TRANSFORMAÇÃO SEM ESFORÇO
Pensamos ser necessário o conflito, o esforço, para se operar a transformação. Tal esforço, muito evidentemente, supõe disciplinamento, controle, constante exercício, o ajustamento da pessoa ao que deveria ser. Estamos, na maioria, acostumados com essa maneira de pensar, e sobre ela se fundam as nossas atividades, a nossa perspectiva, e os nossos valores. O que deveria ser, o ideal, assumiu uma extraordinária predominância em nossas vidas. Para mim é totalmente errônea uma tal maneira de pensar, e uma vez que vos achais aqui para conhecer o que eu tenho para dizer-vos, tende a bondade de escutá-lo, sem o rejeitardes.
No meu entender, só é possível transformação radical quando não há esforço, quando a mente não está tentando tornar-se alguma coisa, não está tentando ser virtuosa — o que não significa que não o deva ser. Enquanto há esforço para se alcançar a virtude, está havendo continuidade do “eu”, pois é ele que se está esforçando para ser virtuoso, o que, afinal, é meramente outra forma de condicionamento, uma modificação de o que é. Nesse processo está contida esta outra questão: Quem é que faz o esforço e qual o objetivo a que visa esse esforço. O objetivo, evidentemente, é o automelhoramento. Mas, enquanto fizermos qualquer esforço para melhorarmos a nós mesmos, não haverá virtude. Isto é, enquanto houver ideais de qualquer espécie, temos de fazer esforços para nos adaptarmos, nos ajustarmos a um dado ideal, ou nos tornarmos esse ideal. Se sou violento e tenho o ideal da não-violência, existe em mim um conflito, uma luta entre o que é e o que deveria ser. Esta luta, este conflito, é um estado de violência e não um estado de liberdade, de isenção de violência.
Ora bem, posso olhar para o que é — o estado de violência — sem fazer do seu oposto um ideal? Neste caso, de certo, só me interessa a violência e não a maneira de me tornar não-violento, porque o próprio processo de me tornar não-violento é uma forma de violência. Posso, pois, encarar a violência, sem nenhum desejo de transformá-la num outro estado? Tende a bondade de seguir-me com paciência, até o fim. Posso considerar o estado a que chamo “violência”, ou avidez, ou inveja, ou seja o que for, sem tentar modificá-lo ou mudá-lo? Posso considerá-lo sem reação alguma, sem avaliá-lo, sem lhe dar nome algum?
Estais prestando atenção? Tende a bondade de “experimentar” o que estou dizendo, para verdes a coisa diretamente, agora, e não quando voltardes para casa.
Se uma pessoa é violenta, pode considerar esse estado a que deu o nome de “violência”, sem condená-lo? O “não condenar” é um processo extraordinariamente complexo, porque a própria verbalização do sentimento, a própria palavra “violência” é condenatória. E pode-se olhar esse sentimento, esse estado que denominamos “violência”, sem lhe dar nome algum? Quando não lhe damos nome, que está acontecendo? A mente é toda constituída de palavras, não é verdade? Todo pensar é um processo de verbalização. E quando não se dá nome a esse sentimento, quando não lhe aplicamos o termo “violência”, não está ocorrendo uma revolução extraordinária, na atenção que estamos dando ao sentimento?
Consideremos o assunto de outra maneira. A mente divide a si mesma em violência e não-violência, de modo que há dois supostos estados: o estado que ela deseja alcançar, e o estado que é. Está, aí, a funcionar um pro cesso dualista, e, no meu sentir, só é possível a transformação radical quando cessa completamente esse processo dualista, isto é, quando a totalidade da consciência, da mente, pode dar atenção completa a “o que é”. E a mente não pode dar essa atenção completa se há qualquer tendência de condenação, qualquer desejo de modificar o que é, qualquer forma de distração, verbalizar, dar nome. Quando é completa a atenção, vereis que essa atenção, em si, é “o bom”, e “o bom” não é o esforço que se faz para transformar o que é noutra coisa diferente.
Isto talvez seja uma explicação muito complicada de um fato que é muito simples. Enquanto a mente tem o desejo de transformação, qualquer transformação que conseguir será apenas uma “continuidade modificada” de “o que é”, porquanto a mente não pode conceber a transformação total. Só pode haver transformação total quando a mente presta atenção total a “o que é”, e a atenção não pode ser completa se há qualquer forma de verbalização, condenação, justificação ou avaliação.
Krishnamurti – AUSTRÁLIA E HOLANDA - 1955