Vivemos, quase todos nós, vidas muito superficiais; somos solitários; e procuramos enriquecer nossa mente empobrecida, enchendo-a de conhecimentos, informações, fatos. Mas, não é capaz de profunda investigação a mente que está repleta de saber ou ligada a qualquer crença dogmática. O relevante é perguntarmos a nós mesmos se a mente é capaz de autoconhecimento. Isto é, sou capaz de conhecer a mim mesmo, de penetrar o movimento total de minha mente — não com morbidez, com desespero, com a ideia de que é feio ou belo o que nela se passa, mas simplesmente observando? Parece-me de suma importância essa capacidade de atenta vigilância de nossa própria mente, porque é unicamente pelo autoconhecimento que se podem compreender as coisas que estão entravando o livre funcionar da mente.
O autoconhecimento é um processo extraordinário, porquanto o "eu" nunca é o mesmo a cada momento; há uma infinidade de desejos contraditórios, compulsões, impulsos. E se em sua totalidade não compreendermos isso, como poderá ser livre a mente? Só a mente livre pode realmente experimentar algo existente além de suas próprias limitações, além das crenças e dogmas causadores de condicionamento.
Estas conferências, parece-me, serão muito úteis se formos capazes de escutar realmente o que se diz. Em geral nunca escutamos verdadeiramente uns aos outros; e, quando escutamos o que outro diz, é sempre para interpretá-lo. Esse interpretar não é escutar. Mas, se formos capazes de escutar, não com concentração forçada, porém dando-se livre atenção ao que se diz, então o significado profundo das palavras penetrarão a mente; e considero esse escutar de importância muito mais vital do que o mero lutar para compreender através da cortina de nossos preconceitos. Isto é, se tiverdes capacidade de escutar o que se está dizendo, sem resistirdes, sem opordes, intelectualmente, argumentos racionais, sem rejeitardes nem aceitardes, penso que, então, o próprio ato de escutar é purificador da mente. É como a semente lançada à terra; se a semente tiver vitalidade, por si própria medrará.
Mas, infelizmente, vivemos em geral tão interessados em nossas próprias ideias e crenças e preconceitos, que a atenção se torna impossível. A atenção é o "bem total"; mas não sabemos prestar atenção. Tampouco, nunca observamos realmente qualquer coisa que seja. Não sei se alguma vez já fizestes a experiência de observar uma coisa, realmente; quer dizer, sem lhe dardes nome, sem lhe pordes um rótulo, sem a interpretardes. Vê-se, então, muito mais, percebe-se com mais intensidade a nitidez da cor, a beleza ou fealdade da forma, etc. E, se conseguirdes escutar com essa qualidade de atenção, vossa mente será então o solo em que poderá medrar algo totalmente novo. Verificareis, então, à conclusão destas nossas palestras que, propriamente, nada vos ensinei. Porque, que é que estamos tentando nestas palestras? Não estais tentando compreender a mim; estais procurando compreender a vós mesmos. E para compreenderdes a vós mesmo, tendes de observar-vos no interior. Mas, a mente dominada pela autoridade nunca se observa interiormente; a mente desejosa de alcançar um fim, um objetivo, não pode de modo nenhum compreender-se a si própria.
Parece-me, pois, de primordial importância o compreendermos a nós mesmos. O autoconhecimento é o começo da sabedoria. Mas, é tão pouco o que sabemos a nosso respeito; desconhecemos tanto as partes inconscientes como as partes conscientes de nós mesmos, a totalidade de nosso ser. E é possível conhecermo-nos totalmente? Por certo, se uma pessoa é incapaz de compreender a si mesma, à totalidade de seu ser, toda sua busca será sem significado. A busca se torna então uma contradição, um desejo contra outro desejo. Agora, se pudermos compreender-nos, se pudermos observar paciente e diligentemente o funcionamento de todo o nosso ser, veremos, então, que a mente se tornará muito clara, livre. Só essa mente é capaz de investigar, de descobrir o eterno — e então, talvez, já não haja busca nenhuma, porque a mente se tornou ela própria o eterno.
É dificílimo, à maioria de nós, nos conhecermos, porquanto estamos sempre medindo os nossos pensamentos, as nossas ações, os nossos sentimentos. Pensamos que com essa medição chegaremos a conhecer-nos; mas, sem dúvida, a mente que está sempre julgando, avaliando, nunca se conhecerá tal qual é, porquanto tem uma medida, um padrão de avaliação. Esta me parece uma das nossas maiores dificuldades: o não podermos observar nossos sentimentos, nossos pensamento, sem avaliação — sem aprovar ou condenar. Para a maioria de nós, o julgar, o comparar, aprovar, condenar, constitui a própria essência de nossa existência. Eis porque somos incapazes de penetrar as últimas profundezas de nossos pensamentos e sentimentos, conscientes e inconscientes.
