quarta-feira, 27 de março de 2013

Penetrando o real sentido de viver


Antes de mais nada, desejo declarar que não pertenço a sociedade alguma. Não sou teosofista nem missionário teosófico e nem tampouco tenho o propósito de lhes converter a qualquer forma específica de crença. Acredito não ser possível seguir a alguém ou aderir a determinada crença e, ao mesmo tempo, possuir capacidade de pensar com clareza.

Eis porque a maioria dos partidos, das sociedades, das seitas e das corporações religiosas se tornam meios de exploração.

Tampouco sou portador de uma filosofia oriental, concitando-lhes para que a aceitem. Quando falo na Índia, dizem-me ali que anuncio uma filosofia do ocidente; e quando venho para países ocidentais, dizem que trago um misticismo oriental que não é prático e que, portanto, é inútil para o mundo das ações. Se, porém, realmente refletirem, verão que para o pensamento não há nacionalidades, nem tão pouco se acha ele restrito a qualquer país, clima ou povo. Portanto, peço-lhes que não considerem o que vou dizer-lhes como o resultado de um determinado preconceito racial, de uma especificada idiossincrasia ou peculiaridade. O que tenho a lhes dizer é atual, efetivo no sentido de poder ser aplicado à vida atual do homem, e não, absolutamente, coisa teórica, baseada em certas teorias ou crenças, porém sim baseado, se me é permitido personalizar, em minha própria experiênciaÉ praticável e aplicável ao homem.

Agora, o pleno significado do que vou lhes dizer, somente pode ser compreendido por meio da experiência e, portanto, da ação. Para a maioria de nós é agradável a discussão sobre questões filosóficas que não se relacionam com as nossas ações diárias; ao passo que aquilo de que lhes falo não é uma filosofia nem um sistema de pensamento, e seu profundo significado somente pode ser compreendido por meio da experiência e, consequentemente, da ação.

O que lhes digo não é uma teoria ou crença intelectual para ser meramente discutida, para servir de motivo para controvérsias; é coisa que exige reflexão demorada; e, para descobrir a sua utilidade prática, a verdade que contém, o que é necessário é de ação e não de debate intelectual. Não é um sistema para ser memorizado nem um conjunto de conclusões a ser aprendido e automaticamente executado. Deve ser criticamente compreendido.  Crítica, porém, é coisa diferente de oposição. Se realmente forem críticos, não se oporão pura e simplesmente, mas irão se esforçar para averiguar se o que eu digo tem mérito intrínseco em si mesmo. Isso exige da parte de vocês clareza de pensar, de modo que lhes seja possível passar além da ilusão das palavras, não permitindo que os seus preconceitos, sejam eles econômicos ou religiosos, lhes impeçam de pensar fundamentalmente. Isto é, vocês têm de pensar, a partir do começo, pensar simples e diretamente. Todos nós temos sido educados com muitos preconceitos, muitas ideias preconcebidas; fomos criados em meio de tradições que corrompem, limitados pelo ambiente, e, por isso, o nosso pensamento está, continuamente, sendo torcido e pervertido, impedindo, desta forma, a simplicidade da ação.

Tomem, por exemplo, a questão da guerra. Sabem que muita gente discute sobre se a guerra é um bem ou um mal. Certamente, não pode haver duas maneiras de encarar o assunto: a guerra é, fundamentalmente, um mal, seja defensiva ou ofensiva. Ora, para pensarmos, desde o princípio, a respeito desse assunto, a mente tem de estar inteiramente liberta da doença do nacionalismo. Somos impedidos de pensar fundamentalmente, direta e simplesmente, em virtude dos preconceitos que tem sido explorados, durante as idades, sob a forma de patriotismo, com todo o seu cortejo de coisas absurdas.

Por muitos séculos, pois, temos criado hábitos, tradições, preconceitos, que impedem o indivíduo de pensar de maneira integral, fundamental, acerca dos vitais assuntos humanos.

Ora, para compreender os múltiplos problemas da vida, com todas as suas variedades de sofrimento, temos de, por nós próprios, descobrir seus motivos e causas fundamentais, com seus implícitos resultados e efeitos. Porque, se não estivermos plenamente conscientes das nossas ações e das suas causas e respectivos efeitos, exploraremos e seremos explorados, nos tornaremos escravos de sistemas, vindo as nossas ações a se tornarem apenas mecânicas e automáticas. Enquanto não pudermos, conscientemente, libertar as nossas ações de seu efeito limitador, por meio da compreensão do significado de suas causas, a não ser que, conscientemente, rompamos com as velhas formas de pensamento que ao nosso redor temos construído, não nos será possível ultrapassar as inúmeras ilusões que nos rodeiam e que temos criado, nas quais estamos embaraçados.

Cada qual tem de perguntar, a si próprio, o que está buscando, a fim de averiguar se está meramente deixando-se arrastar pelas circunstâncias e condições ambientes, sendo, portanto, irresponsável e irrefletido. Aqueles entre vocês, que realmente se acharem descontentes, aqueles que forem críticos, devem já ter perguntado a si próprios o que é que cada indivíduo anda procurando.

Vocês procuram conforto, segurança, ou procuram a compreensão da vida?

