sexta-feira, 15 de março de 2013

O processo do ódio


Ela era uma professora, ou melhor, fora. Ela era carinhosa e bondosa, e isso se tornara quase uma rotina. Ela contou que ensinara por mais de 25 anos e era feliz por isso; embora no final tenha sentido vontade de largar tudo, ficou amarrada à atividade. Recentemente, começou a perceber o que estava profundamente enterrado em sua natureza. De repente, ela descobriu durante uma das discussões e ficou realmente surpresa e chocada. Estava lá e não era uma simples autoacusação; e, ao olhar para os anos anteriores, agora podia ver que isso sempre estivera presente. Ela realmente odiava. Não era um ódio por alguém em especial, mas um sentimento generalizado, um antagonismo reprimido em relação a todos e a tudo. Quando, a principio, descobriu isso, pensou que era algo muito superficial que ela poderia abandonar facilmente; mas, à medida que os dias passavam, descobriu que não era apenas uma questão passageira, mas um ódio profundamente arraigado que estivera presente toda a sua vida. O que a chocava era sempre ter-se considerado carinhosa e boa.

O amor é uma coisa estranha; enquanto o pensamento está entrelaçado com ele, não é amor. Quando você pensa em alguém que ama, essa pessoa torna-se o símbolo de sensações, lembranças, imagens agradáveis; mas isso não é amor. O pensamento é uma sensação, e sensação não é amor. O próprio processo de pensar é a negação do amor. O amor é a chama sem a fumaça do pensamento, do ciúme, do antagonismo, do uso, que são coisas da mente. Enquanto o coração estiver sobrecarregado com as coisas da mente, existirá ódio; pois a mente é o local do ódio, do antagonismo, da oposição, do conflito. O pensamento é reação, e a reação é sempre, de um modo ou de outro, a fonte da animosidade. O pensamento é oposição, ódio; o pensamento está sempre em competição, sempre buscando um resultado, o sucesso; sua satisfação é o prazer e sua frustração é ódio. O conflito é o pensamento preso nos opostos; e a síntese dos opostos ainda é ódio, antagonismo.

“Veja, sempre pensei que amava as crianças, e até depois de crescidas elas costumavam me procurar para ajudá-las quando estavam com problemas. Assumi que as amava, especialmente as que eram minhas prediletas fora da sala de aula; mas agora vejo que sempre existiu um sentimento oculto de ódio, de antagonismo, profundamente arraigado. O que vou fazer com essa descoberta? Você não faz idéia do quanto fiquei estarrecida com isso e, embora você diga que não devemos condenar, essa descoberta foi muito salutar.”

Você também descobriu o processo do ódio? Ver a causa, saber por que você odeia é algo relativamente fácil; mas você está consciente dos comportamentos habituais do ódio? Você os observa como observaria um novo animal desconhecido?

“Tudo isso é bastante novo para mim e jamais observei o processo do ódio.”

Vamos fazer isso agora e ver o que acontece; vamos observar passivamente o ódio enquanto ele se revela. Não fique chocada, não censure, nem encontre desculpas; apenas observe passivamente. O ódio é uma forma de frustração, não? Satisfação e frustração sempre estão juntas.
No que você está interessada, não profissionalmente, mas bem em seu íntimo?

“Eu sempre quis pintar.”

Por que não o fez?

“Meu pai costumava insistir que eu não deveria fazer nada que não produzisse dinheiro. Ele era um homem muito dinâmico, e dinheiro para ele era a finalidade de todas as coisas; ele nunca fazia algo que não tivesse dinheiro envolvido ou que não trouxesse mais prestigio, mais poder. “Mais” era seu deus, e nós éramos seus filhos. Embora gostasse dele, eu era seu oposto de muitas maneiras. Essa idéia da importância do dinheiro foi profundamente implantada em mim; e eu gostava de ensinar, provavelmente porque isso me oferecia a oportunidade de ser a chefe. Em minhas férias, eu costumava pintar, mas era algo bastante insatisfatório; eu queria dedicar minha vida a isso, e o fazia apenas uns dois meses por ano. Finalmente, parei de pintar, mas isso me queimava interiormente. Vejo agora como isso estava gerando antagonismo.”

Você já foi casada? Tem filhos?

“Eu me apaixonei por um homem casado e vivemos juntos secretamente. Eu tinha um ciúme violento de sua mulher e seus filhos, e tinha medo de ter filhos, embora os desejasse ardentemente. Todas as coisas naturais, o companheirismo do dia a dia etc., me foram negadas, e o ciúme era de uma fúria destruidora. Ele teve de se mudar para outra cidade, e meu ciúme jamais diminuiu. Era algo insuportável. Para esquecer tudo isso, eu me afeiçoei ainda mais ao ensino. Mas agora vejo que ainda tenho ciúmes, não dele, pois ele morreu, mas de pessoas felizes, de pessoas casadas, dos bem-sucedidos, de quase qualquer um. O que poderíamos ter sido juntos nos foi negado!”

Ciúme é ódio, não é? Se alguém ama, não há espaço para outra coisa. Mas nós não amamos; a fumaça sufoca nossa vida, e a chama morre.

“Consigo ver agora que na escola, com minhas irmãs casadas e em quase todos os relacionamentos, havia uma guerra em andamento, só que ela estava oculta. Eu estava me tornando a professora ideal; tornar-se a professora ideal era meu objetivo, e eu estava sendo reconhecida como tal.”

Quanto mais forte o ideal, mais profunda a repressão, mais profundos o conflito e o antagonismo.

“Sim, vejo tudo isso agora; e estranhamente, enquanto observo, não me importo de ser o que de fato sou.”

Você não se importa porque há um tipo de reconhecimento brutal, não é? Esse mesmo reconhecimento produz certo prazer; ele dá vitalidade, um sentido de confiança de conhecer a si mesma, o poder do conhecimento. Como o ciúme, embora doloroso, dava uma sensação agradável, agora o conhecimento de seu passado lhe dá uma sensação de domínio que é também agradável. Você agora encontrou um novo termo para ciúme, para frustração, para abandono: é ódio — e o reconhecimento dele. Há orgulho em saber, que é outra forma de antagonismo. Nós vamos de uma substituição a outra; mas, em geral, todas as substituições são iguais, embora verbalmente elas possam parecer diferentes. Então você ficou presa na rede do próprio pensamento, não é?

“Sim, mas o que mais se pode fazer?”

Não pergunte, mas observe o processo de seu próprio pensamento. Como ele é dissimulado e enganador! Ele promete libertação, mas só produz outra crise, outro antagonismo. Esteja passivamente atenta a isso e deixe que a verdade disso apareça.

“Haverá libertação do ciúme, do ódio, dessa batalha reprimida e constante?”

Quando você está esperando por algo, positiva ou negativamente, está projetando o próprio desejo; você terá sucesso, mas isso será apenas outra substituição, e assim a batalha estará de novo em atividade. Esse desejo de ganhar ou de evitar ainda está dentro do campo da oposição, não está? Veja o falso como falso, e então a verdade aparecerá. Você não tem de procurar por ela. Você encontrará o que procurar, mas não será a verdade. É como o homem desconfiado que descobre aquilo de que suspeitava, o que é relativamente fácil e estúpido. Apenas esteja passivamente consciente desse processo total do pensamento e também do desejo de se libertar dele.

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