VIDA CRIADORA
BOMBAIM — VII
Em todos os passados séculos, o homem sempre procurou a paz, a liberdade, um estado de bem-aventurança a que chama “Deus”. Tem-no buscado, sob diversos nomes, em diferentes períodos da história; parece, entretanto, que só pouquíssimos têm encontrado aquele estado interior de suprema paz e liberdade, o estado que o homem denominou “Deus”. Isso se tornou nos tempos modernos bem pouco importante; empregamos a palavra “Deus” com muito pouca significação. Andamos sempre a buscar um estado bem-aventurado, um estado de paz e liberdade, fora deste mundo; de várias maneiras estamos a fugir do mundo, em busca de algo que seja permanente, que nos dê asilo e salvação; que nos dê profunda paz interior. A crença ou não-crença em Deus depende de influências mentais, tradicionais, climáticas. Para encontrar aquele estado de bem-aventurança, de liberdade, de paz infinita, viva, precisamos compreender porque não somos capazes de enfrentar um fato, transformá-lo e, por conseguinte, ultrapassá-lo.
A meu ver, somos completa e totalmente responsáveis pela sociedade em que vivemos. Por toda a angústia, e confusão, e brutalidade da moderna existência somos inteiramente responsáveis, cada um de nós. E como não podemos de modo nenhum furtar-nos a essa responsabilidade, cabe-nos transformar nossa existência. A transformação do ente humano, como parte integrante da sociedade e ao mesmo tempo seu criador — é urna obrigação que cada um tem de assumir. E só poderá o ente humano operar, em si mesmo, uma mutação, uma transformação, sem fugir à sociedade, quando se libertar das idéias.
Deus é uma idéia, dependente do clima, do ambiente, da tradição em que foi criado o indivíduo. No mundo comunista, não se crê em Deus — o que é também um resultado das circunstâncias. Aqui, dependeis das vossas circunstâncias, da vida que viveis, da tradição que seguis e, por conseguinte, formastes aquela idéia (Deus). Cumpre ao indivíduo libertar-se dessas circunstâncias, da sociedade; porque só então, em liberdade, tem o ente humano a possibilidade de descobrir o que é verdadeiro. Mas, a mera fuga para uma idéia chamada “Deus” não resolve de modo nenhum o problema.
Deus — ou qualquer outro nome — é uma engenhosa invenção do homem, a qual mascaramos com incenso, rituais, várias formas de crenças e dogmas que estão a separar os homens em católicos, hindus, muçulmanos, parses, budistas. Essa, é a engenhosa estrutura erguida pelo homem. E o próprio homem, seu inventor, nela se acha aprisionado. Sem compreender o mundo atual, o mundo em que vive, esse mundo de agonias, de confusão, de sofrimentos, de ansiedades, desespero, aflição, solidão total e o sentimento da absoluta inutilidade da vida — se não compreender tudo isso, a mera aquisição de idéias e mais idéias, por mais satisfatórias que sejam, nenhum valor terá.
Muito importa compreender porque criamos ou formulamos uma idéia. Por que é que a mente formula uma idéia? Por “formulação” entendo toda estrutura de idéias filosóficas ou racionalistas, humanistas ou materialistas. Idéia é pensamento organizado; e na base desse pensamento organizado, dessa crença, dessa idéia, vive o homem. É isso o que todos fazemos, religiosos ou não-religiosos. Considero importante averiguar por que razão os seres humanos, através das idades, têm dado tão exagerada importância às idéias. Por que é que formulamos idéias? Por que não nos é possível agir sem a idéia — agir sempre? Se nos observamos, podemos verificar que formamos idéias quando não há atenção. Quando estamos ativos, totalmente — e isso requer completa atenção — não há idéia nenhuma; estamos simplesmente em atividade.
