Temos problemas inumeráveis: a total falta de afeição que se observa no mundo, a total ausência de amor; o problema do sexo; a questão do "pecado"; e ainda não compreendemos plenamente o que significa ser criador. vemo-nos em presença de tais problemas, e temos de resolve-los, cada um de nós. E parece-me que uma das nossas maiores dificuldades resulta de considerarmos o pensamento como a única solução para esses inumeráveis problemas.
O pensamento é coisa do tempo, e não tem nenhuma possibilidade de resolver os problemas de nossa vida. Penso que é isso que devemos compreender em primeiro lugar. O pensamento tem o tempo e a autoridade, e não pode em circunstancias nenhuma resolver os incontáveis e intrincados problemas da vida. Torna-se necessária uma atitude inteiramente nova, uma tática que cada um pode por à prova e desenvolver. E para compreender as limitações e a importância do pensamento, temos de observar o processo mecânico do pensar e a futilidade e total superficialidade de todas as filosofias que possuímos, já que elas são produto do pensamento.
Temos de transcender as limitações do pensamento; e este é um dos nossos maiores problemas. E devemos, também, compreender que o caminho que nos mostra a religião tradicional não conduz a parte alguma e que as chamadas religiões têm de ser totalmente abandonadas. Temos, ainda, de verificar, por nós mesmos, o que é um indivíduo. E, finalmente, devemos descobrir a importância da religião e, com o descobrimento do que é verdadeiro, assistir ao aparecimento de um estado em que se verifique a transformação da mente. É sobre isso que vamos falar nesta tarde: a religião, o indivíduo e a transformação.
(...) Vê-se o que está ocorrendo no mundo. Em primeiro lugar, o progresso mecânico, técnico, tão vasto, tão dinâmico, tão absorvente, que, se não o compreendermos, nos veremos colhidos em sua engrenagem e nunca haverá liberdade para o homem, porque, graças à mecanização, aos cérebros eletrônicos, o homem irá ter muito lazer. Daqui a uns cinquenta anos, os problemas econômicos relativos à alimentação, vestuário e moradia, estarão resolvidos e o homem com muito pouco o que fazer. Os estabelecimentos fabris poderão ser movimentados por uma dúzia de pessoas, em vez de três ou trinta mil operários. Os cérebros eletrônicos, os computadores, as máquinas corretoras de máquinas — tudo isso já se produz atualmente. E o homem — vós — vai ter muito lazer.
E o que irá fazer o homem com seus ócios? As religiões organizadas irão sobrecarregar-se desses ócios, os divertimentos e entretenimentos se encarregarão deles. Isso se está verificando. As igrejas, as organizações religiosas, conscientes do que está se passando, estão se organizando para melhor controlar e moldar o pensamento do homem. E, como há necessidade de entretenimento, há diversões organizadas, ou individuais. Assim, ou temos de compreender o significado do ócio, ou iremos ser tragados por esses dois canais e continuaremos, como sociedade, num estado de corrupção.
A sociedade está sempre num estado de corrupção, e cabe-nos descobrir por nós mesmos como nos eximirmos dessa corrupção. Sabeis o que está ocorrendo neste país, e em todo o mundo? Do mais alto ao mais subalterno posto político, há corrupção. Por toda parte, no mundo da arte, da música, há tradição, não há criação. A religião, como atualmente praticada, é absolutamente sem significação e sumamente desastrosa para o homem; nenhuma significação tem; é uma fuga de nossa vida real de tédio e de medo; e todos os rituais, com seus sacerdotes, nada significam, absolutamente, embora, momentaneamente, nos causam uma certa impressão. E a veneração da autoridade, na figura do guru, do líder, a parte nenhuma levará o homem; porque é a total negação da liberdade.
Eis ai, pois, alguns dos nossos problemas. Primeiro, não há liberdade. Tendes de trabalhar para terdes essa liberdade, porque só em liberdade descobrireis o verdadeiro. Não tereis a liberdade mediante determinada forma de governo — comunista, socialista, ou outra. Os governos não resolverão os nossos problemas, e tampouco a ciência os resolverá. Podeis alcançar a Lua ou as entranhas da Terra, mas a mente humana continuará a mesma, sempre a ajustar-se, a modificar-se, e a manter-se num nível superficial de corrupção, modificando, ajustando e reformando. Nenhuma reforma social, tampouco, não importa seu prestígio, não importa sua ação, dará liberdade ao homem. Toda reforma social é a negação da liberdade humana, porquanto sustenta a corrupção da sociedade.
(...) temos apelado para um certo agente exterior — Deus, uma certa autoridade espiritual, etc. — para ajudar-nos a libertar-nos. E isto vem ocorrendo há séculos e séculos, esta busca de ajuda exterior, por meio de preces, de adoração, de obediência, de veneração ao guru, do santo, e de os seguirmos, cegamente ou intelectualmente. Temos tentado inúmeros modos de fuga ao caos criado pelo próprio homem, criado por vós e por mim, como resultado de nossas atividades.
A sociedade, que são as relações, é o resultado de nossas mútuas relações. O ambiente vos formou e vós formates o ambiente. Percebendo tudo isto, o que deve fazer o homem? Não há possibilidade de fuga. Nenhum agente exterior, nenhum deus, ninguém descerá de Marte ou de Venus, em discos voadores, para nos salvar. Nenhuma religião, nenhuma crença, nenhum dogma nos purificará a mente e o coração de maneira tão completa, que saiamos de nossa atual condição, para um estado de beleza, de extraordinária compaixão e amor.