Se, por exemplo, desejamos compreender uma criança, nenhum valor tem, certamente, compará-la com seu irmão. Para compreendê-la, temos de observá-la sem comparação; observá-la a horas diferentes, em suas variadas disposições. Mas, somos criados e educados para comparar, para julgar, para condenar; e pensamos que pela comparação, pela condenação, pelo julgamento, compreenderemos. Pelo contrário, enquanto compararmos, julgarmos, condenarmos, jamais compreenderemos coisa alguma.
Do mesmo modo, se desejamos compreender a totalidade de nosso ser, por mais feio ou belo que seja, por transitório ou permanente que seja, devemos ser capazes de observar-nos no espelho das relações, sem avaliação, sem comparação; e veremos então começar a revelar-se a totalidade da consciência.
Afinal de contas, embora percebamos alguma coisa do funcionamento da mente consciente, em geral muito pouco sabemos, a respeito de nós mesmos, nas camadas mais profundas da consciência. Nunca observamos essa parte de nós mesmos, nunca sequer tentamos investigá-la; ou, se a investigamos, isso só acontece ao nos vermos atribulados por alguma neurose, quando então, corremos para alguém a solicitar ajuda. Isto não é conhecimento próprio. Conhecer a nós mesmos implica auto-observação a cada momento, do dia, em nossas relações, em nosso falar, em nossas ações, em nossos gestos; implica um auto-percebimento completo — sendo assim que começamos a descobrir o que somos. E descobrimos, então, que somos realmente muito pouca coisa. Somos só aquilo que fomos condicionados para ser. Cremos ou não cremos; repetimos o que nos ensinaram. Aceitamos, porque temos medo, e é no nosso medo que prosperam as religiões. Eis porque é tão importante conhecermos a nós próprio, não teoricamente ou de acordo com o ponto-de-vista psicológico, mas conhecermos por nós mesmos o que intrinsecamente somos. E isso não me parece tão difícil, se aplicarmos toda a nossa atenção a descobrirmos o que somos em cada momento de nossa vida de relação.
Vereis então que a religião é coisa completamente diferente de tudo o que já conheceis. A religião nada tem que ver com essas organizações absurdas que controlam a mente por meio desta ou daquela crença; nada tem que ver, absolutamente, com nenhuma dessas chamadas sociedades religiosas. Ao contrário, um homem verdadeiramente religioso não pertence a nenhuma dessas sociedades, a nenhuma organização religiosa; mas, para se ser verdadeiramente religioso, requer-se uma imensa compreensão dos movimentos do "eu", do próprio estado integral. Não há diferença essencial entre o homem que crê em Deus e se considera religioso, e aquele que nada crê e se considera irreligioso. Cada um deles está condicionado pela sociedade em que vive, e para se ser livre desse condicionamento requer-se intensificação do descontentamento. Só quando a mente está descontente, revoltada, quando não está meramente a aceitar ou a procurar um conforto de nova espécie — é só então que nasce o homem verdadeiramente religioso.
Esse homem verdadeiramente religioso é o autêntico revolucionário, porque só ele pode alterar, em nível completamente diferente, a atitude da sociedade. Mas, para isso se requer uma extraordinária compreensão de si mesmo. O autoconhecimento é de primordial importância, é absolutamente essencial para todo aquele que busca a verdade; porque se não conheço a mim mesmo, como posso buscar a verdade? Meu instrumento de busca, que é minha própria mente, pode estar pervertido, deturpado, e só pelo autoconhecimento pode a mente ser posta na direção correta. A mente clara, direta, só ela pode investigar o verdadeiro, e não a mente confusa. A mente confusa só encontrará o que também é confuso.
Mas, uma mente confusa não pode tornar-se não confusa, recorrendo a outro, buscando a autoridade de um livro, de um sacerdote, de um analista, de quem quer que seja. Só se acaba a confusão quando a mente começa a compreender a si própria. E dessa compreensão resulta a lucidez e tranquilidade mental. Só a mente que se acha totalmente tranquila, é capaz de perceber o atemporal.
Krishnamurti — Verdade Libertadora