Interrogante: Não é um paradoxo dizerdes que o pensamento sempre funciona em fragmentos e que, para se perceber que o pensamento funciona em fragmentos, necessita-se de energia? Isso é um círculo vicioso?
Krishnamurti: Necessito de energia para olhar, mas esse olhar se torna fragmentário e, por conseguinte, dissipa energia; assim sendo, que se deve fazer? Veja, senhor, eu necessito de energia física, necessito de energia intelectual, necessito de energia emocional, apaixonada, para compreender qualquer coisa — uma energia inquebrantável. Mas sei que estou dissipando essa energia na fragmentação; a todas as horas o estou fazendo. Digo então: "O que devo fazer?" Tenho necessidade dessa energia para resolver imediatamente os problemas da vida; no entanto, estou a dissipá-la continuamente, não tomando alimentos adequados, pensando nisso e naquilo, com meu hinduísmo, meus preconceitos, minhas ambições, inveja, avidez, etc. Ora, posso fazer alguma coisa em tal estado ?" Escutai primeiramente essa pergunta, muito atentamente, não rejeiteis, nem aceiteis. Dissipo energia e tenho necessidade de energia; quer dizer, acho-me num estado de contradição e essa mesma contradição é outro desperdício de energia. Percebo, pois, que tudo o que faço em tal estado é desperdício de energia. A mente que está confusa, por mais que se esforce, em qualquer nível, continuará confusa. Não se pense que, vivendo-se de acordo com "um momento de clareza", a confusão se dissipará. Se o tento, gera-se novo conflito e, por conseguinte, fomenta-se a confusão.
Percebo que toda ação nascida da confusão produz ou leva a mais confusão; compreendi que toda ação da mente confusa só conduz a maior confusão. Vejo isso muito claramente, vejo-o como uma coisa extremamente perigosa — como quando se percebe um grande perigo; vejo-o com a mesma clareza. Que sucede então? Não atuo mais nessas condições de confusão. Essa inação total é ação completa.
Consideremos a questão de maneira diferente. Percebo que a guerra, em qualquer forma, matar o próximo de um avião a grande altura ou com um fuzil a pequena distância; ou uma batalha entre minha mulher e mim, uma batalha comercial, um conflito interior, em mim — é sempre guerra. Posso não matar realmente um vietnamita ou americano, mas, enquanto a minha vida for um campo de batalha, estarei contribuindo para a guerra. Vejo esse fato. Vejo-o — primeiro, como a maioria de nós foi exercitada para vê-lo: intelectualmente, isto é, fragmentariamente. E vejo que, se empreendo qualquer ação nesse estado fragmentário, tal ação só contribuirá para fomentar a guerra, o conflito. Devo, antes de tudo mais, descobrir se tal estado existe, pois pode ser que se trate de um estado puramente teórico, ideológico, imaginário e, portanto, sem valor. Mas, eu tenho de descobri-lo, e para descobrir não devo aceitar a ideia de que tal estado existe. Ora, existe esse estado? Só posso verificá-lo se compreendo a natureza do conflito, totalmente — o conflito que é dualidade, o "bom" e o "mau" (o que não significa que não haja "bom" e "mau"), e o conflito entre o amor e o ciúme. Devo olhá-lo sem julgar, sem comparar — olhar simplesmente. Começo a aprender a olhar, e não a atuar. Aprendo a olhar esse complexo campo da vida, sem aceitar nem rejeitar, comparar, condenar, justificar; a olhar assim como olho uma árvore. Só posso olhar realmente uma árvore, quando não há observador, isto é, quando não se torna existente o processo fragmentário do pensamento. Olho, pois, esse vasto campo de batalha da vida, o qual suponho constituir a maneira natural de viver, esse campo onde tenho de lutar contra meu próximo, contra minha mulher; onde tenho de lutar, quer dizer, comparar, julgar, condenar, ameaçar, odiar. Olho para essa situação que aceitei, para essa vida que sou eu — e posso então olhar para mim mesmo, assim como sou, sem nenhuma comparação, condenação, julgamento? Se posso, já estou fora da sociedade, porque a sociedade pensa sempre segundo as noções de grande e pequeno, poderoso e fraco, belo e feio, etc. De um golpe, compreendi todo o processo de fragmentação e, por conseguinte, não pertenço a nenhuma igreja, nenhum grupo, nenhuma religião, nenhuma nacionalidade, nenhum partido.
Krishnamurti — Saanen, 11 de julho de 1967
Extraído do livro: Como viver neste mundo - ICK