Entrevista concedida por Krishnamurti ao escritor inglês Rom Landau, na cidade de Carmel, Estados Unidos.
Voltara eu à Alemanha, país onde se iniciara minha busca; vira novamente Keyserling e me inteirara das transformações por que haviam passado as grandiosas visões de Steiner de um mundo mais real. Mas, de todos os mestres com quem estivera em contato, aquele cuja mudança eu mais ansiava verificar era Krishnamurti. Escrevi-lhe para Eerde, na Holanda, perguntando quando e onde poderia visitá-lo. Esperei mais de três meses pela resposta, e, quando finalmente chegou, soube que ele acabava de deixar a Nova Zelândia, após uma série de conferências na Austrália, estando já a caminho da Califórnia, e que não voltaria à Europa antes de dezoito meses. Uma viagem à Califórnia significava grande sacrifício de tempo e dinheiro. Não obstante, decidi seguir toda a Costa do Pacífico para verificar o quanto Krishnamurti havia mudado desde os dias em que eu estivera com ele no seu castelo holandês, e, principalmente, depois da dissolução de sua sociedade. A casa de Krishnamurti na Califórnia se encontrava no Vale de Ojai, não muito longe de Hollywood.
Quando resolvi visitar Krishnamurti, esperava também sentir a atmosfera espiritual do país no qual ele vivia. Eu já conhecia bastante a América para saber que a descrição de Romain Rolland da característica mais impressionante na vida norte-americana ainda se mantinha verdadeira: “...a coexistência, lado a lado, do desejo o do temor do futuro; das mais elevadas e das mais baixas forças; uma imensa sede de verdade, e um enorme apego à falsidade; desinteresse absoluto ao lado da mais vil adoração do ouro; uma sinceridade inteiramente infantil acompanhando um autêntico charlatanismo de feira.” Durante o século dezenove, a América do Norte possuiu vários escritores de valor espiritual, encontrando-se entre os mais importantes Emerson e Walt Whitman. As preocupações espirituais viviam par a par com o mais vulgar materialismo.
Ao chegar aos Estados Unidos, no outono de 1934, notei logo que a decepção e a descrença na salvação puramente material, resultantes das crises econômicas dos últimos anos, haviam despertado em muitas criaturas verdadeira ânsia pelas coisas do espírito. Percebia-se um nítido acordar do espírito, semelhante ao que se dera na Alemanha nos anos que se seguiram à guerra. Isto não era surpreendente. Poucas formas de experiência haverá mais capazes de levar-nos à compreensão espiritual que o sofrimento. A incapacidade da maioria das divindades - política, finanças, indústria - em satisfazer seus adoradores obrigava as atenções a se voltarem cada vez mais para o poder do espírito - único ainda inexplorado.
Não era, pois, por acaso que Krishnamurti se encontrava no cenário norte-americano. Ele não era o primeiro mestre da Índia a exercer, pelo contato pessoal, influência sobre o pensamento desse povo. Cerca de meio século antes dele, Vivekananda, grande mestre indiano e discípulo de Ramakrishna, havia visitado os Estados Unidos, impressionando o Congresso de Religiões em Chicago, em 1893, mais que qualquer teólogo, filósofo ou clérigo, e influenciara sobremaneira o grande filósofo William James. A forma peculiar da verdade espiritual, como é vista pelo Oriente, já não era estranha ao público norte-americano. Depois dos ensinamentos de Ramakrishna e Vivekananda, a mensagem de Krishnamurti se transplantava para o solo dos Estados Unidos num dos momentos mais críticos e, por conseguinte, espiritualmente mais propícios de sua civilização.
II
Como dispusesse de pouco tempo, resolvi ir de avião de Nova Iorque à Califórnia. Nunca havia voado antes e, embora a velocidade de mais de duzentas milhas à hora pouco significasse para mim, senti-me estranhamente emocionado quando, dezessete horas após ter deixado a gélida atmosfera de Nova Iorque, pousamos a três mil milhas para o Oeste, no aeroporto de Hollywood, Glendale, banhado por um sol brilhante e circundado de montanhas cujos topos estavam cobertos de neve.
Não havia ninguém à minha espera e, assim, a chegada foi bastante melancólica. Telefonei, e fui informado de que Krishnamurti não estava em Ojai, e sim em Carmel, havia já algumas semanas. Mas assegurou-me a voz, do outro lado do fio, que eu gostaria de Carmel, localidade não muito distante de S. Francisco, e muito melhor que Ojai.Passado o primeiro desapontamento, senti alegria por estar a caminho de Carmel, que eu conhecera numa visita anterior feita à Califórnia, e previa que o local ofereceria maiores possibilidades de quietude e concentração do que Ojai, bem próximo de Hollywood.