Deixai-me sugerir-vos que, nesta tarde, vos limiteis a escutar. Nada aceiteis nem rejeiteis; não levanteis barreiras ao escutar, com vossos pensamentos, crenças, contradições, etc. Escutai, simplesmente. Não pretendemos convencer-nos de coisa alguma. Não queremos de modo nenhum forçar-vos a aceitar uma dada idéia, padrão ou maneira de agir. Estamos apenas expondo fatos, sem levar em conta se deles gostais ou não gostais; o importante é que se aprenda a respeito do fato. Aprender significa escutar totalmente, observar completamente. Se escutais o barulho dos corvos, não o escuteis de mistura com vossos próprios barulhos, vossos temores, pensamentos, vossas idéias, vossas opiniões. Vereis então que não haverá idéia nenhuma, que estareis escutando realmente.
Desse mesmo modo deveis escutar-me nesta tarde. Escutai, simplesmente, tanto consciente como inconscientemente (o que talvez seja muito mais importante). Quase todos nós estamos sujeitos a influências. Podemos rejeitar as influências conscientes, porém muito mais difícil é rejeitar as influências inconscientes. Quando se escuta da maneira a que nos referimos, esse escutar já não é consciente nem inconsciente. Está-se então completamente atento. E a atenção não é coisa minha nem vossa; não é nacionalista; não é religiosa; não é divisível. Por conseguinte, quando estais escutando completamente, não há idéia: há só o estado de escutar. Em geral é o que fazemos quando estamos escutando (ou olhando) algo que tem certa beleza: boa música, o espetáculo de uma montanha, da luz crepuscular, seus reflexos na água ou numa nuvem; não há então, nesse estado de atenção, nesse estado de escutar, de ver, idéia nenhuma.
Se puderdes escutar dessa maneira, com essa facilidade, essa atenção sem esforço, talvez percebais quanto é importante a questão da idéia e da ação. Como já disse, de ordinário formulamos idéias quando há desatenção. Criamos, ou concebemos idéias, quando essas idéias nos dão segurança, um sentimento de certeza. Esse desejo de certeza, esse desejo de segurança gera idéias; nessas idéias buscamos refúgio e, por isso, não há ação. E, ainda, criamos e formulamos idéias quando não compreendemos completamente o que é (o fato). As idéias, por conseguinte, se nos tornam muito mais importantes do que o fato.
Para se descobrir realmente o fato — se há Deus, se não há Deus — as idéias nada significam. Não importa se credes ou não credes, se sois teísta ou ateísta. Isso nada exprime. Para o descobrimento, necessitais de toda a vossa energia — vossa energia completa, total; energia sem mácula, sem arranhadura; sem tendências nem corrupção. Assim, para se compreender, para se descobrir se existe essa Realidade que o homem anda buscando há milhões de anos, necessita-se de energia — energia integral e completa, incontaminada. E para criar essa energia, precisamos compreender o esforço.
A maioria de nós passa a vida a fazer esforços, a lutar; e o esforço, a luta, é uma dissipação, um desperdício de energia. O homem, em toda a sua existência histórica, sempre disse que, para encontrar a Realidade ou Deus — ou o nome que se lhe quiser dar — o indivíduo tem de ser celibatário — isto é, fazer um voto de castidade e passar o resto da vida a recalcar-se, a controlar-se, a batalhar consigo mesmo, para se manter fiel a esse voto. Quanto desperdício de energia! Também é desperdício de energia soltar as rédeas ao desejo. E isto é mais significativo quando reprimis o desejo. O esforço despendido no recalcar, no controlar, no repelir o desejo, deforma a mente e, em virtude dessa deformação, o indivíduo adquire uma certa austeridade que se torna rude. Escutai, por favor! Observai esse fato em vós mesmo e nas pessoas que vos cercam. Observai esse desperdício de energia, essa batalha. Não é o sexo, em seus diferentes aspectos, nem o próprio ato sexual, porém os ideais, as imagens, o prazer, e o constante pensar neles, que constituem o desperdício de energia. Assim, a maioria das pessoas desperdiça energia ou pela negação do desejo ou mediante o voto de castidade e o constante pensar nele.
