O cérebro, que é tão antigo e extraordinariamente hábil, e que possui um espectro infinito de capacidades, evoluiu com o tempo até chegar a adquirir uma enorme quantidade de conhecimento. Mas, será possível que, do jeito como se encontra tão fortemente condicionado e exposto ao desgaste ele possa ser rejuvenescido? Poderá este nosso cérebro livrar-se de todo o sentido de continuidade, de modo a poder começar de novo? Poderá esse cérebro tornar-se completamente inocente? Emprego a palavra inocente no sentido de ser incapaz de sentir mágoa. Ou seja, um cérebro que seja não só incapaz de magoar os outros como também incapaz de se deixar magoar.
O nosso cérebro — o cérebro de todos nós, seres humanos — evoluiu ao longo de tempo sem conta e foi condicionado tanto pelas diferentes culturas como pelas religiões assim como também pelas pressões econômicas e sociais. Esse cérebro tem prevalecido por um incontável período de tempo nessa continuidade, até ao presente, e assim pôde encontrar sentido de segurança através desse longo período de duração. É por essa razão que aceitamos a tradição, porque pela tradição e pela imitação, pelo conformismo, nós obtemos segurança, do mesmo modo que através da ilusão. É evidente que todos os nossos deuses não passam de uma ilusão, criada pelo pensamento. Qualquer crença ou fé constitui uma forma de ilusão. Não há necessidade nenhuma de se ter uma crença ou uma fé; no entanto, se possuirmos uma crença, seja em Deus, em Jesus, em Krishna ou o que quiserem, isso dar-nos-á a sensação de sermos protegidos e de nos acharmos no seio de Deus; todavia isso não passa de uma ilusão.
Mas estávamos a questionar a possibilidade do cérebro descobrir um fim para a continuidade do tempo. Essa continuidade, que se acha baseada na continuidade do conhecimento, é considerada como um avanço, como uma forma de progresso e evolução, mas eu estou precisamente a contestar isso. Sempre que o cérebro procura a continuidade torna-se mecânico. Todo o pensamento é um processo mecânico porque se baseia na memória, que — por seu turno — constitui uma resposta do conhecimento. Assim, não existe tal coisa como 'pensamento novo'.
O "eu", o "mim", é um processo de continuidade. O "eu" tem sido utilizado por milhares de anos, geração após geração e constitui um processo de continuidade. Mas tudo aquilo que é contínuo é mecânico, e não contém nada de novo. Perceber isso é uma coisa maravilhosa.
Por favor, peço-lhes que escutem em silêncio; não concordem comigo mas escutem apenas. Enquanto o cérebro registar mágoas e sofrimento, isso dar-lhe-á sentido de continuidade. Dá-nos a ideia de um "eu" que possui um sentido de existência contínuo. Enquanto o cérebro registar, á semelhança do computador, há de ser mecânico. Quando somos insultados ou elogiados o cérebro regista, como vem fazendo há milhares de anos. Tal é o nosso condicionamento; todo um movimento no sentido do progresso. Porém, queremos saber se será possível registar somente aquilo que for relevante e nada mais que isso. Porque haveremos de registar uma mágoa? Porque devemos registar quando alguém nos insulta ou lisonjeia? Quando registamos isso — quando o cérebro faz o registo disso — esse registo impede a observação daquele que nos insultou. Quer dizer, vocês observam a pessoa que acabou de os insultar ou elogiar com uma mente, com um cérebro que fez o registo daquilo, de modo que não consideram a pessoa em questão. Mas porque esse registo forma uma continuidade, encontramos segurança nela. O cérebro diz: " Como já fui magoado uma vez, o melhor é registar isso, conservar a sua lembrança para desse modo evitar ser magoado no futuro". Fisicamente isso pode ser determinante, mas psicologicamente será? Nós fomos magoados porque a mágoa constitui um ato de nos movermos no tempo da construção da imagem que possuímos de nós mesmos, e dessa forma sempre que essa imagem sofre uma alfinetada sentimos mágoa. Enquanto preservarmos uma imagem de nós mesmos sempre poderemos sair magoados. Portanto será possível não possuirmos imagem nenhuma e, consequentemente, registo nenhum? Estamos a estabelecer a base para a pesquisa daquilo que constitui a meditação.
