Pergunta: Parece-me que no
momento em que entra em cena o “eu”, apresenta-se um problema. Esse “eu”
coloca-se então a trabalhar para resolver o problema, e isso é absurdo. Não é o
próprio “eu” o único problema?
Krishnamurti: Sim, senhor,
evidentemente. Enquanto há um centro, há uma periferia, que é o tempo
psicológico. E a questão é: em face das caóticas exigências criadas pelo “eu” —
minha pátria, minha religião, minha família, meu seguro, minha hipoteca, meu isto
e meu aquilo — exigências em
que está enredado todo o ente humano, é possível viver neste mundo e eliminar o
“eu”, não teoricamente, porém realmente, assim como se extirpa um câncer? É
possível viver num dado país, exercer um emprego, ter esposa, marido, filhos,
ter uma casa, e ao mesmo tempo não ter nenhum centro? Percorrer alegremente a
vida toda e livre da dor — é possível isso?
(...) O hábito é, essencialmente,
um feixe de “memórias”, ou seja o “eu”.
Ora, é possível, vivendo neste
mundo, abandonar completamente esse feixe? Mais uma vez, peço-lhes que não digam
que é ou não é possível. Vocês têm que investigar, têm que estar cônscios dele,
têm que penetrá-lo — não movidos pelo desespero, nem pela esperança de acabar
com ele, mas simplesmente com o fim de descobri-lo. Eu digo que isso pode e deve
ser feito, pois, do contrário, nossa vida continua muito sórdida. Vocês podem
ser capazes de escrever poesias, podem ser um homem famoso, exercer um cargo importante,
possuir uma bela casa, uma esposa encantadora, filhos talentosos, etc. etc.;
mas, enquanto não estiverem libertados do “eu”, continuarão dentro da prisão
construída pelo homem, incapaz de irem além.
(...) Pergunta: Quando não há “eu”,
que é isso que olha e escuta?
Krishnamurti: Veja, isso já é uma
questão teórica. Quando morrem para tudo o que conhecem, quando para vocês já
não existe ontem nem amanhã, nem o presente no sentido de tempo psicológico,
que existe
então? Como posso responder-lhes? Verbalmente, posso dizer-lhes que existe algo
imenso, algo extraordinariamente vivo; mas isso nada lhes significará. A meu
ver, a questão real é esta: É possível eliminar o “eu”? Se a examinarem
profundamente, vocês mesmos responderão à pergunta.
Pergunta: Estou contaminado pela
sociedade. Como poderei livrar-me dessa contaminação?
Krishnamurti: Ora, a questão não
é de como se libertarem dessa contaminação, porque, assim, apenas criam outro
conflito, outro problema. O “eu” não está contaminado pela sociedade; ele
próprio é a contaminação. O “eu” é uma coisa que se formou pelo
conflito, pela inveja, pela ambição e o desejo de poder, pela agonia, o
sentimento de culpa, o desespero. E é possível o “eu” dissolver-se sem
conflito?
Isso não são questões teóricas ou
teológicas. Se uma pessoa tem sério interesse em compreender a si própria, verá
que todo esforço para dissolver o “eu” tem motivo; resulta de uma reação e, por
conseguinte, faz parte ainda do “eu”. Que se pode fazer, então? Pode-se ver o
fato e nada fazer em relação a ele. O fato é que todo pensamento, todo sentimento
é resultado da sociedade, com suas ambições, sua inveja, sua avidez; e
esse processo inteiro é o “eu”. O próprio ato de perceber inteiramente esse
processo constitui a sua dissolução; não se precisa fazer esforço nenhum para
dissolvê-lo. Perceber uma coisa venenosa é deixar de tocá-la.
(...) Pergunta: Depois de nos “esvaziarmos”
do “eu”, que há para preencher a mente?
Krishnamurti: Como posso
responder-lhe? Primeiro, trate de “esvaziar” a mente e, depois, você descobrirá
o que há. Não só você, pessoalmente, senhor: todos nós. Esta é uma
questão de interesse geral. Temos muito medo do vazio e desejamos preenche-lo.
Temos medo de nossa esgotante solidão, e procuramos fugir dela. É o fugir que
gera o medo; mas o fugir nos coloca ativos e, por isso, quando fugimos,
pensamos que estamos muito positivos. Quando tiverem
compreendido essa solidão, depois de atravessá-la e ultrapassá-la, descobrirão
por si mesmos o que há quando o “eu” já não existe. Mas, como em tudo mais, senhor,
devem começar pelo vazio. A taça só é útil quando vazia. Mas, para compreender
esse vazio, é preciso atravessá-lo num clarão, por assim dizer, e lançar a base
correta. Então, vocês saberão; nunca mais perguntarão o que
há
além daquele vazio.
Ouvinte: Então, por certo, o
significado da vida é este: a taça deve ser útil.
Krishnamurti: A taça só pode ser
útil quando vazia. Vocês podem então enchê-la com o que gostam. Mas se a taça
de vocês está cheia — cheia de sofrimento, aflição, conflito — que utilidade ela
tem? Senhor, que utilidade tem nossa vida, tal como é: competição, guerras,
conflitos internacionais, divisão entre Oriente e Ocidente, entre esta e aquela
religião? Que utilidade tem isso?
Interpelante: Você não me
entendeu bem. Ao dizer “a taça dever ser útil”, eu quis dizer que a finalidade
da vida é cumprir a vontade de Deus.
Krishnamurti: Todo político, todo
negociante, todo general preparador de guerras, fala sobre “a vontade de Deus”.
O comunista também fala da “vontade de Deus”, mas no seu caso se trata da “vontade
do Estado”, etc. etc. Que é a “vontade de Deus”? Só poderão averiguar isso
quando já não estiverem buscando, já não estiverem pedindo, quando já não
pertencerem a nenhum grupo separado, quando já não tiverem medo, quando se
acharem num estado de completa incerteza — que não significa demência. Nesse
estado, o pensamento já não busca um pouso seguro. Então, talvez, aquilo que se
pode chamar “Deus” — ou outro nome qualquer — começará a atuar.
Jiddu Krishnamurti — O homem e seus desejos em conflito
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