O medo existirá de diferentes formas, grosseira ou sutil, enquanto existir o processo auto-ativo da ignorância gerado pelas atividades do desejo. É possível eliminar completamente o medo; ele não é parte fundamental da vida. Se existir medo, não pode haver a inteligência, e para despertar a inteligência é preciso compreender-se plenamente o processo do “eu” na ação. O medo não pode ser transmutado em amor. Ele há de ser sempre medo, embora tentemos afastá-lo pelo raciocínio, e embora procuremos disfarça-lo, chamando-o de amor.
Nem tão pouco pode o medo ser compreendido como parte fundamental da vida, para que nos resignemos a suportá-lo. Vocês não descobrirão a causa profunda do medo, pela simples análise de cada um de seus aspectos, à medida que se apresentam.
Existe somente uma causa fundamental de medo, embora se manifeste por formas diferentes.
Pela simples dissecação das várias formas do medo não pode o pensamento libertar-se da causa raiz dele. Quando a mente não aceita nem rejeita o medo, quando não lhe foge nem procura transmuta-lo, só então é possível seu cessar.
Quando a mente não está presa no conflito dos opostos, ela é capaz de discernir, sem escolha, o processo do “eu” em sua íntegra.
Enquanto esse processo continuar, tem de haver medo, e a tentativa para fugir dele apenas aumenta e fortifica o processo. Se quiserem se libertar do medo, devem compreender plenamente a ação nascida do desejo.
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Se sentirem integralmente todo este processo como ignorância, então saberão o meio de ficar livre do desejo, do medo.
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Quando compreenderem o pleno significado da ação nascida do desejo, esta própria compreensão, espontaneamente, dissipará o desejo, o medo, que está procurando satisfação.
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Se o interesse for apenas o resultado do desejo, do lucro, do estar satisfeito, de obter sucesso, então, o interesse é a mesma coisa que o desejo e, portanto, destruidor da vida criadora.
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O desejo de satisfação cria o medo e o hábito. O desejo e a emoção constituem dois processos diferentes e distintos; o desejo é inteiramente da mente, e a emoção é a expressão integral de todo o nosso ser. O desejo, o processo da mente, é sempre acompanhado pelo medo, e a emoção é isenta dele. O desejo deve produzir sempre o medo, e este a emoção jamais o contem porque ela é a essência de todo o nosso ser. A ação é um estado de destemor, que só pode ser experimentado quando cessa o desejo, com o seu medo e a sua vontade de satisfação. A emoção não pode dominar o medo; porque o medo, como o desejo, são da mente. As emoções são de caráter, qualidade e extensões completamente diferentes.
O que a maioria de nós estamos procurando fazer é dominar o medo, seja pelo desejo, ou pelo que chamamos “emoções” — que é realmente outra forma de desejo. Vocês não podem dominar o medo pelo amor. Dominar o medo, por meio de outra força que chamamos amor, não é possível, porque o desejo de dominar o medo nasce do próprio desejo, da própria mente, e não do amor. Isto é, o medo é resultado do desejo, da satisfação, e o desejo de dominar o medo é da natureza da própria satisfação. Não é possível dominar o medo pelo amor, como a maioria das pessoas verifica por si mesma. A mente, que é do desejo, não pode dissipar parte de si mesma. É isto o que vocês tentam fazer quando falam de “se desembaraçarem” do medo. Quando perguntam: “Como posso desembaraçar-me do medo, que posso fazer com as várias formas de medo?”, estão meramente querendo saber como dominar um grupo de desejos por outro — o que somente perpetua o medo. Todo desejo cria medo. O desejo produz o medo e tentando dominar o medo um desejo por outro, estão apenas cedendo ao medo. O desejo somente pode recondicionar-se a si mesmo, remodelar-se segundo um novo padrão, mas permanecerá ainda desejo, dando nascimento ao medo.
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A mente é um campo de batalha dos seus próprios desejos, temores, valores, e qualquer esforço que ela faça para destruir o medo — isto é, para destruir a si mesma — é inteiramente inútil. A parte que deseja desvencilhar-se do medo está sempre procurando satisfação; e aquela de que ela anseia livrar-se é o motivo de satisfação no passado. Desse modo, a satisfação procura livrar-se daquilo que já satisfez; o medo tenta vencer o que foi o instrumento do medo. O desejo, criando medo na busca de satisfação, tenta vencer este medo, mas o próprio desejo é a causa do medo. O mero desejo não pode destruir-se, nem o medo dominar-se, e todo o esforço da mente, para livrar-se deles, nasce do próprio desejo. Desse modo, a mente fica presa no seu próprio círculo vicioso do esforço.
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O poder do desejo, da escolha, pode cessar, e isto só acontece, quando se compreende, quando se sente internamente o esforço cego do intelecto. A profunda percepção deste processo, sem ansiedade, sem julgamento, sem preconceito, e, portanto, sem desejo, é o começo do percebimento, o único que pode libertar a mente de seus temores, hábitos e ilusões.
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Para realizar a verdade, para perceber este infinito renovar da vida, vocês devem estar completamente livres, a mente de vocês deve achar-se completamente despojada de todos os desejos. Vocês dirão: “Como pode o homem viver num mundo isento de desejos?” Vocês têm visto a causa da tristeza e dito a si próprios — me libertarei dessa causa? Intelectualmente observam a causa e intelectualmente observam o quão difícil é dela se libertar. Dizem ainda: “O homem não pode viver sem desejos, tem de lutar por si mesmo nesta civilização; pois, de outro modo, será esmagado e destruído”. Vocês não têm feito a experiência, por isso não podem dizer o que acontecerá.
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Como podem discernir aquilo que é verdadeiro e duradouro, se a mente de vocês está sempre preocupada com um desejo futuro ou impedido em sua percepção pelo passado? Há uma completa ausência do verdadeiro valor da vida, uma avaliação falsa, enquanto a mente estiver encerrada na divisão criada pelo desejo.
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O desejo não compreendido no presente cria o tempo.
Krishnamurti - O medo - 1946 - ICK
Krishnamurti - O medo - 1946 - ICK