E, como já dissemos, cada homem é responsável — vós eu somos os responsáveis pelas condições da sociedade em que vivemos. Nós, e não os políticos — pois fomos nós que os fizemos ser o que são: desonestos, vangloriosos, ambiciosos de posição e de prestígio; é precisamente o que somos em nossa vida diária. Somos os responsáveis pela sociedade. A estrutura psicológica da sociedade é muito mais importante do que o seu aspecto orgânico; está ela baseada na avidez, na inveja, na ânsia de aquisição, na competição, na ambição, no medo, na incessante exigência de segurança de todo ente humano — segurança em todas as suas relações: com a propriedade, as pessoas, as idéias. É essa a estrutura social que criamos. E a sociedade, psicologicamente, impõe essa estrutura a cada um de nós. Ora, a avidez, a inveja, a ambição, a competição, constituem desperdício de energia, porquanto encerram sempre conflito; conflito interminável — como, por exemplo, o de uma pessoa que é ciumenta.
O ciúme é uma idéia. A idéia e o fato são duas coisas diferentes. Tende a bondade de escutar! Se procuramos observar o sentimento chamado “ciúme” através da idéia respectiva, não podemos entrar diretamente em contato com o sentimento; estamos a observá-lo através da memória de uma certa palavra que fixamos em nossa mente com o significado de “ciúme”. O ciúme se torna uma idéia e essa idéia nos impede de entrar diretamente em contato com o sentimento que se chama “ciúme”. Isso é também um fato. Assim, a fórmula, a idéia nos veda o contato direto com o sentimento; portanto, a idéia faz--nos dissipar energia.
Visto que somos nós os responsáveis pela aflição, pela pobreza, pelas guerras, pela absoluta falta de paz que se observa no mundo — visto isso, o homem religioso não busca Deus, porém o que o interessa é a transformação da sociedade, ou seja, de si próprio. O homem religioso não é o que pratica rituais diversos, que segue tradições, que vive numa cultura passada morta, a interpretar incessantemente o Gita ou a Bíblia, a entoar intermináveis litanias, o que vive como sanyasi; esse não é um homem religioso, porque está a fugir dos fatos. Religioso é o homem que tem o máximo interesse em compreender a sociedade, ou seja a si próprio, pois não é uma entidade separada da sociedade. O operar em si próprio uma mutação completa, total, significa a total cessação da inveja, da avidez, da ambição. Aquele homem, por conseguinte, não depende das circunstâncias, embora seja resultado das circunstâncias — dos alimentos que toma, dos livros que lê, dos cinemas que freqüenta, dos dogmas, crenças, ritos religiosos, etc. etc. O homem religioso é um ente responsável e, portanto, deve compreender a si mesmo, como produto da sociedade que ele próprio criou. Por conseguinte, para encontrar a Realidade deve ele começar aqui, e não num templo, nem numa imagem — não importa se esculpida pela mão ou pela mente. Do contrário, como poderá descobrir algo total mente novo, um novo estado?
A paz não é simplesmente o predomínio da Lei ou da soberania. É coisa bem diversa: um estado interior que de modo nenhum pode ser estabelecido pela alteração das circunstâncias externas, conquanto seja necessária a mudança das circunstâncias externas. Mas, a paz deve nascer em nosso interior, para que se possa criar um mundo diferente. E a criação de um mundo diferente exige uma tremenda soma de energia, energia que ora está sendo dissipada num conflito constante. Por conseguinte, temos de compreender esse conflito.