Será possível não registarmos psicologicamente e registarmos unicamente aquilo que for relevante e necessário? Quando tivermos estabelecido ordem — quando existir ordem na nossa vida — então deverá resultar liberdade. Mas somente a mente desordenada segue no encalço da liberdade. Quando chegamos a possuir uma ordem total, então essa mesma ordem representará liberdade.
Para nos aprofundarmos neste assunto, precisamos compreender a natureza da nossa consciência. Essa consciência é formada pelo seu conteúdo e não existe separada desse conteúdo. Esse conteúdo forma a nossa consciência. E o conteúdo é a nossa tradição, as nossas ansiedades, o nosso nome, a nossa posição. Isso forma o conteúdo e molda a nossa consciência. Poderá toda esta consciência — que inclui o cérebro — a mente com todo o seu conteúdo, ter noção de si própria, noção da sua duração, e tomar uma parte dessa consciência (como o apego) para a fazer cessar voluntariamente? Isso significará um rompimento com toda a continuidade. Perguntava se será possível registarmos unicamente aquilo que for necessário e relevante e nada mais além disso. Entendamos toda a beleza dessa questão e as suas implicações, a sua intensidade. Eu afirmo que é possível. Eu poderia explicar, porém a explicação não é um fato. Não se deixem apanhar pelas explicações, mas procurem chegar ao fato por intermédio delas. Então as explicações não mais terão importância.
O movimento do tempo, o movimento do pensamento, o movimento do passado, modificados no presente, prosseguem e formam uma continuidade. Isso é todo o movimento que o cérebro regista; de outra forma não seria possível possuirmos conhecimento. O conhecimento implica continuidade, e, portanto, ao encontrar segurança nessa continuidade o cérebro é forçado a fazer registo. Esse movimento alastrou a todo o campo psicológico. Mas o conhecimento é sempre limitado. Não existe conhecimento omnipotente, porém o cérebro ao encontrar segurança no movimento do conhecimento, adere a ele, e passa a interpretar todo o incidente de acordo com o passado. E desse modo o passado adquire uma tremenda importância para o cérebro, porque ele próprio é esse passado.
Todavia, é lógico que o vosso próprio intelecto perceba com muita clareza que, aquilo que sofre continuidade não possui nada de novo, aquele aroma novo; nem a nova terra nem o novo céu. Desse modo o intelecto questiona-se da possibilidade de uma cessação da continuidade que não constitua perigo para o cérebro, porque, caso não passemos pelo processo dessa continuidade então estaremos perdidos. Se pusermos um fim á continuidade, o que será de nós? O cérebro mostrou que só pode funcionar com base na segurança, seja ela verdadeira ou falsa, mas a continuidade do processo de registo conferiu-lhe segurança. Aí nós dizemos para connosco: " Regista somente o que for necessário e relevante, e nada mais". Mas subitamente o cérebro sente-se perdido. Ele funciona com base na busca de segurança e por isso diz: " Dá-me segurança e eu prosseguirei no encalço dela".
Existe segurança é claro, mas não esse tipo de segurança. Consiste ela ao invés, em colocar o conhecimento e o pensamento no seu devido lugar. A própria ordem no viver só é possível quando o cérebro tiver compreendido o modo desordenado em que vive, enquanto que, ao mesmo tempo chama a isso segurança. Quando tomar consciência do quanto a segurança implica em colocar cada coisa em ordem — ou seja, registar tudo aquilo que for relevante e não o irrelevante — então o cérebro dirá: "Eu compreendi a coisa, captei-a, consegui obter um insight sobre todo este movimento da continuidade". E dessa forma obtém um clarão de compreensão. Esse insight é o resultado da ordem completa que acontece quando o cérebro dispôs cada coisa no seu devido lugar. Então poderemos ter um insight completo sobre a totalidade do movimento da consciência, e desse modo o cérebro registará somente aquilo que for necessário e nada além disso. Mas isso implica que a atividade do cérebro sofra uma mudança, do mesmo modo que a própria estrutura do cérebro, porque a visão de uma coisa de modo renovado — como que pela primeira vez — conduz à operação de uma nova função. Quando o cérebro vislumbra algo de novo, passa a existir uma função nova, e passa a nascer um organismo novo. É completamente necessário que a mente e o cérebro se tornem jovens, revigorados, joviais, inocentes, juvenis, mas isso só acontecerá quando não existir nenhuma forma de registo.