Deixei Hollywood numa tarde chuvosa. Desci do trem em Monterey e da estação telefonei a Krishnamurti, para avisá-lo de minha chegada. Meia hora depois, parava um carro diante da estação e dele descia Krishnamurti.
III
Havia vários anos que não o via. Conservava a mesma e anterior esbelteza, mas o rosto já não tinha a primitiva lisura da extrema juventude. Sete anos antes, aquilo que ele mais irradiava era beleza, e embora já tivesse mais idade, parecia um jovem de vinte e poucos anos. Agora, as faces estavam fundas e se distinguiam escuras olheiras. Alguns fios prateados apareciam entre a basta cabeleira preta, e as linhas do rosto traíam, talvez, alguma ansiedade ou conflito secreto - ou seria apenas a evidência de uma mais acentuada maturidade?
Seguimos de automóvel para Carmel, a várias milhas de distância. Parara de chover e a região ia surgindo da escuridão. O sol da montanha tornava as planícies verdes e douradas, e os outeiros e as montanhas, arroxeados e avermelhados.
Como estivessem ocupados os quartos do pequeno hotel onde se encontrava Krishnamurti, levou-me ele a um maior, que ficava próximo, situado entre imensos pinheiros, num outeiro, de onde se descortinava o mar. Com exceção das salas de jantar e de estar, o hotel se compunha de algumas pequenas cabanas, espalhadas pela mata. Era uma maneira de viver extremamente atraente. Cada um tinha sua própria cabana, com um pequeno alpendre e quintal próprio. Pinheiros, arbustos e inúmeras plantas cresciam entre as várias cabanas situadas em níveis diferentes. O aspecto era agradável e pitoresco, e podíamos trabalhar ou repousar em nossos quartos sem sermos perturbados pelos outros moradores do hotel.
Depois de haver passado os olhos por meus novos aposentos e expressado o meu agrado, disse Krishnamurti: “Não sei ao certo o que quer de mim, se serei capaz de satisfazê-lo. Como deseja que façamos?”
“Fiquemos juntos tanto quanto possível, se isso não lhe desagradar”, respondi. “Conversaremos, e as coisas provavelmente surgirão automaticamente. Vim aqui para explorar sua mente e fazer-lhe muitas perguntas indiscretas”, acrescentei, em tom sério.
Krishnamurti prometeu vir buscar-me naquela tarde para um longo passeio, durante o qual teríamos nossa primeira palestra; à noite, jantaríamos juntos, quando eu seria apresentado às pessoas com as quais ele vivia.
Ambos gostávamos muito de andar, mas espessas nuvens se aglomeraram durante a tarde e, quando Krishnamurti chegou, chovia tanto que fomos obrigados a permanecer dentro de casa. Por entre os troncos de pinheiros que se viam pela minha janela, percebíamos o mar, coberto de espuma branca, produzida pelas ondas bravias. Sentia-me ligeiramente nervoso ao pensar em nossa primeira palestra. A falta de contato diário tende a tornar artificiais tais conversas.
Em vários livros e artigos, Krishnamurti fora atacado e, que eu soubesse, não havia respondido a nenhum desses ataques. Havia, por exemplo, a questão de sua atitude em relação à crença de ser ele um segundo Cristo; e uma outra que se relacionava com suas finanças e vida privada.
Certo de que nossas palestras não nos conduziriam a fim algum prático, enquanto pairasse uma dúvida em minha mente quanto à absoluta honestidade de fins de Krishnamurti, disse-lhe, sem o olhar de frente:
“Temo que minha primeira pergunta lhe pareça sem tato. Mas não fiz uma viagem tão longa para mantermos uma palestra polida, nem para mergulharmos em abstratas discussões filosóficas. Vim para descobrir a verdade. Desejo poder dizer aos meus leitores que acreditei em tudo o que me disse e, portanto, o que lhe peço, em primeiro lugar, é absoluta franqueza e honestidade. De outro modo, toda a minha viagem terá sido vã. Talvez possa formular minha primeira pergunta citando relevante trecho da Biografia da Sra. Besant, por Theodore Besterman. Eis o que o autor diz sobre você: “O Sr. Krishnamurti encontra-se numa situação em que lhe é possível fazer um grande bem; a mensagem que traz ao mundo nos é utilíssima; se ele for capaz de induzir um grande e influente número de pessoas, adotarem tais pontos de vista, agindo de acordo com eles, o benefício propiciado à humanidade será incalculável. Mas, para isto, compete ao Sr. Krishnamurti compreender que, como defensor da verdade no seu mais vasto sentido, cumpre-lhe viver integralmente a verdade. Ele se tem mostrado muito franco, mas ainda precisa sê-lo mais. Até 1929 a sua vida esteve emaranhada em complexa rede de grandiosas pretensões. O Sr. Krishnamurti tem o dever de relatar-nos a verdade sobre esses fatos, por mais doloroso que lhe seja falar em público acerca de seus amigos do passado”.