A causa primária do conflito é a fuga — fuga através da idéia. Observai a vós mesmos; vede como, em vez de fazer frente, digamos, ao ciúme, à inveja, em vez de entrar diretamente em contato com tal sentimento, dizeis: “Como livrar-me disso?” Que devo fazer? Que métodos devo seguir para não ser ciumento?” — Tudo isso são meras idéias e, por conseguinte, uma fuga ao fato de serdes ciumento, um afastamento desse fato. A fuga aos fatos através das idéias não só dissipa a energia, mas também impede o contato direto com o fato. Ora, deveis dar toda a atenção ao fato, em vez de procurardes observá-lo através de uma idéia, pois, como já dissemos, a idéia impede a atenção. Se observardes, se vos tornardes cônscio do sentimento chamado “ciúme”, e lhe derdes toda a atenção, sem a interferência de idéias, não só estareis diretamente em contato com o sentimento, mas também, em virtude da atenção que lhe dispensastes, ele deixará de existir; haverá então maior energia para enfrentardes o próximo incidente, a próxima emoção ou sentimento.
Para descobrir, para realizar uma mutação completa, necessitais de energia — não a energia criada pelo recalcamento, porém aquela que vos vem quando não estais a fugir através de idéias ou pela repressão. Com efeito, se a esse respeito refletimos, percebemos que só conhecemos duas maneiras de enfrentar a vida: ou dela fugindo completamente (o que leva à insanidade ou neurose), ou recalcando tudo o que não compreendemos. Só essas duas maneiras conhecemos.
Recalcar não é apenas abafar um sentimento ou sensação; toda explicação intelectual ou racionalização é também uma espécie de recalcamento. Observai-vos e vereis como o que se está dizendo é real. E necessário, pois, que não fujais. Esta é uma das coisas mais importantes que cumpre compreender: que não devemos fugir. É-nos dificílimo compreendê-la, porque estamos acostumados a fugir através das palavras. Fugimos ao fato, não só indo ao templo etc., mas também através de palavras, de argumentos, opiniões, juízos, avaliações... de uma infinidade de maneiras. Consideremos, por exemplo, um indivíduo insensível. Ser insensível é um fato. Se ele se torna cônscio de ser insensível, a maneira de fugir ao fato é procurar tornar-se sensível. Mas uma pessoa só pode tornar-se sensível se aplicar toda a atenção ao estado mental de insensibilidade.
Assim, necessitamos de energia - energia não resultante de contradição ou tensão, porém gerada sem esforço algum. Compreendei, por favor, este fato muito simples e real: que desperdiçamos nossa energia no esforço, e esse desperdício nos impede o direto contato com o fato. Quando faço um esforço enorme para escutar, toda a minha energia se consome nesse esforço, de modo que não posso escutar realmente. Quando me encolerizo ou impaciento, minha energia se consome toda no esforço que faço para reprimir a cólera. Mas, se presto toda a atenção à cólera, ou outro estado mental, em vez de fugir através de palavras, da condenação, do julgamento — então, nesse estado de atenção, liberto-me da coisa chamada “cólera”. Por conseguinte, aquela atenção que é a reunião de toda a energia, aquela atenção não é esforço. Religiosa é apenas a mente que está livre do esforço e, por conseguinte, só ela pode descobrir se há ou se não há Deus.
Outro fator: somos entes humanos imitadores. Nada temos de original. Somos o resultado do tempo, de muitos milhares de dias passados. Desde a infância, fomos educados para imitar, copiar, obedecer, repetir a tradição, seguir as Escrituras, obedecer à autoridade. Não nos referimos à autoridade da lei, que deve ser obedecida, porém à autoridade das Escrituras, à autoridade espiritual, ao padrão, à fórmula, espirituais. Obedecemos e imitamos.
Quando imitais — ou seja, ao vos ajustardes interiormente a um padrão imposto pela sociedade ou por vós mesmo, baseado em vossa própria experiência — esse ajustamento, essa imitação, essa obediência, não têm a claridade da energia. Vós imitais, vos ajustais, obedeceis à autoridade, porque tendes medo. O homem que compreende, que vê claramente, que está muito atento, não teme; por conseguinte, não tem razão nenhuma para imitar. Ele é “ele próprio” (o que quer que “ele próprio” seja) em todos os momentos.