Fará o amor parte desta consciência? O amor poderá sofrer continuidade? Dissemos que a consciência é continuidade e tradição. Mas será que o amor faz parte desse campo ou está totalmente apartado dele? Eu estou simplesmente a expor a questão, a desafiar uma resposta. Não parto do pressuposto de que faça ou deixe de fazer. Mas, se fizer parte desse campo da consciência, não fará também parte do pensamento? O conteúdo da nossa consciência é criado pelo pensamento. As crenças, os deuses, a superstição, as tradições, o medo, tudo isso faz parte do pensamento. Mas fará o amor parte desse pensamento ou desta consciência? Ou seja, será o amor desejo, prazer, sexo? O amor fará parte do processo do pensamento? Será uma recordação?
Enquanto o intelecto for predominante, o amor não poderá, possivelmente, existir nem surgir, qual orvalho da madrugada. Mas a nossa civilização adora o intelecto porque o intelecto possibilitou a criação de teorias sobre Deus, e criou princípios e ideais. Portanto, o amor fará parte dessa corrente, dessa consciência? Poderemos ter amor quando sentimos ciúme? Poderemos sentir amor quando nos achamos apegados á nossa esposa, ao nosso marido, ou filho? Poderemos ter amor quando carregamos a lembrança, a recordação, a imagem da atração sexual? Poderá o amor ter continuidade? Por favor, pensem bem nisso porque nós não temos amor no coração e por isso o mundo se encontra na confusão em que está.
Para alcançarmos esse amor, é preciso que a corrente da consciência sofra um findar: a inveja, o antagonismo, a ambição, o desejo de poder, o desejo de nos tornarmos melhores e sermos pessoas ilustres, a busca de poder — seja o poder de levitar, o de efetuar negócios, o poder que a posição confere, o poder da política, da religião ou o poder que exercemos sobre a nossa mulher, marido ou filhos. Onde existir um sentimento de egoísmo, não poderá existir esse amor. Mas esse processo de registar constitui a essência do egoísmo. O fim da nossa infelicidade será o início da compaixão, porém nós usamos a infelicidade como meio para avançarmos e nos tornarmos melhores. Mas é, ao invés, pelo findar de uma coisa que poderá ocorrer algo de infinitamente novo.
Devemos possuir espaço, não fisicamente mas espaço mental, o que significa não andarmos tão ocupados. Mas a nossa mente está sempre ocupada: "Como poderei parar de tagarelar?" ou "Eu preciso produzir espaço na mente; Preciso ficar em silêncio", etc. A dona de casa ocupa-se da cozinha ou dos filhos, o devoto ocupa-se com o seu Deus, o homem vulgar ocupa-se com a sua profissão, com o sexo, com o trabalho, com o objeto da sua ambição, ou então com a sua posição. A mente está inteiramente ocupada, de modo que não resta espaço nenhum.
Devemos estabelecer na nossa vida uma ordem que não tenha nada a ver com a ordem da disciplina nem do controle. Pudemos perceber com toda a inteligência como a ordem só pode resultar da compreensão da própria desordem. Muito importa que produzamos ordem na nossa vida e nos nossos relacionamentos, porque a vida é relacionamento, movimento, atitude empreendida no campo da relação. Porque se o relacionamento com a nossa esposa, marido, com os filhos ou com os vizinhos não possuir ordem — estejam eles próximos ou afastados — então esqueçam toda a meditação. Se não possuirmos ordem na nossa vida e tentarmos meditar, cairemos na armadilha das ilusões. Mas se agirmos com seriedade e possuirmos essa ordem que não é temporária mas absoluta, então essa ordem poderá dar lugar á ordem cósmica porque estará em relação com ela. Essa ordem cósmica é o pôr do sol, o surgimento da lua e a maravilha do céu noturno com toda a sua beleza. A simples observação superficial do cosmos e do universo através do telescópio não constitui um fator de ordem. Mas se a nossa vida possuir ordem, nesse caso possuiremos uma relação extraordinária com o universo.
