os nossos desejos, nós o aceitamos; se não, prosseguimos em busca de outro que os satisfaça. O que deseja a maioria de nós é a satisfação, em diferentes planos. O que releva não é reconhecer-se o individuo liberto, porém compreenderdes a vós mesmo. Autoridade alguma, nem agora, nem nunca, pode dar-vos o autoconhecimento; sem autoconhecimento não há libertação da ignorância e do sofrimento.

Sois o criador do sofrimento, porque sois o criador da ignorância e da autoridade; vós criais o guia, e depois o seguis. Vosso anseio molda o padrão de vossa vida religiosa e mundana. É essencial, portanto, que compreendais a vós mesmo e transformeis, assim, a maneira de viverdes. Procurai perceber a razão por que seguis a outrem, a razão por que procurais a autoridade, por que ansiais por uma orientação de vossa conduta; procurai perceber o funcionamento do anseio. A mente-coração insensibilizou-se, em virtude do temor e da satisfação derivados da autoridade, mas, com a percepção profunda do pensamento-sentimento, vem-nos o tonificante alento da vida. Pela vigilância não seletiva, chegareis a compreender o processo integral do vosso ser; pela vigilância passiva alcançareis o esclarecimento.

Krishnamurti
Conferências com perguntas e respostas realizadas nos anos de 1945 e 1946, em Ojai, Califórnia, Estados Unidos da América. Do livro: O Egoísmo e o Problema da Paz – Ed. ICK - 1946

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