Nessas condições, que podemos fazer? Em primeiro lugar, rejeitar positivamente; rejeitar decididamente a religião que conhecemos, a sociedade existente. Por "sociedade" entendo a estrutura psicológica social de que fazemos parte. Essa tendes de negar totalmente. E tendes de negar a autoridade totalmente, com toda a vossa mente e coração. Rejeitar, também, inteiramente, impiedosamente, toda procura de ajuda por meio de um agente exterior a vós mesmo.
Prestai atenção, por favor! Buscamos ajuda, porque nos achamos num estado de aflição, de confusão, de conflito, e desejamos ser socorridos. Precisamos de alguém que nos diga o que devemos fazer. Precisamos de ser guiados, de ser levados pela mão de alguém, através da escuridão, aonde se acha a luz. Vemo-nos tão confusos, que não sabemos para que lado nos voltarmos. A educação, a religião, os líderes, os santos — todos falharam totalmente. No entanto, porque nos vemos em sofrimento, em conflito e confusão, apelamos para quem nos possa ajudar. E provavelmente é esta a razão da presença, aqui, de muitos de vós, ou seja, a esperança de ter um vislumbre da Realidade, ou de encontrar um caminho por onde sejam levados à beleza da vida.
Ora, se escutardes com vossos ouvidos interiores, com lucidez, vereis que nenhuma ajuda existe. Este orador não pode socorrer-vos, e não quer socorrer-vos. Compreendei isso, por favor, e com calma! Este orador se recusa, positivamente, a socorrer-vos.
O que desejais é manter a corrupção, viver na corrupção, e prestar ajuda no meio dessa corrupção. Desejais uma pequena ajuda para viverdes confortavelmente, levardes avante vossas ambições, vossos métodos, vossas invejas, vossas brutalidades; desejais continuar vossa mesma existência de cada dia, só com umas pequenas modificações — ficar um pouco mais ricos, ter um pouco mais de conforto, um pouco mais de felicidade. É só o que desejais: melhor emprego, um carro melhor, melhor posição social. Não desejais realmente estar libertados, de todo, do sofrimento. Não desejais descobrir o que é o Amor, descobrir sua beleza, sua imensidade. Não desejais descobrir o que significa Criação.
Assim, o que realmente desejais é ser ajudados a continuar, com modificações, neste mundo desgraçado — com a mesma fealdade de vossas vidas, com a mesma brutalidade de vossa existência, com vosso cotidiano conflito. Como é só isso o que conheceis, lhe estais apegado e só desejais modificações. E, quando alguém vos ajuda a viver nesse campo, o considerais um grande homem, um santo, um maravilhoso salvador.
Por conseguinte, este orador declara que não vos está prestando ajuda. Se buscais ajuda por parte dele, estareis perdidos. Não há ajuda, de nenhuma espécie, da parte de ninguém; esta é uma terrível realidade que se precisa compreender. Deveis compreender esse fato medonho, assustador; ou seja, que como ente humano tendes de sustenta-vos sobre vossos próprios pés; não há Upanishads, nem Guita, nem líderes, nem nada que possa salvar-vos. Tendes de vos salvar por vós mesmo. Sabeis o que acontece quando percebeis esse fato? — pois trata-se de um fato. Quando percebeis a realidade desse fato, o que acontece é que, ou vos afundais mais ainda na corrupção, ou o fato vos comunica uma energia tremenda que vos possibilita estraçalhar a rede da "estrutura psicológica social", libertar-vos, despedaçando tudo. E, então, nunca procurareis ajuda, porque sereis um homem livre.
O homem livre, o homem que nada teme, que tem uma mente lúcida, cujo coração é vigoroso, forte, energético — nunca necessita de ajuda. E nós, vós e eu, temos de manter-nos de pé, completamente sós, sem ajuda de ninguém. Sempre buscastes ajuda, politicamente, religiosamente, dos gurus, socialmente e a todos os respeitos; mas sempre fostes traído. Tem havido revoluções — revoluções políticas e econômicas, comunismo, revoluções sociais. Elas não constituem a solução; nenhuma ajuda vos trazem, senão mais tirania, mais servidão.
Só quando se exige liberdade completa e se mantém essa liberdade, pode-se encontrar, pelas corretas vias de acesso, a realidade; e essa realidade é que libertará o homem. Mas, uma das coisas mais difíceis é percebermos que precisamos estar completamente sós, inteiramente entregues a nós mesmos.
Só o homem que é livre pode cooperar. E é o homem livre que também diz: "Não cooperarei!" — A cooperação, como geralmente se entende, significa cooperar em torno de uma pessoa, de uma ideia, de uma utopia, em torno da autoridade de uma pessoa, ou da autoridade de uma ideia, representada pelo Estado. Se se observa essa espécie de cooperação, vê-se que não é cooperação e, sim, benefício mútuo. E, quando muda a autoridade, vós também mudais, para continuardes a auferir vossos benefícios; trata-se pois de uma compulsiva forma de ajustamento.
Mas, estamos falando de uma cooperação totalmente diferente; pois o homem precisa cooperar. Não se pode viver sem cooperação. A vida são relações, e a vida é cooperação. Vós e eu não temos possibilidade de existir sem cooperação. Mas, a cooperação requer liberdade. Vós deveis ser livre e eu devo ser livre, para cooperarmos. Liberdade não significa fazer cada um o que entende: ser cruel, e tudo o quanto implica a estúpida reação associada à palavra "liberdade". Só o homem que é livre para amar, que não tem ciúme, nem ódio, que nada deseja para si próprio, para sua família, para sua raça, para seu grupo — só o homem que é livre e conhece o pleno significado do amor e da beleza, é capaz de cooperar.
Krishnamurti — O Despertar da Sensibilidade