segunda-feira, 2 de julho de 2012

Sobre a inocência que produz o vazio da mente

As nuvens acumuladas sobre a linha do horizonte formavam um magnífico espetáculo de luz e cor que só era interrompido no poente claro e luminoso. Algumas eram de aspecto ameaçador, negras e carregadas de chuva e trovão, em contraste com a delicadeza das nuvens brancas que irradiavam luz e esplendor. Empilhadas umas sobre as outras, numa gama infinita de forma e tamanho, elas transmitiam incrível vigor e beleza. Apesar da aparente imobilidade, seu interior era extremamente violento, e nada poderia deter-lhe a avassaladora grandeza. Do poente, uma brisa suave impelia aquelas gigantescas nuvens na direção dos montes que com elas formavam um imponente cenário de sombra e luz. A vegetação que cobria os morros e as cidadezinhas ali existentes ressentia-se do longo período de estiagem; com a chegada de mais um inverno, não tardariam as árvores a colorir-se de verde para, em seguida, perder novamente todas as suas folhas. A estrada era uma reta cercada de árvores frondosas e o carro mantinha-se em alta velocidade, até mesmo nas curvas. A velocidade é a razão de ser do automóvel, cujo desempenho, naquela manhã, era excepcional. O carro vinha colado à pista, talhado para aquele papel que tão bem desempenhava. Logo estávamos na cidade (Roma), mas aquelas nuvens imensas pendiam sobre o horizonte em ameaçadora expectativa.
No completo silêncio da noite, em Circeo, interrompido apenas pelo pio intermitente da coruja, enquanto repousávamos na pequena cabana no meio do bosque, o êxtase da meditação invadiu-nos o ser. Sem o mais leve frêmito do pensamento e suas sutilezas, ele fluía sem cessar, paralelamente à mobilidade do cérebro, que, do vazio, tudo observava. Este vazio desconhecia toda forma de saber e jamais conhecerá o espaço ou tempo. Era um vazio de natureza transcendente. Nele havia a fúria devastadora da tempestade, a comoção do universo em explosão, a inexprimível fúria da criação. A vida, o amor e a morte estavam ali contidos, e nada seria capaz de preencher, transformar ou encobrir aquela imensidão. A meditação se passava no supremo êxtase desse vazio.
O sutil inter-relacionamento entre a mente, o cérebro e o corpo é a essência da difícil arte de viver. Surge o sofrimento quando um desses fragmentos predomina entre os demais e a mente se torna incapaz de controlar o cérebro ou o organismo físico; quando existe harmonia entre o corpo e o cérebro, a mente deixa de ser mero joguete de ambos. O todo contém o fragmento, mas a parte jamais poderá abarcar o todo. A harmoniosa convivência daqueles dois elementos exige extrema sensibilidade e inteligência, quando impedidos de forçar, discriminar ou dominar. Efetivamente, o intelecto pode danificar até mesmo destruir o corpo, e este, por sua vez, embotado e insensível, corrompe e causa deterioração do intelecto. Ao descuidarmos do corpo, na complacência e satisfação dos próprios desejos e apetites, concorremos para o seu embrutecimento e insensibilidade, o que conduz à letargia do pensamento. E o requinte e astúcia do pensamento conduzem ao desleixo do corpo, que, por sua vez, afeta e distorce o pensamento. O excesso de peso e a gordura interferem no delicado mecanismo do pensar e este, ao tentar escapar aos conflitos e problemas de sua própria criação, afeta o organismo. A capacidade de acompanhar o movimento veloz e sutil da mente exige grande sensibilidade e harmonia do corpo e do cérebro. A mente, então, deixa de ser mero joguete do cérebro que age de forma mecânica.
A percepção da necessidade vital da mais completa harmonia entre o corpo e o cérebro os torna sensíveis e isentos de qualquer maneira de domínio. A percepção da verdade é definitiva, seja ela negada, seja evitada ou sublimada. A compreensão do fato, e não a sua avaliação, é fundamental. Percebendo-se esta verdade, o cérebro torna-se consciente dos hábitos, como fatores de deterioração do corpo, banindo toda espécie de controle e disciplina, impostos pelo pensamento. Insensibilizando-se através do controle ou da repressão, o corpo conhece a decadência e a deterioração.
Ao acordarmos, quando já não havia o ruído dos carros subindo a ladeira, o perfume do bosque impregnava a atmosfera e a chuva batia de leve na janela; mais uma vez, aquela estranha benção inundava o quarto com a fúria da tempestade, o ímpeto de um rio caudoloso e o poder da “inocência”. Tamanho o vigor daquela energia que toda forma de meditação findava, e a sensibilidade do cérebro nascia de seu próprio vazio. Apesar da sua intensidade ou até mesmo por causa dela, permaneceu viva e atuante por longo tempo. Diante daquela benção, o cérebro tornou-se vazio. Da destruição dos pensamentos, dos sentimentos e visões restava o vazio em que nada existia.
Krishnamurti — 03 de outubro de 1961

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