Há muitos que afirmam que a disciplina é necessária, senão todo sistema social, econômico e político, deixaria de existir; que para se fazer isto ou aquilo, para se conhecer a Deus, necessita-se disciplina. É necessário seguir determinada disciplina, porque sem disciplina não se pode controlar a mente, sem disciplina nos excedemos.
Eu, porém, desejo conhecer a verdade contida na questão e não o que Sankara, Buda, Patanjali, ou outro qualquer disse. Desejo saber qual é a verdade a esse respeito. Não desejo depender de nenhuma autoridade, para descobrir. Eu imporia disciplina a uma criança? Disciplino uma criança quando não tenho tempo, quando estou impaciente, irado, quando quero obrigá-la a fazer alguma coisa. Mas se ajudo a criança a compreender o problema de porque a criança está procedendo de tal ou tal maneira, então, de certo, a disciplina é desnecessária. O que é necessário é despertar a inteligência, não acham? Se for despertada em mim a inteligência, então, evidentemente, não praticarei certas coisas. Visto que não sabemos a maneira de despertar essa inteligência, construímos muralhas de controle, resistência, a que chamamos disciplina. A disciplina, pois, nada tem em comum com a inteligência: ao contrário, destrói a inteligência. Como devo então despertar a inteligência? Se compreendo que determinada maneira de pensar — pensar, por exemplo, em termos de nacionalismo — é um processo errôneo, se percebo toda a sua significação, o isolamento, o sentimento de identificação com uma coisa maior, etc., se percebo toda significação do desejo, da atividade da mente, se verdadeiramente lhe compreendo e percebo o conteúdo, se minha inteligência desperta para essa compreensão, então, o desejo desaparece; não preciso dizer "este é um desejo perverso". Isso requer vigilância, atenção, exame, não acham? E porque não somos capazes de tal, dizemos que precisamos de disciplina, maneira muito infantil de se pensar num problema tão complexo. os próprios sistemas educativos estão abandonando a idéia de disciplina. Estão procurando investigar a psicologia da criança e a razão por que ela procede de tal ou tal maneira; estão-na observando, ajudando-a.
Considerem agora o processo da disciplina. Em que ele consiste? A disciplina, sem dúvida, é um processo de compulsão, de repressão, não é certo? Desejo fazer uma determinada coisa e digo: "tenho de fazê-la, porque desejo alcançar tal estado", ou "essa coisa é má". Compreendo alguma coisa quando a condeno? E quando condeno uma coisa, observo-a, examino-a? Eu não a vi. Só a mente indolente se põe a disciplinar, sem compreender a significação que isso tem; e estou convencido de que todos os preceitos religiosos foram estabelecidos para os indolentes. É tão mais fácil seguir do que investigar, inquirir, compreender. Quanto mais disciplinada uma pessoa, tanto menos aberto o seu coração. Vocês sabem todas estas coisas, senhores? Como pode um coração vazio compreender algo que não está sob a influência da mente?
O problema da disciplina, com efeito, é muito complexo. Os partidos políticos se servem da disciplina como meio de alcançar um determinado resultado, como meio de fazer o indivíduo se ajustar ao padrão ideal de uma sociedade futura, pela qual estamos plenamente dispostos a nos deixar escravizar, porque ela promete algo maravilhoso. Assim, a mente que está em busca de recompensa, de um objetivo, obriga-se a ajustar-se a esse objetivo, que é sempre projeção de uma mente mais engenhosa, uma mente superior, uma mente mais astuciosa. A mente disciplinada nunca é capaz de compreender o que significa "estar em paz". Como pode a mente que está cercada de regras e restrições enxergar qualquer coisa que está além?
Se examinarem esse processo de disciplina, verão que o desejo é que o sustenta, o desejo de ser forte, o desejo de alcançar um resultado, o desejo de tornar-se algo, o desejo de ser poderoso, de se tornar "mais" e não "menos". Esse impulso do desejo está sempre ativo, impelindo ao conformismo, à disciplina, à repressão, ao isolamento. Vocês podem reprimir, podem disciplinar. Mas o consciente não pode controlar e moldar a mente consciente. Se procuram moldar a mente consciente de vocês, isso é o que se chama disciplina. Não é verdade? Quanto mais reprimem, quanto mais amordaçam a mente, tanto mais se revolta o inconsciente, e no fim a mente ou se torna neurótica ou extravagante.
Por conseguinte, o que tem importância, nesta questão, não é seu eu condeno a disciplina ou se vocês a aprovam; vejamos como se desperta a inteligência integral, não a inteligência dividida em compartimentos, mas a inteligência "integrada", a qual traz a sua compreensão própria e evita, por conseguinte, certas coisas, naturalmente, automaticamente, livremente. A inteligência é que guiará, e não a disciplina. Senhor, esta é uma questão realmente importantíssima e muito complexa. Se de verdade desejamos investiga-la, se observamos a nós mesmos e compreendermos todo o processo de disciplina, veremos que não somos verdadeiramente disciplinados, em absoluto. Você são disciplinados, em suas vidas? Ou estão apenas reprimindo as suas ansiedades, resistindo às várias formas de tentação? Se vocês resistem por meio da disciplina, aquelas tentações e ânsias continuarão a existir. Não ficam elas profundamente ocultas, aguardando apenas uma brecha por onde saírem impetuosamente? Vocês não tem notado como, à medida que vão ficando mais velhos, voltam a se manifestar os sentimentos outrora reprimidos? Vocês não podem usar de artifícios com o inconsciente de vocês; ele lhes dará o troco multiplicado por mil.
Posso lhes assegurar que a disciplina não lhes levará a parte alguma; pelo contrário, ela é um processo cego, privado de inteligência e de pensamento. Mas despertar a inteligência constitui um problema totalmente diferente. Não se pode cultivar a inteligência. A inteligência, uma vez desperta, traz consigo sua própria maneira de operar; ela regula a sua própria vida, observa várias formas de tentações, inclinações, reações, e as investiga; compreende, não superficialmente, porém, de maneira integral, completa. Para tal, precisa a mente estar sempre atenta, sempre vigilante. Não é verdade? Certo, para a mente que deseja compreender, as restrições por ela própria impostas a si mesma são de pouquíssima valia. Para compreender, é necessário liberdade; essa liberdade não vem por meio da compulsão de espécie alguma; e a liberdade não está no fim, e sim no começo. Nosso problema é o despertar a inteligência "integrada", e isso só pode realizar-se quando somos capazes de compreender o todo.
este complexo problema do desejo expressa-se por meio da disciplina, do conformismo, da repressão, da crença, do saber. Logo que percebermos a vasta estrutura do desejo, começaremos a compreendê-lo. A mente começará então a ver-se a si mesma e a ser capaz de receber algo que não é projeção dela própria.
Krishnamurti - 06 de janeiro de 1952 - Quando o pensamento cessa.