Krishnamurti tomou-me a mão, num gesto quase apaixonado, e disse: “Escute. Não precisa desculpar-se. Pode perguntar tudo o que quiser, as mais indiscretas coisas, as mais íntimas. Não há segredo em minha vida e todos podem conhecer quaisquer pormenores que os interessem. Firmemos nossas relações nessa base, e isto nos evitará muitos desentendimentos desnecessários. Pergunte tudo. Continue”.
Decidi começar por um ponto, cuja melhor apresentação encontrara nesse mesmo livro de Besterman. Trata-se de um pequeno livro místico, cuja autoria se atribuiu a Krishnamurti, como havendo sido escrito por ele quando ainda menino, mas sob a direta orientação do “mestre” que o preparava para uma “iniciação”. Prossegui: “Eis o que Besterman diz sobre este assunto: “... cumpre-lhe dizer-nos o que há de verdade sobre a autoria de livros tais como “Aos pés do Mestre”, publicados com o seu nome... Cabe-me afirmar, da maneira mais singela, que enquanto o Sr. Krishnamurti não nos falar francamente sobre os anos anteriores a 1929, as pessoas inteligentes e cultas não lhe prestarão atenção.”
Krishnamurti ficou silencioso durante um segundo, e disse: “Já me fizeram antes esta mesma pergunta. Algumas pessoas se satisfizeram com a minha resposta, outras não. Para aqueles que não me conheçam bem, talvez seja difícil a princípio acreditar no que digo. Tenho de falar um pouco a meu respeito para responder à sua pergunta. Você já terá notado o quanto é péssima a minha memória para o que podemos chamar de realidades físicas. Quando você chegou hoje de manhã, não consegui lembrar-me se estivemos juntos há dois, três ou dez anos. Também não me lembro onde e como nos encontramos. Muita gente me chama de sonhador e acusa-me, com inteira razão, de ser desesperadoramente vago. Na Índia, quando estive na escola, era um caso perdido. Os professores e colegas falavam comigo, eu os ouvia e entretanto não tinha a menor noção da matéria sobre a qual haviam falado. Não me lembro se costumava pensar em determinada coisa nesses momentos, e, se o fazia, não sei em que era. Provavelmente, sonhava apenas, já que os fatos não causaram a menor impressão à minha memória. Lembro-me, vagamente, de haver escrito algo quando era menino e estava sendo educado pelo Bispo Leadbeater, mas não sei mesmo se escrevi um livro inteiro ou apenas algumas páginas. Também ignoro o que fez Leadbeater com as páginas por mim escritas; se as corrigiu, ou não, se foram conservadas ou destruídas. Também não sei se escrevi por mim mesmo ou influenciado por algum poder estranho a mim. Quisera saber. Não pretendo ser um escritor, mas parece-me que ninguém poderá jamais afirmar que um escritor é dirigido por um poder estranho ou apenas por seu intelecto e emoções próprias. Gostaria imenso de conhecer as sutilezas secretas do processo complicado desse ato a que chamamos escrever. Também eu gostaria de conhecer tudo o que se relaciona com a autoria da obra “Aos Pés do Mestre”. Vejo-me ainda sentado a uma mesa, escrevendo algo que não brotava com facilidade alguma. Isto deve ter ocorrido há cerca de 25 anos.”
“Quantos anos tem hoje”?
“Não sei ao certo. Na Índia a idade não importa tanto quanto no Ocidente, e não há registros de nascimento. De acordo com o meu passaporte, nasci em 1897. Mas não posso garantir ser essa a minha idade exata.”
A essa altura já sentia a atmosfera bastante íntima para formular a pergunta que me parecia mais difícil. Eu, pessoalmente, dava pouca importância a esse ponto, mas sabia que várias pessoas, interessadas em Krishnamurti o discutiam constantemente. “Muita gente duvida de você”, disse-lhe eu, “porque nunca negou as pretensões existentes sobre a sua pessoa. Por nunca haver dito claramente: “Tudo o que se diz sobre o fato de ser eu o Instrutor do Mundo é puro disparate; nego a verdade de tal afirmativa.”
“Nunca neguei nem afirmei ser Cristo ou qualquer outro”, replicou Krishnamurti – “Tais imputações são para mim absolutamente sem sentido.”
“Mas não para as pessoas que vem ouvi-lo”, interrompi.