Assim, a imitação, o ajustamento a um padrão religioso ou, em vez de um padrão religioso, à própria experiência, é sempre conseqüência do medo. E o homem que tem medo — seja de Deus, seja da sociedade, seja de si próprio — não é um ente religioso. Só é livre o homem que não teme. Portanto, temos de entrar em contato com o medo, diretamente e não através da idéia relativa ao medo.
E, ainda, a reunião daquela energia imaculada, impoluta, vital, só é possível pelo rejeitar. Não sei se já notastes que, quando rejeitamos uma coisa, não em reação a essa coisa, essa própria rejeição cria energia. Quando rejeitais, por exemplo, a ambição, não por desejardes tornar-vos espiritual, por desejardes viver em paz, por desejardes Deus, por desejardes o que quer que seja, porém por causa dela própria (da ambição) — quando percebeis a natureza perniciosa do conflito que a ambição engendra, e a rejeitais, esse próprio ato de rejeição é energia. Não sei se já rejeitastes alguma coisa. Ao renunciardes a um certo prazer — por exemplo, ao prazer de fumar, não por vos ter dito o médico que fumar é nocivo aos pulmões, ou por não terdes dinheiro para poderdes fumar uma infinidade de cigarros por dia, ou por desejardes libertar-vos de um hábito que vos escraviza, porém porque percebeis quanto ele é absurdo — quando rejeitais esse hábito, sem ser em reação a ele, esse próprio rejeitar traz consigo energia. De modo idêntico, quando rejeitais a sociedade, mas não fugindo dela, como o sanyasi, o monge, os indivíduos chamados “religiosos” — quando rejeitais totalmente a estrutura psicológica da sociedade, dessa rejeição vos vem uma formidável energia. O próprio ato de rejeitar é energia.
Bem; já vistes ou compreendestes por vós mesmo, ou ouvistes falar nesta tarde sobre a natureza do conflito, do esforço, que dissipam energia; e compreendestes ou percebestes, não verbal porém realmente, o significado dessa energia que não resulta de conflito, porém nasce quando a mente compreendeu todas as suas fugas — recalcamento, conflito, imitação, medo. Daí podeis então partir, começar a descobrir por vós mesmo o que é real, não como um meio de fuga, como meio de evitar vossas responsabilidades neste mundo. Não tereis possibilidade de compreender o que é real, o que é bom — se existe “bom” — por meio de crença, porém, tão-só, se vos transformardes em vossas relações com a propriedade, as pessoas, as idéias e dessa maneira vos tornardes livre da sociedade. Só então, e não pela fuga ou recalcamento, tereis a energia necessária ao descobrimento.
Se chegastes até este ponto, deveis agora tratar de descobrir a natureza da disciplina, da austeridade segundo a tradição e da austeridade criada pela compreensão. Há um “processo” natural de austeridade, um “processo” natural de disciplina, sem rigores, sem ajustamento, sem mera imitação de um dado hábito agradável. Desse processo resulta uma inteligência sumamente sensível. Sem essa sensibilidade, não conhecereis a beleza.
Deve o indivíduo de mentalidade religiosa tornar-se cônscio desse extraordinário estado de sensibilidade e beleza. O indivíduo religioso a que nos referimos difere inteiramente do religioso ortodoxo. Porque, para este último, a beleza não existe: é um homem totalmente alheio ao mundo em que vive: à beleza do mundo, à beleza da terra, à beleza da colina, à beleza de uma árvore, à beleza de um rosto sorridente. Para ele, a beleza é tentação; é a mulher, que ele tem de evitar a todo custo, a fim de encontrar Deus. Não é um indivíduo religioso, esse homem, porque insensível ao mundo — a sua beleza e fealdade. Não se pode ser sensível só à beleza; deve-se ser sensível também ao esqualor, à sordidez, à desorganizada mente humana. Sensibilidade significa “sensibilidade em todos os sentidos”, e não num único sentido. A mente que não está cônscia da beleza em si própria manifestada, não pode alcançar mais longe. Essa sensibilidade é de todo em todo necessária.
