terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O Começo do Pensamento


O Começo do Pensamento.

Passemos agora a examinar a questão do pensar — o que é pensar — a significação desse pensamento que deve ser exercido com cuidado, lógica e equilíbrio (em nossas atividades diárias), e a significação do pensamento que nenhuma importância tem. A menos que conheçamos essas duas qualidades (de pensamento) não teremos possibilidade de compreender uma coisa muito mais profunda, que o pensamento não pode atingir. Tratemos, pois, de compreender toda a complexa estrutura que constitui o pensar, a memória — como o pensamento nasce, como o pensamento condiciona as nossas ações; e, compreendendo tudo isso, encontraremos talvez uma coisa que o pensamento jamais descobriu, uma coisa cuja porta o pensamento é incapaz de abrir.

Por que se tornou o pensamento tão importante em nossa vida? — o pensamento, que é idéias, reação às memórias acumuladas nas células cerebrais? Talvez muitos de vós nem mesmo fizeram a si próprios uma pergunta dessas, ou, se a fizeram, devem ter dito: "Isso é de mínima importância, o importante é a emoção". Mas, não vejo como separar as duas coisas. Se o pensamento não dá continuidade ao sentimento, o sentimento morre muito depressa. Assim, por que é que o pensamento assumiu, em nossa vida diária, nesta vida tormentosa, tediosa, assustada — tão desmedida importância? Perguntai a vós mesmo, como estou perguntando a mim mesmo: Porque somos escravos do pensamento — desse pensamento sagaz e engenhoso, capaz de organização, de iniciativas; que tantas coisas inventa, que tantas guerras engendrou e tanto medo criou, tanta ansiedade; que está perenemente a criar imagens e a "correr atrás da própria cauda"; do pensamento que fruiu o prazer de ontem e a esse prazer deu continuidade no presente e também no futuro; desse pensamento que está sempre ativo, a tagarelar, a mover-se, a construir, a subtrair, a adicionar, a supor?"

As idéias se tornaram para nós muito mais importantes do que a ação — idéias tão habilmente expostas em livros pelos intelectuais, em todas as esferas de atividade. Quanto mais sagazes e sutis essas idéias, tanto mais as veneramos e aos livros que as contêm. Nós somos esses livros, somos essas idéias, tão fortemente condicionados estamos por elas. Estamos perpetuamente a discutir idéias e ideais e, dialeticamente, a apresentar opiniões. Toda religião tem seu dogma, sua fórmula, seu próprio andaime para alcançar os deuses, e, como estamos investigando as origens do pensamento, estamos contestando a validade de todo esse edifício de idéias. Separamos as idéias da ação porque as idéias são sempre do passado, e a ação é sempre o presente — isto é, o viver é sempre o presente. Temos medo do viver e, por conseguinte, o passado, as idéias, se nos tornaram tão importantes.

E realmente muito interessante observar as operações de nosso próprio pensar, observar, simplesmente, como pensamos, a fonte de onde brota essa reação que chamamos pensar. Essa fonte é, obviamente, a memória. Existe de fato um começo do pensamento? Se existe, podemos achá-lo? — isto é, o começo da memória, porque, se não tivéssemos memória, não teríamos pensamento.

Já vimos como o pensamento sustenta e dá continuidade a um prazer que ontem fruímos, e como o pensamento também sustenta o contrário do prazer, o medo e a dor; de modo que o experimentador, que é o pensador, ê o prazer e a dor, e também a entidade que lhes dá nutrimento. O pensador separa o prazer da dor. Não percebe que na própria exigência de prazer está atraindo a dor e o medo. O pensamento, nas relações humanas, está sempre a exigir prazer, exigência que ele disfarça com palavras tais como lealdade, auxílio, dádiva, amparo, serviço. Pergunto-me: Por que queremos servir aos outros? O posto de gasolina oferece bons serviços. Que significam estas palavras: auxílio, dádiva, serviço? Que finalidade tem isso? Uma flor, cheia de beleza, de luz, de encantamento, essa flor diz: "Eu estou dando, ajudando, servindo"? Ela é, e porque não está procurando fazer coisa alguma, ela abarca toda a Terra.
O pensamento é tão sutil, tão hábil, que deforma todas as coisas para sua própria conveniência. O pensamento, com sua exigência de prazer, traz sua própria servidão. O pensamento é o criador da dualidade, em todas as nossas relações: há, em nós, violência, a qual nos proporciona prazer, mas há também o desejo de paz, o desejo de ser bondoso, delicado. Isso é o que se passa a todas as horas, em nossa vida. O pensamento não só cria em nós essa dualidade, essa contradição, mas também acumula nossas inumeráveis memórias de prazer e de dor e dessas memórias renasce. Assim, o pensamento é o passado; o pensamento, como já disse, é sempre velho.