Muitas pessoas dirão que estão buscando a verdade. Se, porém, analisarem a natureza de suas aspirações, de sua busca, verificarão que, realmente, estão em busca de conforto, de segurança, de uma fuga do conflito, do sofrimento.

Ora, se vocês andam em busca de conforto, de segurança, essas coisas terão de se basear na aquisição, portanto, na exploração e na crueldade. E, de disserem que estão buscando a verdade, se tornarão prisioneiros da ilusão; pois que a verdade não é coisa em cujo encalço se corra, não pode ser buscada, tem de ser um acontecimento. Isto é, seu êxtase é somente perceptível, quando a mente está, completamente, despojada de todas as ilusões que tenha criado em virtude da busca de sua própria segurança e conforto. Só então terá lugar o alvorecer daquilo que é a verdade. Expressando isto de outra maneira: temos de interrogar, a nós próprios, no sentido de saber em que é que toda a nossa vida, todo o nosso pensamento e toda a nossa ação se baseiam. Se pudermos responder a esta pergunta, de modo completo e verdadeiro, então, por nós mesmos, averiguaremos quem é o criador das ilusões, o criador dessas supostas realidades, das quais temos nos tornados prisioneiros.

Se, realmente, refletirem sobre isto, verificarão que toda a vida de vocês está baseada no conseguir segurança, salvação e conforto individual. Desta busca de segurança, naturalmente, nasce o medo. Ao buscar conforto, ao tentar fugir da luta, do conflito e da tristeza, a mente tem de criar várias vias de fuga, e essas vias tornam-se as nossas ilusões. Portanto, o medo, que é a resultante da busca individual da segurança, é também o criador das ilusões. Este medo arrasta-lhes de uma para outra seita religiosa, de uma filosofia para outra, de um instrutor para outro, até encontrarem a segurança e o conforto que desejam.  A isto chamam busca da verdade e da felicidade.

Conforto e segurança são coisas que não existem; existe somente a clareza de pensar, que produz a compreensão da causa fundamental do sofrimento, a qual, unicamente, pode libertar o homem. Nessa libertação reside a beatitude do presente. E digo-lhes que existe uma eterna realidadea qual só pode ser descoberta, quando a mente esta liberta de todas as ilusões. Portanto, tenham cautela contra a pessoa que lhes dá conforto, pois nela tem de haver exploração; essa pessoa cria uma armadilha, na qual ficam presos como o peixe na rede.

Na busca do conforto e da segurança, a vida chegou a ser dividida em vida religiosa ou espiritual e vida econômica ou material. A segurança material encontra-se por meio da posse de bens que proporcionam o poder; e é em virtude desse poder que vocês esperam alcançar a felicidade. Para atingir esta segurança material, este poder, tem de haver exploração, a exploração do próximo, mediante um sistema deliberadamente estabelecido, que tem se tornado hediondo, pelas suas múltiplas crueldades. Esta busca de segurança individual em que se acha incluída também a nossa família, criou as distinções de classe, os ódios de raça, o nacionalismo; coisas essas que, eventualmente, terminam em guerras.

E há um fato curioso que vocês podem cerificar, se sobre ele refletirem: a religião, a quem competia a condenação da guerra, ajuda a promovê-la. Os sacerdotes, que se teriam como sendo os educadores do povo, animam toda as espécies de abusos criados pelo nacionalismo, e que cegam o povo, em momentos de ódio nacional. Naturalmente, pois, vocês criam um sistema baseado no conforto e na segurança individual, a que chamam religião. Vocês é que têm criado as religiões, que são formas cristalizadas do pensamento e que têm por fim assegurar a imortalidade pessoal.

Assim, pois, em virtude da busca de segurança individual, movidos pelo desejo de continuidade do ser individual, vocês têm criado uma religião que lhes explora, por meio das cerimônias, por meio dos pretensos ideais. O sistema que vocês chama de religião, e que foi originariamente criado em virtude dos seus anseios de segurança, tornou-se tão poderoso, tão realista, que muito poucos são os que se libertam do seu peso, do fardo esmagador da tradição e da autoridade. O ponto inicial de partida para uma verdadeira critica reside na investigação dos valores que a religião, ao nosso redor, estabeleceu.

Ora, todos nós estamos encerrados neste campo; e enquanto estivermos escravos de um ambiente e de valores não pesquisados, não colocados em dúvida, sejam passados ou presentes, eles têm de perverter a integridade das ações. Esta perversão é a causa do conflito entre o indivíduo que busca a segurança, e a coletividade; entre o indivíduo e o contínuo movimento da experiência. E do mesmo modo por que, individualmente, temos criado este sistema de exploração e de esmagadora limitação, temos também de, individual e conscientemente, derrubá-lo, por meio da compreensão relativa ao alicerce dessa construção, e não pelo mero criar de novos conjuntos de valores, que nada mais serão que novas linhas de fuga. E assim, verdadeiramente, começaremos a penetrar o significado real do viver.

Sustento que existe uma realidade, embora deem-lhe o nome que quiserem, a qual somente poderá ser compreendida e vivida, quando a mente e o coração tiverem penetrado a ilusão dos falsos valores e deles tiverem se libertado. Somente então existirá o eterno.

Krishnamurti — O medo – 1946 — Coletânea ICK

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