O desejo não é uma coisa que possamos aniquilar, subjulgar ou torcer. Como tenho explicado, por mais vontade que tenhamos de abandonar o desejo, tal nunca será possível, porque o desejo é um processo constante, tanto do consciente como do inconsciente, e ainda que logremos controlar temporariamente o desejo consciente, é dificílimo subjulgar ou controlar o inconsciente. Sinto que de qualquer ação isolada haveria de resultar a confusão e o caos; e parece-me, igualmente, que os mais de nós vivemos ocupados com tais ações. Os entendidos e os especialistas separam a ação é a idéia; isso eles tem feito em diferentes níveis, em diferentes padrões, e nos tem dito como devemos agir. Existem, como sabem, os economistas, os políticos, as pessoas religiosas, etc.; deram-nos eles a ver apenas fragmentos da vida. parece-me que os que sentem ardente interesse em compreender esse processo da ação que não é isolada, fragmentada, ou parcelada, devem precaver-se. Tal só é possível se compreendermos, na sua inteireza, o processo do desejo. Foi disso, ou mais ou menos, que tratamos sábado e domingo passados.
Compreender o desejo não significa condená-lo. Uma vez que os mais de nós estamos condicionados, que temos idéias e opiniões fixas com relação ao desejo, nos é quase impossível seguir o movimento do desejo, sem o condenarmos, sem formar opiniões. Se desejo compreender qualquer coisa, preciso observá-la sem nenhum processo que implique atitude condenatória. Não é isso que devo fazer? Se desejo lhes compreender e se vocês desejam me compreender, não devemos nos julgar, não devemos nos condenar; precisamos estar abertos e receptivos para todo o significado das palavras que cada um d nós profere, para a expressão de nossos rostos; devemos estar completamente receptivos e de espírito aberto. Tal não é possível quando há condenação. É possível haver ação sem idéia? Para a maioria de nós, as idéias vêm primeiramente e a ação depois. As idéias são sempre fragmentárias sempre isoladas; e qualquer ação baseada em idéia há de ser fragmentária, isolada. É possível haver ação que não seja fragmentária, ação total, integral? Parece-me que tal ação é a nossa única redenção possível. Todas as outras ações hão de fatalmente deixar confusão e mais conflito. Como então encontrar a ação que não esteja baseada em idéia?
Que se entende por idéia? A idéia, por certo, é o processo do pensamento. Não é verdade? A idéia é um processo de mentalização, um processo de pensamento; e pensar é sempre uma reação, quer do consciente, quer do inconsciente. Pensar é um processo de verbalização, o qual é resultado da memória; pensar é um processo de tempo. Assim, quando a ação se baseia no processo do pensar, tal ação, inevitavelmente, será condicionada, isolada. Idéia tem de opor-se à idéia, idéia tem de ser dominada por idéia. Há sempre um vazio entre a ação e a idéia. O que estamos tentando averiguar é se é possível a ação existir sem idéia. Vemos como a idéia separa as pessoas. Como já tive ocasião de explicar, o saber e a crença são, essencialmente, qualidades separativas. As crenças nunca unem as pessoas; sempre separam as pessoas; quando a ação está baseada em crença, ou idéia, ou em ideal, tal ação não pode deixar de ser isolada, fragmentária. Será possível agir sem o processo do pensamento, — sendo o pensamento um processo de tempo, um processo de cálculo, um processo de autoproteção, um processo de crença, negação, condenação, justificação? certamente, já deve ter ocorrido á vocês pensar, como a mim tem ocorrido, sobre se é possível a ação sem idéia. percebo, tão bem como vocês, que quando tenho uma idéia e baseio minha ação nessa idéia, ela cria necessariamente oposição; idéia tem de enfrentar idéia e há de criar, inevitavelmente, repressão, oposição. Não sei se estou me fazendo claro. Se forem capaz de compreendê-lo, não com a mente nem com o sentimento, no íntimo, creio que teremos transcendido todas as nossas dificuldades. Nossas dificuldades se referem a idéias, e não à ação. Não é o que devemos fazer — pois isso é mera idéia — que é importante, mas sim o agir. Será possível a ação sem o processo de cálculo, que é resultado da autoproteção, da memória, das relações pessoais, individuais, coletivas, etc.? Afirmo que é possível. Vocês podem experimentá-lo aqui. Se pudermos acompanhar, sem condenação, todo o processo do desejo, verão então que é inevitável a ação sem idéia. Isso, sem dúvida, requer uma extraordinária vigilância por parte da mente; pois todo o nosso condicionamento leva-nos a condenar, a justificar, classificar em categorias — sendo tudo isso um processo de cálculo, de mentalização. Para a maioria de nós, a idéia e a ação são duas coisas diferentes. Há primeiro a idéia, a ação vem depois. Nossa dificuldade consiste em unir a ação à idéia. Consideremos a questão de maneira diferente.