“Se eu tivesse dito sim, quereriam que eu realizasse milagres, andasse sobre as águas ou ressuscitasse os mortos. Se houvesse dito que não sou o Cristo, teriam recebido isso como uma declaração imperativa e agido de acordo com ela. Acontece, porém, ser eu inteiramente contrário a qualquer autoridade em assuntos espirituais, contra quaisquer padrões criados por terceiros. É-me impossível dizer sim ou não. Provavelmente compreenderá isto melhor depois de haver estado comigo durante alguns dias, e após termos tido várias palestras. Hoje só posso dizer que não considero a minha pessoa de importância especial, quer seja Cristo, quer não o seja. O relevante é saber se o que digo pode, ou não, ser de algum auxílio para os homens. Qualquer confirmação ou negativa de minha parte suscitaria apenas expectativas idênticas por parte dos outros. Quando visito a Índia, costumam perguntar-me: “Porque usa roupas européias e come diariamente? Você não é um verdadeiro mestre. Se o fosse, jejuaria e usaria apenas um calção.” Minha única resposta a isto é que cada um ensina aquilo que o seu dever particular lhe impõe, cumprindo a todos dirigir sua própria vida. Porque Gandhi usa apenas um calção e Cristo andou sobre as águas, não se segue que deva eu fazer o mesmo. As várias classificações que atribuem à minha personalidade são sem importância. Mas havia ainda outra razão para eu não negar abertamente o que se acreditava sobre mim. Quero referir-me à Dra. Besant. Tivesse eu dito não ser o Mestre do Mundo, teriam exclamado: “A Sra. Besant é mentirosa!” Uma negativa categórica tê-la-ia ofendido e magoado. Não dizendo nada, poupei-a sem prejudicar a quem quer que fosse.”
“E porque continuou fazendo conferências, mesmo depois de haver renunciado à sua sociedade?”
Krishnamurti pareceu surpreso. “Nunca pensei sobre isto”, disse ele depois de pequena pausa, “continuei a falar por hábito, creio eu; estava acostumado a fazê-lo desde a minha adolescência; tornou-se para mim uma espécie de obrigação e apenas continuei a fazê-lo. Creio que naqueles dias nunca estava inteiramente consciente de todas as minhas ações diárias; anos depois é que me tornei lúcido, deixando de agir como um sonhador”.
“Acredito em você, Krishnaji, mas julga que meus leitores o acreditarão?”
“Nada posso fazer nem por você nem por eles, se não crerem. Não lhe estou escondendo nada; digo-lhe toda a verdade. Presumo que as pessoas dotadas de um sentimento extremamente desenvolvido dos fatos, e de boa memória, devem considerar-me exasperante. Mas nada posso fazer”.
Não falara mais com Krishnamurti depois que dissolvera a imensa sociedade, e estava ansioso por conhecer melhor aquela momentosa decisão sua. Só depois disso poderíamos voltar-nos para assuntos mais importantes.
“Quando decidiu abrir mão daquela sociedade organizada para você e renunciar a todas as suas posses terrenas? E qual foi o verdadeiro motivo que o induziu a isso?”, perguntei. “Foi em 1929 que pela primeira vez falou sobre esse ponto?”
“Não. Um ou dois anos antes. Mas até 1929 minhas idéias relativas a esse assunto não estavam inteiramente claras. Falei sobre isso com Rajagopal (o melhor amigo de Krishnamurti e o último chefe executivo da Ordem da Estrela); tivemos longas discussões e, mais tarde, comuniquei à Dra. Besant a minha decisão. Ela disse apenas o seguinte: “Para mim, você é o Instrutor, seja qual for a sua decisão. Não posso compreender essa resolução, mas terei de respeitá-la.” Durante algum tempo mostrou-se bastante abalada, mas era uma esplêndida mulher e por fim pareceu concordar com o que eu estava fazendo. Desisti de minha sociedade porque acabei compreendendo, sem a menor sombra de dúvida, que qualquer coisa desse gênero é sempre um obstáculo quando desejamos encontrar a verdade. Igrejas, dogmas, rituais, nada mais são que tropeços no caminho que conduz ao verdadeiro”.
“Mas ainda hoje continua fazendo conferências, pois não?”
“Sim, realmente. Mais do que nunca sinto hoje ser-me possível ajudar os homens. De fato, não lhes posso dar a felicidade nem a verdade. Ninguém o pode fazer. Posso, no entanto, auxiliá-los a discernirem sobre o caminho que leva a verdade. No ano passado fui à Austrália e houve vezes em que me dirigi a dez mil pessoas. Dentro de poucos meses é provável que faça uma série de conferências na América do Sul”.
Pretendia interrogar Krishnamurti sobre sua situação financeira e o momento me pareceu bem apropriado. “Costuma ganhar bastante quando realiza essas séries de conferências?”
“Nada, absolutamente”, respondeu Krishnamurti; “tenho apenas as despesas pagas”.