E essa mente — que é então a verdadeira mente religiosa — pode compreender a natureza da morte. Pois, sem a compreensão da morte, não há compreensão do amor. A morte não é o fim da vida. Não é uma conseqüência de doença, senilidade ou acidente. A morte é uma coisa com que temos de viver todos os dias, morrendo para tudo o que conhecemos. Se não conhecerdes a morte, jamais conhecereis o amor.
O amor não é memória; também não é símbolo, imagem, idéia; não é o amor um ato social; o amor não é uma virtude. Havendo amor, há virtude; não se precisa lutar para se tornar virtuoso. Se não conheceis o amor, é porque ainda não compreendestes o que é morrer — morrer para vossa experiência, morrer para vossos prazeres, morrer para qualquer memória oculta, inconsciente. E, quando tudo trouxerdes à luz e morrerdes a cada minuto — para vossa casa, vossas lembranças, vossos prazeres morrerdes voluntária e facilmente, sem esforço, sabereis então o que é o amor.
E, também, sem a beleza, sem a compreensão da morte, sem o amor, jamais encontrareis a Realidade; podeis fazer o que quiserdes — ir aos templos, seguir todos os gurus criados pelos homens ininteligentes — por esse caminho jamais encontrareis a Realidade. Essa Realidade é criação.
Criação não significa gerar filhos, pintar quadros, escrever versos ou preparar pratos apetitosos: nada disso é criação, porém apenas produto de um certo talento ou dom, ou de uma técnica aprendida. Invenção não é criação. Só se torna possível a criação quando estamos mortos para o tempo, isto é, quando não há mais amanhã. Só pode haver criação quando há uma completa concentração de energia, sem movimento algum, interno ou externo.
Prestai atenção a isto, por favor. Se o compreenderdes ou não — não importa. Nossa vida é tão banal, tão aflitiva; há tanto desespero, tanto sofrimento! Há dois milhões de anos que vivemos, e nada existe de novo. Só conhecemos repetição, tédio e a total futilidade de cada ato que praticamos. Para ser criada uma mente nova, um estado de inocência, de juvenilidade, necessita-se daquela sensibilidade, daquela morte e amor, e daquela criação. Aquela criação só pode verificar-se quando há a energia completa, sem movimento e sem direção.
Vede, sempre que tem de enfrentar um problema, a mente procura uma saída; esforça-se para o resolver, superar, contornar, ultrapassar ou transcender; fica a fazer alguma coisa com o problema, a mover-se, exterior ou interiormente. Se não se movesse em direção alguma; se nenhum movimento houvesse, nem interno nem externo, porém apenas o problema — ocorreria então uma “explosão” no problema. Experimentai-o, uma vez, e vereis a realidade do que se está dizendo — realidade que não requer crença, nem explicação, nem aceitação sem discussão. Aqui, não há autoridade alguma.
Assim, quando há aquela concentração de energia, não resultante de esforço, e essa energia não está em movimento em direção alguma, nesse momento há criação. E essa criação é a Verdade, Deus — o nome que quiserdes (o nome nada significa). E aquela “explosão”, aquela criação, é paz; não é necessário pro curar a paz. Aquela criação é beleza. Aquela criação é amor.
Só a mente religiosa pode promover a ordem neste mundo cheio de confusão e sofrimento. E vossa obrigação — vossa e de ninguém mais — é promover, enquanto estais vivendo neste mundo, aquela vida criadora. Só essa é a mente religiosa, a mente bem-aventurada.
Krishnamurti - 3 de março de 1965.
Do livro: A Suprema Realização – Ed. Cultrix – páginas 162 à 172