Sabemos que a avidez, sob qualquer forma, é sempre destrutiva. A inveja conduz à ambição — política, religiosa, coletiva, ou individual. Qualquer espécie de ambição, se lhe prestamos atenção, é limitada e destrutiva. Todos nós sabemos disso; não precisamos que nos digam; não precisamos pensar muito a respeito. A ambição produz a inveja. A ambição é resultado do desejo de poder e de posição, de progresso individual, político e religioso — politicamente em nome de uma idéia do futuro ou do presente, e espiritualmente em nome de algo igualmente bom ou igualmente mau. Conhecemos bem estas ambições — ser alguém, dominar pessoas em nome da paz, em nome do Mestre, em nome do que só Deus sabe. Onde há ambição deve haver exploração, homem contra homem, nação contra nação; e as próprias pessoas que bradam "paz" são justamente as que estão fazendo coisas altamente destrutivas, talvez para si mesmas, e para suas nações ou para sua idéia. Esses indivíduos não trazem a paz. Falam muito de paz, mas não têm a paz no coração. Tais pessoas, obviamente, não podem trazer ao mundo a paz ou a felicidade; só hão de trazer luta, discórdia, e guerra.
A ambição e o resultado da cupidez, da inveja, do desejo de poder. Toda ela está baseada numa idéia. Não é assim? A idéia nada mais é do que reação. Ela o é, neurologicamente, psicologicamente, ou fisicamente. A ambição é uma idéia de ser algo, politicamente, religiosamente; "quero tornar-me uma pessoa importante e quero trabalhar para o futuro". Que reflete isso? Conhecemos também a ambição política, em nome da pátria, etc. Tudo isto está baseado numa idéia. E uma idéia, um conceito, uma formulação daquilo que eu serei ou do que será o meu partido. Tendo estabelecido a idéia, levo então avante a idéia na ação. Em primeiro lugar, moralmente, uma pessoa ambiciosa é imoral. É um fator de discórdia; e, entretanto, todos nós estimulamos a ambição. Que mais podemos fazer? Arriscamo-nos a nada realizar. Considerando-a bem, verão que a ambição é uma idéia, o cultivo de uma idéia em ação; "vou ser alguma coisa" — o que implica exploração, crueldade, horrenda brutalidade, etc. Afinal de contas, o "eu" é uma idéia que não tem realidade. É um processo de tempo. É um processo de memória, reconhecimento, e tudo isso, na essência, não passa de idéias.
Pode a ambição ser abandonada completamente, quando percebo que a ação, se baseada numa idéia, há de, no fim, gerar ódio, inveja? Posso abandonar a ambição completamente, e, por conseguinte, agir sem o processo da idéia? Vou expressá-lo de maneira mais simples. Se somos ambiciosos, é possível abandonarmos por completo a ambição, politicamente, religiosamente? Só então sou um centro de paz. Mas não é fácil abandonar de todo a ambição, com tudo o que ela significa — confusão, brutalidade — e com tudo o que decorre do desejo de poder e de condenação. Só posso abandoná-la completamente quando não mais cultivo a idéia que é o "eu"; não há então mais problema algum sobre como não devo ser ambicioso, como livrar-me da ambição. Não é este o nosso problema. Somos todos gananciosos, todos invejosos; vocês tem mais e eu tenho menos; tem mais poder e eu quero ter esse poder, espiritual ou secularmente. Porque estou nas malhas da ambição, meu problema é como libertar-me dela, como abandoná-la. Introduzimos, assim, o problema do "como"? Isso é apenas um adiamento da ação. Se percebo que a ação baseada em idéia ocasiona adiamento, percebo então a necessidade da ação sem ideação. Não sei se estou me fazendo claro. A ambição não é destrutiva? As nações ambiciosas, os indivíduos que andam à cata do poder, ou as pessoas imensamente convencidas de sua própria importância, constituem verdadeiros perigos; vocês sabem quantos males causam a si próprios e aos que os rodeiam. Como nos livrar dessas coisas, não superficialmente, mas profundamente, tanto no consciente como no inconsciente?