“Fala-se tanto com relação à sua situação financeira”, disse eu, que para mim seria ótimo se você pudesse esclarecer-me a tal respeito. Alguns o acusam de haver aceitado grandes fortunas que lhe foram deixadas por certas pessoas bem ricas da Europa e da América, enfim, para resumir, dizem que você é praticamente milionário.”
Krishnamurti riu. “Sabe o que eu possuo? Uns dois ou três ternos de roupa, poucos livros, alguns objetos pessoais e nenhum dinheiro. Tenho alguns bons amigos que me sustentam; convidam-me, pagam minhas modestas despesas quando viajo. Veja Carmel, por exemplo. Estou hospedado no hotel como convidado de um velho amigo que tem uma casa nas vizinhanças e que sabe o quanto adoro trabalhar aqui. Se eu tivesse dinheiro, dá-lo-ia, como já o fiz uma vez. Minhas necessidades são tão poucas que o que recebo é bastante. Se ninguém me desse nada, eu trabalharia para sustentar-me”.
“Estou satisfeito por termos esclarecido esse ponto”, disse eu; “de agora em diante não precisarei mais sentir-me como um advogado de acusação, e podemos passar o tempo discutindo coisas que realmente sejam de interesse.”
“Então, vamos embora, vamos jantar”, exclamou Krishnamurti, levantando-se. “Jantamos cedo, aqui não fazemos como vocês na Inglaterra. Geralmente deito-me pouco depois das nove, e levanto-me antes das seis da manhã.”
Já era noite lá fora, e de automóvel seguimos vagarosamente para o hotel de Krishnamurti. A estrada nos levava por sobre escarpados penhascos e através de pinheirais, enquanto lá do fundo subia o troar das ondas batendo contra os rochedos. O caminho era estreito e íngreme e existiam muitas curvas perigosas. De um dos lados parecia haver um profundo precipício. “Não tenho dirigido muito estes dias”, disse Krishnamurti com a mão colocada displicentemente na direção, e acrescentou com uma risada: “Espero tenha feito um seguro de vida antes de deixar a Inglaterra.”
O tempo estava maravilhoso na manhã seguinte, e fui buscar Krishnamurti para um passeio. Ainda não havíamos andado muito quando chegamos a uma clareira entre os pinheiros, lá em cima dos outeiros com uma vista imensa de toda a pitoresca beira-mar. Achamos mais fácil conversar sentados. Krishnamurti sentou-se à oriental, com as pernas cruzadas sobre o chão coberto de urzes. Eu já havia organizado um plano para conversarmos diariamente sobre certos e definidos assuntos e esperava que isto evitasse nos perdêssemos, introduzindo ao mesmo tempo certa ordem em nossas palestras.
“Qual é sua mensagem hoje?” comecei.
A resposta de Krishnamurti veio em tom muito definido: - “Não tenho mensagem alguma. Se tivesse, muitas pessoas a aceitariam cegamente e procurariam viver de acordo com ela, simplesmente por causa da autoridade que insistem em conferir-me.”
- “Mas que diz a quem lhe vem pedir auxílio?"
- “Muitas pessoas perguntam-me se experiências anteriores lhes podem servir de aprendizado”.
- “E qual é sua resposta?” “Que não podem.”
- “Não!?”
- “Decerto que não. Não se aprende a verdade espiritual através de experiências passadas. Não compreende isso? Imaginemos que você tenha tido um profundo sofrimento e haja aprendido como lutar contra ele. Essa experiência o induzirá a aplicar o mesmo método para dominar a dor no seu próximo sofrimento.”
- “E isso não me parece nada errado.”
- “Mas está errado. Em vez de fazer algo diferente, você estará apenas aplicando um método morto à vida. Sua experiência anterior ter-se-á transformado numa prescrição, num remédio. Mas a vida é por demais complicada, sutil, para isso. Ela nunca se repete; não há dois sofrimentos idênticos. Devemos tratar cada novo sofrimento ou alegria da maneira específica que cada experiência, que é única, requer.”
- “E como pode isso ser feito?”
- “Eliminando da memória as experiências anteriores; destruindo toda lembrança de nossas ações e reações.”
- “Que resta depois de as havermos destruído todas?”
- “Uma preparação interna que nos aproxima da verdade. Não devemos agir consoante antigos hábitos, mas sim da maneira que a vida exige - espontaneamente, ao impulso do momento.”
- “Isto se aplica a tudo na vida?”
- “A tudo. É necessário que tentemos eliminar de nossa vida todos os velhos hábitos e modos de agir, porque não há dois momentos, na vida de quem quer que seja, perfeitamente semelhantes.”
- “Mas tudo isso é apenas negativo, e nada encontro de positivo na sua teoria.”
Krishnamurti sorriu e acercou-se mais de mim: “Não precisa procurar o que é positivo; não force. Ele está sempre aí, embora escondido sob uma enorme pilha de velhas experiências. Examinemo-las todas e a verdade - ou o que você chama de positivo aí estará. Vem automaticamente. Nada o pode impedir.”