Como todo desafio é enfrentado em termos do passado — desafio que é sempre novo — nossa maneira de enfrentá-lo será sempre totalmente inadequada, e daí decorre a contradição, o conflito, a aflição e o sofrimento a que estamos sujeitos. Nosso insignificante cérebro está em conflito, não importa o que faça. Não importa se aspira, se imita, se  sujeita, se reprime, se sublima, se toma drogas para expandir-se — o que quer que faça — ele se acha num estado de conflito e produzirá sempre conflito.

Os que pensam muito são autênticos materialistas, porque o pensamento é matéria. O pensamento é matéria, tanto quanto o soalho, a parede, o telefone, são matéria. A energia que funciona num padrão se torna matéria. Há energia e há matéria, É só isso que a vida é. Podeis pensar que o pensamento não é matéria; mas é. O pensamento, como ideologia, é matéria. Onde há energia, esta se converte em matéria. Matéria e energia estão relacionadas entre si. Uma não pode existir sem a outra. E quanto mais harmonia há entre ambas, tanto mais equilíbrio existe e tanto mais ativas estão as células cerebrais. O pensamento estabeleceu o padrão de prazer, de dor, de medo e dentro dele vem funcionando há milhares de anos, e não pode quebrá-lo, porque foi ele quem o criou.

Um fato novo não pode ser percebido pelo pensamento. Posteriormente, pode ser compreendido pelo pensamento, verbalmente, porém, a compreensão de um novo fato não é uma realidade para o pensamento. O pensamento jamais resolverá um problema psicológico. Por mais engenhoso, por mais sutil e erudito que seja, e qualquer que seja a estrutura que o pensamento cria, por meio da ciência, de um cérebro eletrônico, da compulsão ou da necessidade, o pensamento nunca é novo e, por conseguinte, jamais poderá resolver uma questão sumamente importante. O velho cérebro não pode resolver o enorme problema do viver.

O pensamento é tortuoso, porque pode inventar tudo e ver coisas que não existem. É capaz dos mais extraordinários truques e, portanto, não merece confiança. Mas, se puderdes compreender toda a sua estrutura, porque pensais, as palavras que empregais, o vosso comportamento na vida diária, vossa maneira de falar com as pessoas e de tratá-las, vossa maneira de andar, de comer — se perceberdes todas essas coisas, então a vossa mente não vos enganará, então não haverá nada para enganar-nos. A mente não é então uma entidade que exige, que julga; torna-se sumamente quieta, flexível, sensível, só, e nesse estado não há engano de espécie alguma.

Já notastes que, ao vos achardes num estado de completa atenção, o observador, o pensador, o centro, o "eu" deixa de existir? Nesse estado de atenção, o pensamento começa a definhar.

Se uma pessoa deseja ver uma coisa muito claramente, deve ter a sua mente muito quieta, sem seus preconceitos, suas tagarelices, seus diálogos, suas imagens, seus quadros — tudo isso tem de ser posto à margem, para olhar. É só no silêncio que se pode observar o começo do pensamento, e não quando estamos a buscar, a fazer perguntas e esperar respostas. Portanto, só quando há completa quietude em nosso ser, e fazemos a pergunta: "Qual a origem do pensamento?", começamos a ver, em virtude desse silêncio, como se forma o pensamento.

Se há o percebimento de como se inicia o pensamento, já não há necessidade de controlá-lo. Despendemos uma grande soma de tempo e desperdiçamos uma grande quantidade de energia, através de toda a vida, e não apenas na escola, controlando os nossos pensamentos — "Este é um pensamento bom, devo pensá-lo muitas vezes", "Este é um pensamento mau, devo reprimi-lo." Trava-se uma perene batalha entre um pensamento e outro, entre um desejo e outro (um prazer dominando todos os outros prazeres), mas se há o percebimento da origem do pensamento, nele já não existe nenhuma contradição.

Agora, quando ouvis uma asserção, tal como: "O pensamento é sempre velho" ou "O tempo é sofrimento", o pensamento começa a traduzi-la, a interpretá-la. Porém a tradução e a interpretação baseiam-se no conhecimento, na experiência de ontem, de modo que, invariavelmente, a traduzireis de acordo com o vosso condicionamento. Mas, se olhais essas asserções e não as interpretais de modo nenhum, dispensando-lhes, tão só, vossa atenção completa {não concentração), descobris que não há observador nem coisa observada, que não há pensador nem pensamento. Não digais "Qual o que começou primeiro?". Essa é uma pergunta hábil, mas não conduz a parte alguma. Podeis observar em vós mesmo que, quando não há pensamento — e isso não significa um estado de amnésia, de vacuidade — quando não há pensamento derivado da memória, da experiência ou do conhecimento, pois tudo isso é do passado, não há pensador nenhum. Isso não é matéria filosófica ou mística. Estamos tratando de fatos reais e, se me acompanhastes até aqui, passareis a responder a cada desafio, não com o velho cérebro, porém de maneira totalmente nova.

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