A idéia levada à ação produz ação negativa. A ação não baseada em idéia será imediata, não amanhã. Se sou capaz de perceber sem ideação toda a brutalidade, todo o significado da ambição, há ação imediata. Já não interessa mais saber como não devo ser ambicioso. Se desejamos ação que não seja separada, que não seja fragmentária, que não seja isolada, precisamos pensar bem nesta questão. Vocês não tem visto homem contra homem, nação contra nação, uma seita contra outra, um grupo comunal contra outro, um dogma contra outro, um Mestre contra outro? Conhecem toda gama de brutalidade. Depois de conhecida, de percebida como um fato, pode a ambição ser abandonada? Estamos conscientes de que há dominação espiritual, econômica e política; e temos notado os seus resultados — que são constantes guerras, fome, fragmentação do homem, etc. Sabemos que qualquer ação, sem compreensão do processo integral da ideação e do curso das idéias, só há de gerar mais antagonismo.
Assim, um homem que seja sincero, que seja realmente pacífico, não apenas politicamente pacífico, não pode contaminar esse problema por meio da idéia; porque idéia é adiamento, idéia é coisa fragmentária, e não inteligência integrada. O pensamento há de ser sempre limitado pelo pensador, que é condicionado; o pensador é sempre condicionado e nunca livre; se ocorre pensamento, imediatamente ocorre idéia. A idéia, visando à ação, criará infalivelmente mais confusão. Sabendo tudo isso, é possível agir sem idéia? É pelo caminho do amor. A amor não é idéia; não é sensação; não é memória; não é sentimento de procrastinação, recurso de autoproteção. Só conhecemos o caminho do amor, quando compreendemos todo o processo da idéia. Pois bem; é possível abandonar os outros caminhos e seguir o caminho do amor, que é a única redenção possível? nenhum outro caminho, político ou religioso, nos levará a solução do problema. Isso não é uma teoria sobre a qual devem refletir e que devem adotar na vida; tem de ser uma realidade; e só pode ser uma realidade ao perceberem e compreenderem que a ambição é destrutiva e que, por conseguinte, deve ser afastada de nós.
Nunca experimentamos aquele caminho do amor. Temos experimentado todos os outros caminhos. Não se deixem embalar pela palavra amor. O amor não é processo de pensamento. A reação imediata de você é "que é amor?" — "Posso conhecê-lo?" — "Como viver de acordo com ele?" — "Qual é o caminho do amor que existe separado do processo de pensamento e da idéia?" Quando vocês amam, há idéia? Não aceitem isso que estou dizendo; olhem, examinem, penetrem profundamente; porque já experimentamos todos os outros caminhos e não encontramos solução para o sofrimento. Os políticos poderão prometê-la; as chamadas organizações religiosas poderão prometer a felicidade futura; mas nós não a temos agora, e o futuro é relativamente sem importância quando tenho fome. Já experimentamos todos os outros caminhos; e só conheceremos o caminho do amor se conhecermos o caminho da idéia e abandonarmos a idéia, o que significa agir. Poderá parecer absurdo ou insensato à maioria de vocês ouvir dizer que a ação pode existir sem a idéia; mas se o penetrardes um pouco mais profundamente, em vez de o afastarem para o lado, dizendo-o insensato, se o penetrarem profundamente, com toda a seriedade, constatarão que a idéia nunca pode tomar o lugar da ação. A ação é sempre imediata. Veem algo, como a ambição ou a ganância; não há nenhum "como": como livrar-me? É possível? — Pensem bem nesta questão. Podemos discutir a respeito. Constatarão que o amor é o único remédio, que ele é a nossa redenção, em que é possível o homem viver em paz com o homem, com felicidade, sem exploração, sem dominação, sem que uma pessoa se torne mais importante e superior, por obra da ambição, da astúcia. Não conhecemos aquele caminho. Ponhamo-nos bem conscientes de tudo isso, Ao reconhecermos plenamente o significado da ação baseada em idéia, esse próprio reconhecimento é agir e afastar-se dela — eis o caminho do amor.
Krishnamurti - 12 de janeiro de 1952 - Quando o pensamento cessa