Meditei acerca de suas palavras durante algum tempo e depois disse: “Você acaba de empregar a palavra “verdade”. Que é a verdade, segundo seu ponto de vista?”.
- “Dê a isto o nome de verdade, libertação, ou mesmo de Deus. É tudo a mesma coisa. Para mim a verdade é a libertação da mente de toda a bagagem das lembranças”. Esta definição era nova para mim, mas antes que eu dissesse algo, continuou Krishnamurti: “A verdade é a percepção constante da vida dentro e fora de nós. Está compreendendo?” Sua voz se tornara quase insistente.
- “Estou, mas por favor explique o que quer dizer por “percepção”.
Krishnamurti aproximou-se ainda mais de mim, e sua voz se tornou realmente mais persuasiva. “O que importa é vivermos integralmente cada momento de nossa vida. Esta é a única e verdadeira libertação. A verdade não é nada abstrato, nem é filosofia, nem ocultismo, nem misticismo. É a vida de todos os dias, é a percepção do significado e da sabedoria da vida em derredor. A única vida com a qual devemos preocupar-nos é a atual e cada um de seus instantes. Mas, para compreendê-la, torna-se mister libertar nossa mente de todas as lembranças e deixar que ela aprecie espontaneamente o momento presente.”
- “Creio que por apreciação espontânea você quer dizer uma apreciação ditada exclusivamente pelas circunstâncias daquele momento exato, pois não?”
- “Isso mesmo - não pode haver outra espontaneidade da vida; e isto é o que eu chamo a verdadeira percepção. Compreende?”
- “Compreendo, mas duvido que tal percepção possa realmente ser expressa por palavras... Creio que ela só poderá ser compreendida se realmente a experimentarmos em nós mesmos. Nenhuma descrição pode explicá-la satisfatoriamente.”
Krishnamurti não respondeu imediatamente. Estava deitado no chão, olhando para o céu.
- “Você tem razão”, disse ele vagarosamente; “mas que se pode fazer?”
- “Realmente, Krishnaji, que se pode fazer? Fiquei pensando ontem no que quereria você realmente dizer quando falava em ajudar os seus semelhantes, falando-lhes. Será possível a alguém, que não tenha alcançado esse estado de percepção de que você fala compreender o que isso significa? Aqueles que já chegaram a esse estado não necessitam ouvir falar nele.”
Krishnamurti silenciou novamente e percebi que ele estava impressionado pelo tom que nossa conversa tomara. Disse depois de algum tempo: “E, no entanto, esta é a única maneira pela qual podemos ajudar os outros. Sou de opinião que esclarecemos as mentes das pessoas quando discutimos essas coisas com elas. Mais tarde elas perceberão a verdade por si mesmas. Não concorda?”
Eu sabia que Krishnamurti não gostava de perguntas que parecessem nascidas de simples curiosidade ou que resultassem de especulação abstrata; não obstante, perguntei-lhe: “Não acha que os limites de tempo e espaço deixarão de existir desde que estabeleçamos dentro de nós um estado de constante percepção da vida?”
- “Sem dúvida. O passado é apenas o resultado de lembranças. É algo morto. Desde que já não carreguemos conosco esse peso, deixa de haver limites de tempo em relação ao passado. E o mesmo se aplica, de maneira ligeiramente diferente, ao futuro. Mas toda esta discussão sobre ver o futuro ou o passado provém apenas de curiosidade puramente intelectual. Em todas as minhas palestras há sempre umas dez pessoas que me interrogam sobre suas reencarnações futuras e passadas. Como se importasse o que elas foram ou virão a ser. Somente o presente é real. Quer nossa vista possa penetrar o futuro, quer atravessar os continentes, isto nada exprime no tocante à espiritualidade.”
- “Não acredita que uma percepção consciente através do tempo e do espaço possa ser de grande valor? Não acha que os resultados obtidos pela percepção oculta de Rodolf Steiner sejam de real importância para a humanidade?”
- “Nunca estudei a obra de Steiner, e desejaria que me falasse mais sobre ela. Tudo o que sei sobre Steiner se resume em alguns comentários ocasionais da Dra. Besant. Creio que ela tinha grande admiração pelos dons extraordinários de Steiner, e sentia que suas relações tivessem de ter sido interrompidas, mas eu nunca estudei os seus trabalhos convenientemente. Quanto às percepções ocultas, não as considero propriamente espirituais: são apenas um determinado método de investigação. E é tudo. Podem ser espirituais em certos momentos, mas não o são sempre, nem necessariamente.”
- “Nunca leu nenhum dos livros de Steiner?”
- “Não, nem li jamais qualquer dos outros filósofos...”
