Liberdade significa esvaziar a mente do conhecido. Não sei se já alguma vez tentaste, vós mesmo. O relevante é libertarmos a mente do conhecido, ou melhor, que a mente se liberte do conhecido. Isso não significa que a mente deva libertar-se do conhecido "factual", pois em certo grau necessitamos desse conhecimento. É claro que não deveis libertar-vos do conhecimento do lugar onde morais, etc. Mas a mente pode libertar-se do seu fundo de tradição, de experiências acumuladas, e dos vários impulsos conscientes e inconscientes que representam reações daquele fundo; e ficar completamente livre desse fundo significa rejeitar, colocar de lado, morrer para o conhecido. Se assim fizerdes, descobrireis por vós mesmo quanto é realmente significativa a liberdade.
Falo a respeito de uma liberdade interior, total, em que não há dependência psicológica, nem apego de espécie alguma. Enquanto há apego, não há liberdade, porque o apego implica sentimento de íntima solidão, vazio interior, o qual exige um estado de relação exterior em que amparar-se. A mente livre não é apegada, embora possa ter relações. Mas não pode nascer a liberdade, se não há aquele "estado de aprender" que traz consigo uma profunda disciplina interior, não baseada em ideias nem em nenhum padrão "conceitual". Quando a mente está a libertar-se constantemente, pelo morrer para o conhecido momento por momento, daí provem uma disciplina espontânea, uma austeridade nascida da compreensão. A verdadeira austeridade é uma coisa maravilhosa; não é a disciplina seca, e sem nenhum valor, da renúncia destrutiva, que em geral imaginamos.
(...) Talvez já tenhais conhecido a experiência de vos sentirdes subitamente isolado de todas as coisas, de não estardes em relação com coisa alguma. Podeis achar-vos no meio de uma multidão, ou no círculo da família, ou numa reunião social, ou podeis estar passando a sós pela margem de um rio, e subitamente vos vem um sentimento de completo isolamento. Esse sentimento de isolamento é essencialmente um "estado de medo", e ele sempre existe emboscado no segundo plano da mente. Desse modo procuramos fugir constantemente, fazendo coisas de todo gênero: lendo um livro, ouvindo o rádio, vendo televisão, bebendo, procurando mulheres, voltando-nos à busca de Deus, etc. Ele é isolamento, e de nosso medo ao isolamento é que decorrem todas as nossas ações e reações. "Isolamento" é coisa completamente diferente de "solidão".
A mente que se vê isolada, e com medo, está à mercê de inumeráveis influências; como um pedaço de barro, ela é maleável, pode ser modelada, ser forçada a ajustar-se a um molde. Mas, solidão é a completa libertação mental de todas as influências: influência de esposa, do marido, da tradição, da igreja, do Estado. Ela significa estar libertado da influência do que ledes, e da influência de vossas próprias exigências inconscientes. Por outras palavras, solidão é o estado em que se está completamente livre do "conhecido". É o "estado de aprender" que vem quando a mente compreende o processo total da vida; e com ela vem uma disciplina que não é a disciplina da igreja, ou do exército, ou do especialista, ou do atleta, ou do homem que cultiva o saber. É a disciplina nascida de um profundo senso de humildade; e não pode haver humildade, se a mente não está completamente só.
(...) Na maioria, buscamos Deus, e nosso Deus é uma mera questão de crença. A palavra God (Deus) escrita às avessas é dog (cachorro), e esta última serve tão bem como a primeira para designar aquilo que chamamos Deus. Mas, fomos educados, desde a meninice, para aceitar aquela palavra; e a religião organizada, com sua milenar propaganda, condiciona a mente para crer naquilo que supõe que a palavra representa. A aceitamos tal crença com tanta facilidade, exatamente como no mundo comunista aceitam a crença de que não há Deus, porque nessa crença foram eles educados. Esse é outro gênero de propaganda. O crente e o não crente são iguais, porquanto ambos são escravos da propaganda.
Ora, para descobrirdes se há ou não há Deus, deveis destruir, em vós mesmos, tudo o que seja produto da propaganda. O que hoje chamamos "religião" foi organizado, formado durante séculos pelo homem, com seu medo, sua avidez, sua ambição, sua esperança e desespero. E para descobrir se há ou não há Deus, a mente deve destruir totalmente, sem nenhum motivo, todas as acumulações do passado; deve eliminar radicalmente todas as crenças e descrenças e desistir completamente de buscar. Deve a mente estar vazia do "conhecido", vazia do Salvador, vazia de todos os deuses manufaturados pelo pensamento e esculpidos na madeira ou na pedra. Só quando livre do conhecido, pode a mente encontrar-se num estado de absoluta tranquilidade, não provocada por uma certa maneira de respirar, por exercícios, artifícios, drogas. E precisamos chegar até esse ponto — que na realidade não está longe, pois não há distância nenhuma para percorrer. Mas, para se poder abolir a distância, o tempo deve cessar; e só pode cessar o tempo, quando há o conhecimento de nós mesmos, como realmente somos, fato por fato. Nesta extraordinária liberdade, que começa com o autoconhecimento, há um movimento — um movimento que é imensurável, além de todos os conceitos. Esse movimento é criação; e quando a mente chegar a esse movimento, descobrirá, por si própria, que o amor, a morte a criação são a mesma coisa.
(...) Quando um homem está a morrer de fome, que bem lhe faz descrevermos para ele um prato suculento ou uma iguaria de delicado sabor? O que ele quer é comida. Teorias e descrições nenhuma significação tem para o homem que tem fome de descobrir por si mesmo o que é verdadeiro. Mas, infelizmente, a maioria de nós não tem fome desse sentido. Estamos bem nutridos, psicologicamente, porque estamos repletos de nossas próprias experiências, e encontramos abrigo seguro no dogma, na crença. Sentimo-nos em segurança, porque pertencemos a este ou àquele grupo, a esta ou àquela Igreja. E quando nos vem um sentimento de descontentamento — o que muito raramente acontece — logo tratamos de sufocá-lo, procurando alguma coisa que nos dê satisfação imediata. O que tem verdadeira importância é estarmos, no plano psicológico, terrivelmente famintos, e permanecermos nesse estado, sem nos tornarmos insanos ou neuróticos. A questão não é de como aplacar aquela fome, porque no momento em que o fazeis estais perdido. Podeis aplacá-la muito facilmente, com palavras, com teorias, com livros, com Igrejas, com... Oh!... com qualquer coisa. Mas, se permaneceis nesse estado de profunda "fome psicológica", ela é então como uma chama viva que destruirá todas as coisas falsas até nada mais restar senão cinzas; e como resultado desse vazio, algo real pode verificar-se.
Krishnamurti — O homem e seus desejos em conflitos - ICK