quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O alcançar da Realidade

PERGUNTA: Vós alcançastes a Realidade. Podeis dizer-nos o que é Deus?

KRISHNAMURTI: Senhores, como sabeis que alcancei a Realidade? Para o saberdes, seria necessário que tivésseis também alcançado a Realidade. Essa não é uma resposta apenas para disfarçar. Para conhecerdes uma coisa, precisais tê-la em vós mesmos. É preciso que tenhais tido, também, a “experiência”, e por isso pouca significação tem o vosso dito de que eu alcancei a Realidade. E que importância tem, se eu alcancei ou não a Realidade? O que estou dizendo não é a Verdade? Ainda que eu seja o mais perfeito ser humano, se o que digo não é a verdade, haveria razão para me ouvirdes? Ora bem, se eu alcancei a Realidade, isso nada tem que ver, absolutamente, com o que digo, e o homem que rende culto a ou homem, por ter este alcançado a Realidade, está em verdade, rendendo culto à autoridade, e essa razão, não encontrará, nunca, a Verdade. E que importância tem compreender a Realidade alcançada por outro homem, que importância tem conhecer esse homem?

Sei que a tradição nos aconselha “ficar com homem que alcançou a Realidade”. Mas como podeis saber que um tal homem alcançou a Realidade? O que podeis fazer é, unicamente, acompanhá-lo, o que, hoje em dia, é extremamente difícil. Há mui pouca gente boa, no verdadeiro sentido da palavra “boa”, que não esteja à procura de algo, que não esteja com o interesse em alguma coisa. Aqueles que estão à procura de algo, ou com o interesse em alguma coisa, são, puramente, exploradores, sendo, por isso, dificílimo achar-se um companheiro digno de nosso amor. Divinizamos aqueles que alcançaram a Realidade, com a esperança de que nos dêem alguma coisa, e isso constitui, mais uma vez, uma falsa relação.

Como pode o homem que alcançou a Realidade, comunicar-nos algo, se não existir o amor? Esta é a nossa dificuldade. Em todas as nossas discussões, não sentimos verdadeiramente amor recíproco, entre nós, e suspeitamos sempre uns dos outros. Vós desejais de mim alguma coisa, desejais que eu vos ensine algo, que vos mostre a realidade, ou desejais ficar em minha companhia, e tudo isso indica que não há, em vós, o amor. Desejais uma coisa, e por essa razão o vosso intuito é explorar. Quando realmente amamos uns aos outros, há comunhão imediata. Em tal caso, não importa se alcançastes a realidade e eu não, se sois grande ou humilde. E, já que temos o coração emurchecido, Deus assumiu para nós desmedida importância. Isto é, aspirais a conhecer Deus, porque vosso coração já não sabe cantar, e, sais, assim, atrás do cantor, a pedir-lhe que vos ensine a cantar. Poderá ele ensinar-vos a técnica, mas a técnica não vos dará a capacidade de criar. Não podeis ser músicos pelo simples falo de saberdes cantar. Podeis saber todos os passos de uma dança, mas se não há força criadora em vosso coração, funcionais como simples máquinas. Não podemos amar, quando nosso intuito é, meramente, conseguir um resultado. Não há ideal de espécie alguma, porque ideal significa algo que desejamos alcançar. A beleza não é um alvo para se alcançar, ela é a realidade, ela existe agora, não amanhã, e se houver amor, compreendereis o desconhecido, sabereis o que é Deus e não necessitareis que alguém vô-lo diga, e esta é a beleza do amor. Ele é a própria eternidade. Mas, como não possuímos o amor, procuramos Deus, para que nos dê o amor. Se houvesse o amor real, não o amor ideal, sabeis como seria diferente este mundo? Seriamos todos verdadeiramente felizes. E não faríamos, portanto, a nossa felicidade depender das coisas, da família, dos ideais. Seríamos felizes, e, portanto, as coisas, a família, os ideais, não dominariam as nossas vidas. Tudo isso são coisas secundárias. Mas, porque não amamos e porque não somos felizes atribuímos importância às coisas, já que nos darão a felicidade, e uma dessas coisas a que damos importância é Deus.

Ora bem, quereis que eu vos diga o que é a Realidade. Mas pode o indescritível ser expresso em palavras? Pode-se medir o imensurável? Pode-se aprisionar o vento numa mão fechada? Se o fazeis, isso que apanhais é o vento? Se medis o imensurável, isso que medis é o real? Se reduzis alguma coisa a uma fórmula, essa coisa é o real? Absolutamente não, porque no momento que descreveis o que é indescritível, não é mais o real, isso o que foi descrito. No momento em que traduzis o incognoscível no que conheceis, não é mais o incognoscível, o que traduzistes – entretanto, é sempre esse o alvo de nossas aspirações. A todo momento queremos saber, porque teremos então continuidade, teremos então permanência e felicidade definitiva. Queremos saber, porque não somos felizes, porque estamos alutar e a sofrer, porque estamos esgotados e degradados; todavia, ao invés de compreendermos , simplesmente, que estamos degradados, que tudo está em confusão, queremos sair do que é conhecido, para algo que também seja conhecido. Aquilo a que atribuímos importância é sempre o conhecido, e por essa razão não seremos jamais capazes e encontrar o Real. Conseqüentemente, em vez de procurardes aquele que alcançou a Realidade, ou perguntardes o que é Deus, porque não aplicais toda a vossa atenção à percepção do que “é”? Encontrareis, então, o desconhecido, ou, antes, o desconhecido vira ao vosso encontro. Se compreendêsseis aquilo que e conhecido, “experimentareis” aquele silêncio extraordinário, que não podemos atrair, que não podemos forçar, aquele silêncio extraordinariamente criador, aquele vazio fecundo, no qual, somente, pode entrar a Realidade. Não pode a realidade manifestar-se àquele que quer “vir a ser”, àquele que luta; ela só pode manifestar àquele em que há o “ser”, àquele que compreende o que “é”. Assim como a solução de um problema está contida no próprio problema, assim também a realidade está contida no que “é”, e se formos capazes de compreender o que “é”, compreenderemos a verdade. Mas, é extremamente difícil estarmos cônscios de nossa, própria estupidez, de nossa própria avidez, malevolência, ambição, etc. O próprio fato de estarmos cônscios do que “é”, representa a Verdade. É a Verdade que liberta, e não a nossa luta por sermos livres. Assim, pois, não está longe de nós, a Realidade, mas nós a distanciamos, porque nos servimos dela como de um meio para a nossa própria continuidade. A Realidade está, presente aqui, neste momento, imediatamente ao nosso alcance. O eterno, o atemporal existe agora, e não pode o agora ser compreendido por aquele que está preso na rede do tempo. Para se libertar o pensamento do tempo requer-se ação, porquanto a mente é preguiçosa, indolente, razão por que está sempre a criar novos obstáculos. Essa libertação só é possível mediante meditação correta, que significa ação completa, e não ação contínua, e a ação completa só pode ser compreendida quando a mente compreende o processo de continuidade, que é a memória, não a memória “fatual” relativa aos fatos) mas a memória psicológica, e enquanto estiver funcionando essa memória, não poderá a mente compreender o que “é”. – E tornar-se a nossa mente, todo o nosso ser, extraordinariamente criador, passivamente vigilante, quando compreendermos o significado do perecer, porquanto no perecer existe renovação, ao passo que na continuidade existe a morte, a decomposição.

Krishnamurti – 23 de novembro de 1947
Do livro: Uma Nova Maneira de Viver – editado em 1950 pela editora ICK
Tradução de Hugo Veloso

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