- “Steiner não era um filósofo”, interrompi.
- “Eu sei. Quis apenas dizer escritores de assuntos filosóficos ou semelhantes. Não consigo lê-los. Sinto muito, mas me é impossível. Viver e reagir à vida é tudo o que me interessa. Toda teoria me é insuportável”.
Embora já fosse quase meio dia e começasse a fazer muito calor, Krishnamurti sugeriu um passeio até à praia. “Está escrevendo alguma coisa atualmente?”, perguntei quando chegávamos à estrada que levava ao mar.
- “Sim, estou preparando um livro. Não se trata de matéria seguida, é apenas um livro de pensamentos.”
- “Que me diz sobre sua poesia?”
- “Sinto a poesia, mas de certo modo não posso escrevê-la atualmente.”
- “Que livros costuma ler? Lembro-me que em certa ocasião você lia muito e gostava de escolher seus amigos principalmente entre artistas e escritores.”
- “Que livros lemos geralmente?”, respondeu Krishnamurti, ligeiramente embaraçado.
As perguntas sobre seus hábitos pessoais pareciam sempre embaraçá-lo. Notei isto várias vezes durante minha estada em Carmel. Embora ele extraísse todo o seu ensinamento de experiências pessoais e preferisse falar de maneira também pessoal, pareceu-me que se retraía todas as vezes que eu lhe fazia perguntas não relacionadas diretamente com sua missão na vida ou relativas a seus gostos ou hábitos individuais. As discussões para a simples satisfação de curiosidade intelectual pareciam desagradar-lhe. Isto não resultava, creio eu, do que costumamos chamar de modéstia natural. Parecia antes desejar ele conservar-se permanentemente num plano de percepção interior, não se sentindo vontade sempre que se via obrigado a transportar-se rapidamente para um plano de discussão intelectual. Apreciava, porém, a versa habitual sobre política, música, teatro ou viagens. Era só quando o mundo exterior era colocado em relação intelectual direta com sua personalidade que se furtava a tal interrogação.
- “Não sou especialista em nada”, disse Krishnamurti, respondendo à minha primitiva pergunta. “Leio tudo o que me parece interessante - Huxley, Lawrence, Joyce, André Gide...”
- “Foi realmente sincero quando me disse que nunca lê filosofia?”
- “Mas, inteiramente! Para que leria eu filosofia?”
- “Talvez para aprender alguma coisa.”
- “Julga você sinceramente que se aprenda algo nos livros? Podemos acumular conhecimento, aprender fatos e técnicas, nunca a verdade, a felicidade, ou qualquer das coisas que interessam. Você pode ler para seu prazer, por mil outros motivos, mas não para aprender coisas essenciais. Só podemos aprender vivendo e tendo consciência da vida que é inteiramente nossa, não da vida de outrem”.
- “Quererá isto dizer que, em sua opinião, nada pode ser aprendido nos livros, ou por meio das experiências alheias?”
- “Vou refrear-me e não direi definitivamente sim, embora me sinta bastante inclinado a dizê-lo. O conhecimento dos outros apenas cria barreiras dentro de nós mesmos, barreiras que ficam no caminho de uma reação impulsiva à vida. Na verdade é mais fácil viver aprendendo por meio de experiências alheias, estudando Aristóteles, Kant, Bérgson ou Freud; mas isto não é viver nossa própria vida, enfrentar a realidade. É apenas fugir à realidade escondendo-nos atrás de um anteparo criado por outros”.
- “Acha que isso também se aplica à religião?”
- “Sim. As religiões oferecem aos homens autoridades em lugar da verdade; dão-lhes muletas em vez de lhes fortalecerem as pernas; suprem-nos de remédios em lugar de os incitarem a seguir seu próprio caminho, à procura da verdade por si mesmos. Acho que nenhuma das igrejas de hoje tenha muito que ver com a verdade.”
- “Entre as milhares de pessoas que vêm ouvi-lo, há muitas que o interrogam acerca de assuntos religiosos?”
- “A maioria. Há três perguntas que se repetem constantemente, e não há conferência completa sem elas, quer eu fale na Índia, quer na Austrália, na Europa ou na Califórnia. Deduzo de sua popularidade ligarem-se elas aos três problemas espirituais mais urgentes do homem moderno. São questões relativas ao valor da experiência, da oração e da religião em geral.”
Krishnamurti já me havia dado sua opinião sobre a experiência, e a religião. Perguntei-lhe, então: “Qual é sua atitude em relação à oração?”
- “Na minha opinião, a oração em que pedimos coisas a Deus é inteiramente errada.”
- “Mesmo se pedirmos a Deus auxílio para alcançarmos a percepção sobre a qual você esteve falando?”
