terça-feira, 5 de março de 2013

Não há pensador, apenas pensamento condicionado


“O que quer dizer com ação total?”

Para compreender a ação total, temos de explorar a divisão entre o pensador e seu pensamento.

“Existe um observador que está acima tanto do pensador quanto de seu pensamento, não acha? Eu sinto que há. Por um único momento de êxtase, experimentei tal estado.”

Essas experiências resultam de uma mente que foi moldada pela tradição, por mil influências. As visões religiosas de um cristão serão bastante distintas das visões de um hindu ou muçulmano, já que todas, essencialmente, se baseiam no condicionamento particular daquela mente. O critério da verdade não é a experiência, mas o estado em que nem o experimentador nem a experiência existem mais.

“Você fala do estado de samadhi?”

Não, senhor; ao usar essa palavra você está apenas citando a descrição da experiência do outro.

“Mas não existe um observador acima e além do pensador e de seu pensamento? Definitivamente, sinto que é assim.”

Começar com uma conclusão põe um fim a todo o pensar, não é?

“Mas não se trata de uma conclusão, senhor. Eu sei, senti a verdade disso.”

Aquele que diz que sabe, na verdade, não sabe. O que você sabe ou sente ser verdadeiro é o que lhe foi ensinado; outro, que por acaso foi ensinado de modo diferente pela sociedade, por sua cultura, afirmará com igual confiança que seu conhecimento e experiência lhe mostram que não há um observador final. Ambos, o crente e o descrente, estão na mesma categoria. Ambos começam com uma conclusão, e com experiências baseada em seu condicionamento, não é assim?

“Quando você coloca dessa forma, realmente parece que permaneci equivocado o tempo todo, mas ainda não estou convencido.”

Não estou tentando provar que você está equivocado, nem convencê-lo de nada; apenas estou destacando certos aspectos para que você os examine.

“Após consideráveis leituras e estudos, imagino que já examinei de modo bastante abrangente a questão do observador e do observado. A mim, parece que, se o olho vê a flor, e a mente observa através do olho, portanto, além da mente, deve haver uma  entidade que está consciente de todo o processo, ou seja, da mente, do olho e da flor.”

Vamos investigar o tema sem definições, pressa ou dogmatismo. Como surge o pensamento? Há a percepção, o contato, a sensação, e daí o pensamento, baseado em memória, diz: “Isto é uma rosa.” O pensamento cria o pensador; o que dá origem ao pensador é o processo do pensar. O pensamento vem primeiro; depois o pensador, e não o contrário. Se não percebemos que isso é um fato, seremos levados a todo tipo de confusão.

“Mas existe uma divisão, um hiato, estreito ou amplo, entre o pensador e o pensamento; esse fato não indicaria que o pensador surge primeiro?”

Vejamos. Ao perceber que é impermanente, inseguro, e ao desejar a permanência e a segurança, o pensamento gera o pensador, e, em seguida, empurra o pensador para níveis cada vez mais altos de permanência. Portanto, há um aparente hiato entre o pensador e o pensamento, entre o observador e o observado; mas todo o processo ainda pertence à esfera do pensamento, não é verdade?

“Senhor, o que quer dizer é que o observador não tem realidade, que é tão impermanente quanto o pensamento? Mal posso acreditar nisso.”

Você pode chamá-lo de alma, Atman, ou qualquer outro nome que queira, mas o observador ainda é o produto do pensamento. Enquanto o pensamento estiver ligado de alguma forma ao observador, ou este estiver no controle, moldando o pensamento, ele ainda estará dentro do campo do pensamento, dentro do processo do tempo.

“Como minha mente objeta a isso! E, mesmo assim, sem querer, estou começando a ver que é um fato; e se é um fato, então só há o processo do pensar, e nenhum pensador.”

É isso, não é mesmo? O pensamento gera o observador, o pensador, o censor consciente ou inconsciente que está perpetuamente julgando, condenando, comparando. É esse observador que está sempre em conflito com seus pensamentos, sempre se esforçando por guia-los.

