terça-feira, 21 de maio de 2013

A liberdade está na intensificação do descontenta­mento

Vivemos, quase todos nós, vidas muito superficiais; somos solitários; e procuramos enriquecer nossa mente empobrecida, enchendo-a de conhecimentos, informações, fatos. Mas, não é capaz de profunda investigação a mente que está repleta de saber ou ligada a qualquer crença dogmática. O relevante é perguntarmos a nós mesmos se a mente é capaz de autoconhecimento. Isto é, sou capaz de conhecer a mim mesmo, de penetrar o movimento to­tal de minha mente — não com morbidez, com desespe­ro, com a ideia de que é feio ou belo o que nela se passa, mas simplesmente observando? Parece-me de suma importância essa capacidade de atenta vigilância de nos­sa própria mente, porque é unicamente pelo autoconheci­mento que se podem compreender as coisas que estão entra­vando o livre funcionar da mente.

O autoconhecimento é um processo extraordinário, porquanto o "eu" nunca é o mesmo a cada momento; há uma infinidade de desejos contraditórios, compulsões, impulsos. E se em sua totalidade não compreendermos isso, como poderá ser livre a mente? Só a mente livre pode realmente experimentar algo existente além de suas próprias limitações, além das crenças e dogmas causadores de condicionamento.

Estas conferências, parece-me, serão muito úteis se formos capazes de escutar realmente o que se diz. Em geral nunca escutamos verdadeiramente uns aos outros; e, quando escutamos o que outro diz, é sempre para in­terpretá-lo. Esse interpretar não é escutar. Mas, se for­mos capazes de escutar, não com concentração forçada, porém dando-se livre atenção ao que se diz, então o sig­nificado profundo das palavras penetrarão a mente; e considero esse escutar de importância muito mais vital do que o mero lutar para compreender através da cortina de nossos preconceitos. Isto é, se tiverdes capacidade de escutar o que se está dizendo, sem resistirdes, sem opordes, intelectualmente, argumentos racionais, sem rejeitardes nem aceitardes, penso que, então, o próprio ato de escutar é purificador da mente. É como a semente lan­çada à terra; se a semente tiver vitalidade, por si própria medrará.

Mas, infelizmente, vivemos em geral tão interessados em nossas próprias ideias e crenças e preconceitos, que a atenção se torna impossível. A atenção é o "bem total"; mas não sabemos prestar atenção. Tampouco, nunca ob­servamos realmente qualquer coisa que seja. Não sei se alguma vez já fizestes a experiência de observar uma coi­sa, realmente; quer dizer, sem lhe dardes nome, sem lhe pordes um rótulo, sem a interpretardes. Vê-se, então, muito mais, percebe-se com mais intensidade a nitidez da cor, a beleza ou fealdade da forma, etc. E, se conseguirdes escutar com essa qualidade de atenção, vossa mente será então o solo em que poderá medrar algo totalmente novo. Verificareis, então, à conclusão destas nossas pa­lestras que, propriamente, nada vos ensinei. Porque, que é que estamos tentando nestas palestras? Não estais ten­tando compreender a mim; estais procurando compreen­der a vós mesmos. E para compreenderdes a vós mesmo, tendes de observar-vos no interior. Mas, a mente dominada pela autoridade nunca se observa interiormente; a mente desejosa de alcançar um fim, um objetivo, não pode de modo nenhum compreender-se a si própria.

Parece-me, pois, de primordial importância o compre­endermos a nós mesmos. O autoconhecimento é o começo da sabedoria. Mas, é tão pouco o que sabemos a nosso respeito; desconhecemos tanto as partes inconscientes co­mo as partes conscientes de nós mesmos, a totalidade de nosso ser. E é possível conhecermo-nos totalmente? Por certo, se uma pessoa é incapaz de compreender a si mes­ma, à totalidade de seu ser, toda sua busca será sem sig­nificado. A busca se torna então uma contradição, um de­sejo contra outro desejo. Agora, se pudermos compreender-nos, se pudermos observar paciente e diligentemente o funcionamento de todo o nosso ser, veremos, então, que a mente se tornará muito clara, livre. Só essa mente é capaz de investigar, de descobrir o eterno — e então, tal­vez, já não haja busca nenhuma, porque a mente se tor­nou ela própria o eterno.