- “Mesmo nesse caso. Como pode ser espiritual - e supõe-se, presumo, ser a oração coisa espiritual - algo que pede uma recompensa? Isto não é espiritualidade, mas economia, ou seja qual for o nome que lhe queira dar. Dentro da verdade espiritual, as coisas são o que são; não pode haver pedidos, promessas ou recompensas. As coisas acontecem na vida simplesmente porque têm de acontecer. Uma recompensa tem de ser alguma coisa fixa, estacionária, se compreende o que quero dizer. A vida espiritual, a verdadeira vida deve estar em contínuo movimento, flutuando, viva.
- “Mas não poderá a oração ser apenas uma ponte sobre a qual nos movemos em direção à percepção interior?”
- “Pode, mas não é isto o que os homens geralmente compreendem por oração. O que você quer dizer agora é simplesmente um estado de vida real, de expectativa interior. Isto nos identifica com a verdade. Percebe a diferença?”
- “Percebo; sendo assim, presumo que você nega todas as formas “cristalizadas” inventadas pelo homem para atingirmos a verdade, tais como a meditação, a ioga ou outros métodos de exercício mental.”
- “Perfeitamente. Como podemos esperar conseguir alguma coisa, que se encontra constantemente flutuando, por meio de um método, que, segundo suas próprias palavras, está cristalizado - ou, segundo as minhas, está morto? Muitas pessoas me interrogam sobre o valor da meditação. Respondo-lhes que não vejo motivo para meditarem sobre um determinado assunto em vez de o fazerem no curso de toda a vida; isso por me parecer que a concentração deliberada sobre uma idéia determinada, eliminando todas as outras, cria conflito interior... Acho mais sábio meditar sobre qualquer assunto que penetre em nossa mente: quer seja o que faremos nesta tarde, quer sobre a roupa que usaremos. Tais pensamentos são tão importantes - se atendidos com toda a nossa percepção interior quanto qualquer filosofia. O assunto sobre o qual pensamos importa menos que a qualidade de nosso pensar. Tente completar um pensamento em vez de bani-lo, e sua mente se tornará um ótimo instrumento criativo, deixando de ser um campo de batalha de pensamentos contraditórios. Sua meditação se desenvolverá, então, num estado de constante vigilância mental. É isso o que entendo por meditação.”
Lembrei-me da resposta de Keyserling à minha pergunta acerca de meditação e impressionou-me a similaridade dos pontos de vista defendidos por esses dois homens tão diferentes. “Keyserling”, falei, “há bem pouco tempo me disse algo bem parecido com isto. Afirmou-me que para ele a meditação nada mais era que enfrentar a realidade.”
- “Concordo com ele nesse ponto. Só encontramos a verdade pela constante percepção da vida. Não devemos tentar viver seguindo os padrões alheios, porque forçosamente os padrões de dois homens diferentes nunca serão realmente idênticos.”
- “Significa isto que você crê na absoluta igualdade dos homens?”
- “É certo que acredito, mas não da maneira como os comunistas o compreendem. Porque prego a igualdade das raças, das religiões e das castas, os comunistas julgam pregar eu o Comunismo. Freqüentemente vêm comunistas norte-americanos visitar-me em Ojai e dizem: “Cremos em você, porque prega as coisas que fazemos. Porque não entra para o nosso partido?”
Eles não compreendem que não só eu nunca entraria para o seu partido, ou para outro qualquer, como não concordaria com seus métodos. Só se realiza a igualdade entre os homens por um conhecimento maior, uma compreensão mais profunda, melhor educação, e fazendo com que os homens aprendam o significado da vida. Como conseguir isso, se os seus próprios líderes não o sabem, se eles mesmos agem como autômatos, pregando seus evangelhos particulares, que não emanam de uma percepção interior da vida e de suas necessidades - o que significa segundo a própria verdade, mas apenas repetindo constantemente certas fórmulas inventadas por outros? Nunca alcançaremos a igualdade tomando os bens aos homens. O que é necessário é tirar-lhes o instinto de posse. Isto não se aplica apenas à terra e ao dinheiro, à fábrica ou à capa de peles, mas também a um livro, a uma flor, à amante ou ao filho. Não quero dizer que não devamos possuir ou curtir qualquer uma dessas coisas. Sem dúvida, o devemos! Mas gozemo-las apenas pela alegria que transmitem, e não pela sensação de prazer que a sua posse nos dá. Para que algo possa ser feito, é indispensável seja modificada esta atitude fundamental. Nada se modificará se apenas tirarmos as coisas ao rico e as dermos ao pobre, desenvolvendo assim seu sentimento de cobiça e posse.”
(Do livro de Rom Landau “God is my Adventure”, tradução de Marina Brandão Machado).
Publicado pela ICK, em 1981 no Boletim CARTA DE NOTÍCIAS nº 4