terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O pensamento é o esqueleto da existência do eu

O largo rio estava tranquilo todavia, com o movimento de um moinho. Não se via uma onda, e a brisa matinal não havia ainda despertado porque era muito cedo. As estrelas se refletiam na água, claras e cintilantes, e o luzeiro da manhã era a mais brilhante de todas.  As árvores do outro lado do rio estavam escuras e a aldeia que se encontrava entre elas ainda dormia. Nenhuma só folha se agitava, e as brancas corujas estavam tagarelando no velho tamarindo; esta era a sua casa, e quando o sol desse sobre esses ramos, nele se acalentariam. Os ruidosos papagaios verdes também estavam quietos. Todas as coisas, inclusive os insetos e as cigarras, se achavam em suspenso e em adoração, a espera do sol. O rio permanecia imóvel, e os habituais botes pequenos com suas escuras lâmpadas, estavam ausentes. Pouco a pouco, sobre as sombrias e misteriosas árvores, surgiu a primeira luz do amanhecer. Todas as coisas viventes permaneciam imóveis no mistério desse momento de meditação. A própria mente era atemporal, imensurável; não havia padrão com que medir a duração destes instantes. Havia tão somente um ligeiro movimento e despertaram os papagaios e as corujas, os corvos e os mainas, os cachorros e uma voz que se escutou do outro lado do rio. E, subitamente, o sol estava quase em cima das árvores, dourado e oculto pelas folhas. Agora, o grande rio já estava desperto e movendo-se; fluíam o tempo, a longitude, a largura e o volume; e começou toda a vida, que jamais termina.    

Que bela era essa manhã, a pureza da luz e o caminho de ouro que o sol traçava sobre essas águas vivas! Era-se o mundo, o cosmos, a impercebível beleza e o júbilo da compaixão. Só que não o “eu” não estava aí; se estivesse, nada disso haveria sido. O “eu” é que introduz o princípio e o fim, para começar outra vez numa cadeia interminável. 

No tornar-se, no vir-a-ser, há incerteza e instabilidade. E em nada há estabilidade absoluta e, portanto, há clareza. O que é totalmente estável não morre jamais; a corrupção está no vir-a-ser. O mundo é propenso ao vir-a-ser, ao benefício, e é assim que há o temor da perda e o medo da morte. A mente deve passar por essa pequena abertura que ela mesma fabricou, o “eu” — para se dar com este imenso nada cuja estabilidade o pensamento não pode medir. O pensamento deseja capturá-lo, cultiválo e colocá-lo a venda. Para poder render-lhe culto tem que faze-lo aceitável e, portanto, respeitável. O pensamento não pode colocá-lo em nenhuma categoria; por conseguinte, isso deve ser forçosamente uma ilusão e uma armadilha; ou deve converter-se em algo para poucos, para os seletos. E, assim, o pensamento se dedica a seus próprios hábitos danosos, assustado, cruel, insubstancial e nunca estável, ainda que sua presunção assegure que há estabilidade em suas ações, em sua exploração, no conhecimento que tenha acumulado. O sonho se torna uma realidade que ele mesmo tem nutrido. O que o pensamento tem como real, não é a verdade. O nada não é uma realidade, porém, é a verdade.  

A pequena abertura, o eu, é a realidade do pensamento, esse esqueleto sobre o qual tem construído toda sua existência — a realidade de sua fragmentação, a angústia, o sofrimento e seu amor. A realidade de seus deuses ou de seu único deus é a meticulosa estrutura do pensamento, suas orações, seus rituais, sua adoração romântica. Na realidade não há estabilidade nem clareza pura. O conhecimento do eu é tempo, longitude, largura e volume; pode acumular-se, usar-se como uma escada para chegar a ser alguém, para melhorar, para mudar. Este conhecimento, de modo algum libertará a mente da carga de sua própria realidade. O eu mesmo é a carga; a verdade disto está em vê-lo, e essa liberdade não é a realidade do pensamento. O ver é o fazer. O fazer surge da estabilidade, da clareza, do nada

Diário II de Krishnamurti — Krishnamurti – 23 de abril de 1975

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