Todavia se a mente se encontrar a abarrotar não poderemos ter ordem nem espaço mental. Como poderá ter espaço se ela se encontrar cheia de problemas? Para possuirmos espaço mental temos de resolver cada problema imediatamente, á medida que surge. Isso faz parte da meditação — e não carregar problemas continuamente, dia após dia. Será pois possível não andarmos tão constantemente ocupados — o que não denota falta de responsabilidade? Antes pelo contrário, quando não estamos ocupados podemos dedicar toda a nossa atenção á responsabilidade. Somente a mente ocupada pode tornar-se presa da confusão, o que torna a responsabilidade uma coisa repugnante e chega a comportar a possibilidade da culpa. Mas por favor, não me perguntem como poderão deixar de andar tão ocupados, porque nesse caso passarão a ocupar-se de um sistema, um método ou simples lugares-comuns. Se conseguirem perceber, captar numa percepção direta, o quanto uma mente ocupada pode ser destrutiva, e é destituída de toda liberdade e espaço, então desocupar-se-ão naturalmente.
E nesse caso poderemos velar pela atenção. Será que neste momento estão a prestar atenção? Que significa prestar atenção? Se estiverem a prestar atenção de verdade, não haverá um centro a partir do qual o façam, e essa atenção não poderá sofrer continuidade, como talvez gostariam que acontecesse. A continuidade é desatenção. Quando prestamos atenção — quer dizer, quando escutamos, nessa atenção não existe um centro que diz: "Eu estou a aprender, eu estou a escutar, eu estou a perceber". Existe somente o enorme sentido de totalidade, que constitui essa observação — escutar e aprender — mas nela, não se dá nenhum movimento do pensamento. Essa atenção não pode ser sustentada por nenhum acto contínuo. Quando o pensamento declara que deve descobrir a forma de lhe chegar ou alcançá-la, esse movimento de a tentar capturar deverá constituir uma forma de desatenção — falta de atenção. Mas, ter consciência desse movimento exterior torna-se atenção, ficar atento. Captaram a coisa?
A mente deve possuir amplitude de espaço, mas isso só pode acontecer se não houver a tagarelice do pensamento e se resolvermos cada problema à medida que for surgindo. Só poderemos possuir amplitude de espaço mental quando não possuirmos um centro, porque no momento que detivermos um centro, então terá que haver uma área circundante, terá de existir um movimento do centro para a periferia. Mas esse espaço implica a ausência desse centro, de modo que resulte absolutamente destituído de limites. A atenção implica que devemos aplicar toda a nossa energia no escutar, pela observação, mas nisso não existe centro nenhum. Daí surgirá uma mente que terá compreendido a ordem e se acha livre do medo, uma mente que terá posto fim ao sofrimento, que terá compreendido a natureza do prazer e lhe terá conferido a função adequada.
E então colocaremos a questão: Qual será a natureza da mente que se encontra completamente imersa no silêncio — e não como alcançar esse silêncio, nem como conseguir ter paz de espírito — estou a referir-me à qualidade da mente que está mergulhada num silêncio absoluto e intemporal. Qual será?
Existe silêncio entre duas notas musicais, silêncio entre dois pensamentos ou entre dois movimentos; existe o silêncio que separa duas guerras e o silêncio que antecede a discussão seguinte entre marido e mulher. Não me estou a referir a essa qualidade de silêncio, porque ela é temporária e finita. Estou a referir-me a um silêncio que não pode ser produzido pelo pensamento e que não é cultivável; que sucede somente quando compreendermos todo o movimento da existência. Nisso há silêncio; não se trata de perguntas e respostas nem desafio ou busca — tudo isso permanece de lado. Esse silêncio possui um enorme sentido de espaço e beleza, um extraordinário sentido de energia. Nessa altura poderá ocorrer aquilo que é eterno e infinitamente sagrado; que não é nem produto da civilização nem do pensamento. Esse é todo o movimento da meditação.
Krishnamurti - O significado autêntico da meditação — 14 Jan. 1979