É dificílimo, à maioria de nós, nos conhecermos, por­quanto estamos sempre medindo os nossos pensamentos, as nossas ações, os nossos sentimentos. Pensamos que com essa medição chegaremos a conhecer-nos; mas, sem dúvida, a mente que está sempre julgando, avaliando, nunca se conhecerá tal qual é, porquanto tem uma medi­da, um padrão de avaliação. Esta me parece uma das nossas maiores dificuldades: o não podermos observar nossos sentimentos, nossos pensamento, sem avaliação — sem aprovar ou condenar. Para a maioria de nós, o jul­gar, o comparar, aprovar, condenar, constitui a própria essência de nossa existência. Eis porque somos incapazes de penetrar as últimas profundezas de nossos pensamen­tos e sentimentos, conscientes e inconscientes.

Se, por exemplo, desejamos compreender uma criança, nenhum valor tem, certamente, compará-la com seu irmão. Para compreendê-la, temos de observá-la sem com­paração; observá-la a horas diferentes, em suas variadas disposições. Mas, somos criados e educados para compa­rar, para julgar, para condenar; e pensamos que pela comparação, pela condenação, pelo julgamento, compreendere­mos. Pelo contrário, enquanto compararmos, julgarmos, condenarmos, jamais compreenderemos coisa alguma.

Do mesmo modo, se desejamos compreender a tota­lidade de nosso ser, por mais feio ou belo que seja, por transitório ou permanente que seja, devemos ser capazes de observar-nos no espelho das relações, sem avaliação, sem comparação; e veremos então começar a revelar-se a totalidade da consciência.

Afinal de contas, embora percebamos alguma coisa do funcionamento da mente consciente, em geral muito pouco sabemos, a respeito de nós mesmos, nas camadas mais profundas da consciência. Nunca observamos essa parte de nós mesmos, nunca sequer tentamos investigá-la; ou, se a investigamos, isso só acontece ao nos vermos atribulados por alguma neurose, quando então, corremos para alguém a solicitar ajuda. Isto não é conhecimento próprio. Conhecer a nós mesmos implica auto-observação a cada momento, do dia, em nossas relações, em nosso fa­lar, em nossas ações, em nossos gestos; implica um auto-percebimento completo — sendo assim que começamos a descobrir o que somos. E descobrimos, então, que somos realmente muito pouca coisa. Somos só aquilo que fomos condicionados para ser. Cremos ou não cremos; repeti­mos o que nos ensinaram. Aceitamos, porque temos medo, e é no nosso medo que prosperam as religiões. Eis porque é tão importante conhecermos a nós próprio, não teoricamente ou de acordo com o ponto-de-vista psicoló­gico, mas conhecermos por nós mesmos o que intrinsecamente somos. E isso não me parece tão difícil, se aplicar­mos toda a nossa atenção a descobrirmos o que somos em cada momento de nossa vida de relação.

Vereis então que a religião é coisa completamente diferente de tudo o que já conheceis. A religião nada tem que ver com essas organizações absurdas que controlam a mente por meio desta ou daquela crença; nada tem que ver, absolutamente, com nenhuma dessas chamadas socie­dades religiosas. Ao contrário, um homem verdadeiramente religioso não pertence a nenhuma dessas socieda­des, a nenhuma organização religiosa; mas, para se ser verdadeiramente religioso, requer-se uma imensa com­preensão dos movimentos do "eu", do próprio estado in­tegral. Não há diferença essencial entre o homem que crê em Deus e se considera religioso, e aquele que nada crê e se considera irreligioso. Cada um deles está condicio­nado pela sociedade em que vive, e para se ser livre desse condicionamento requer-se intensificação do descontenta­mento. Só quando a mente está descontente, revoltada, quando não está meramente a aceitar ou a procurar um conforto de nova espécie — é só então que nasce o homem verdadeiramente religioso.

Esse homem verdadeiramente religioso é o autêntico revolucionário, porque só ele pode alterar, em nível com­pletamente diferente, a atitude da sociedade. Mas, para isso se requer uma extraordinária compreensão de si mes­mo. O autoconhecimento é de primordial importância, é absolutamente essencial para todo aquele que busca a verdade; porque se não conheço a mim mesmo, como pos­so buscar a verdade? Meu instrumento de busca, que é mi­nha própria mente, pode estar pervertido, deturpado, e só pelo autoconhecimento pode a mente ser posta na dire­ção correta. A mente clara, direta, só ela pode investigar o verdadeiro, e não a mente confusa. A mente confusa só encontrará o que também é confuso.

Mas, uma mente confusa não pode tornar-se não confusa, recorrendo a outro, buscando a autoridade de um livro, de um sacerdote, de um analista, de quem quer que seja. Só se acaba a confusão quando a mente começa a compreender a si própria. E dessa compreensão resulta a lucidez e tranquilidade mental. Só a mente que se acha totalmente tranquila, é capaz de perceber o atemporal.

Krishnamurti — Verdade Libertadora


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