“Por favor, vá um pouco mais devagar; realmente quero avançar o assunto passo a passo. Você está indicando que todas as formas de esforço, nobres ou ignóbeis, resultam dessa divisão artificial e ilusória entre o pensador e seus pensamentos. Mas está tentando eliminar o esforço? O esforço não é necessário para qualquer mudança?

Logo abordaremos esse assunto. Nós vimos que só existe o pensar, que inventa o pensador, o observador, o censor, o controlador. Entre o observador e o observado existe o conflito do esforço de um para ultrapassar ou, ao menos, modificar o outro. Esse esforço é vão, jamais pode produzir mudança fundamental no pensamento, porque o pensador, o censor, é, em si mesmo, parte daquilo que deseja mudar. Uma parte da mente não tem a menor possibilidade de transformar outra parte, que não passa de uma continuação de si mesma. Um desejo pode, e muitas vezes consegue, superar outro desejo. Mas o desejo vitorioso gera outro desejo ainda, que por sua vez se torna o perdedor ou o vencedor, e assim o conflito da dualidade se põe em movimento. Não há movimento. Não há fim para esse processo.

“A mim parece que você está dizendo que é somente por meio da eliminação do conflito que há possibilidade de mudança fundamental. Não compreendo muito bem. Poderia tratar um pouco mais disso?”

O pensador e seu pensamento são um processo unitário, nenhum deles tem uma continuidade independente; o observador e o observado são inseparáveis. Todas as qualidades do observador estão contidas em seu pensamento; se não há pensamento, não há observador, não há pensador. Isso é um fato, não é?

“Sim, até aí, entendi.”

Se a compreensão é apenas verbal, intelectual, ela tem pouco significado. É preciso haver uma experiência real do pensador e de seu pensamento como um só, uma integração de ambos. Desse modo, há apenas o processo do pensar.

“O que quer dizer com o processo do pensar?”

É a forma ou a direção na qual o processo foi posto em movimento: pessoal ou impessoal, individual ou coletivo, religioso ou mundano, hindu ou cristão, budista ou muçulmano e assim por diante. Não há pensador que seja muçulmano, mas apenas o pensar que recebeu um condicionamento muçulmano. O pensar é o resultado do próprio condicionamento. O processo ou maneira de pensar deve, inevitavelmente, gerar conflito, e quando é feito um esforço para superar esse conflito por diversos meios, ele apenas constrói outras formas de resistência e conflito.

“Isso está claro — ou pelo menos acho que sim.”

Essa forma de pensar deve cessar por completo, pois gera confusão e infelicidade. Não há forma de pensar melhor ou mais nobre. Todo pensamento é condicionado.

“Parece que você está insinuando que somente quando o pensamento cessa é que ocorre uma mudança radical. Mas isso é verdade?”

O pensamento é condicionado. A mente, por ser o armazém das experiências, memórias, das quais o pensamento se origina, é, em si mesma, condicionada; e qualquer movimento da mente, em qualquer direção, produz os próprios resultados limitados. Quando a mente se esforça para se transformar, apenas constrói outro padrão, diferente, talvez, mas ainda um padrão. Todo esforço da mente em se libertar é a continuação do pensamento; pode estar num nível mais elevado, mas ainda se encontra no próprio círculo, o círculo do pensamento, do tempo.

“Sim, senhor, estou começando a entender. Por favor, prossiga.”

Qualquer movimento de qualquer tipo por parte da mente apenas dá força à continuidade do pensamento, com suas buscas invejosas, ambiciosas, acumulativas. Quando a mente está totalmente desperta para esse fato, assim como fica completamente alerta para uma cobra venenosa, então você vê que o movimento do pensamento chega ao fim. Só assim há uma revolução total, e não a continuidade do velho sob uma forma diferente. Esse estado não deve ser descrito; aquele que descreve não está ciente dele.

“Realmente, acho que entendi não apenas suas palavras, mas a implicação total daquilo que vem dizendo. Se, de fato, entendi ou não, será revelado em minha vida cotidiana.”


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