Embora de fato não haja divisão entre o interior e o exterior — na realidade o que há é um movimento — considera-se que essa divisão existe, não só quanto ao mundo dentro e fora da pele, mas também quanto à divisão entre “eu” e “tu”, “nós” e “eles”, o “amigo” e o “inimigo”, etc.
Traçamos um círculo à volta de nós próprios: um círculo em redor de “mim” e um círculo em redor de “ti”. Traçado o círculo — seja o do “eu” e do “tu”, seja da família, da nação, da fórmula, das crenças e dos dogmas religiosos, ou o círculo do conhecimento que se tece em redor de si mesmo — esses círculos separam-nos e existe assim esta constante divisão que invariavelmente produz conflito. Nunca passamos para lá do círculo, nunca olhamos para além dele. Temos medo de sair de nosso pequeno círculo e descobrir o círculo, a barreira à volta do outro. E penso que é aí que começa todo o processo, estrutura e natureza do medo. Ergue-se uma barreira em redor de si mesmo, encerrando um mundo privado cuidadosamente construído com fórmulas, conceitos, palavras e convicções. Então, vivendo dentro desses muros, fica-se com medo de sair para fora deles.
Esta divisão gera não só várias formas de comportamento neurótico, mas também muito conflito. E se porventura abandonamos um dos círculos, uma das barreiras, construímos outra, à volta de nós mesmo. Há assim esta constante e forte resistência feita de conceitos, e perguntamo-nos se é possível não ter nenhuma divisão: colocar fim a toda a divisão e desse modo eliminar todo o conflito.
As nossas mentes estão condicionadas por fórmulas: as minhas experiências, o meu conhecimento, a minha família, o meu país, o gostar e o não gostar, o antagonismo, o ciúme, a inveja, o sofrimento, o medo disto e o medo daquilo. Esse é o círculo, o muro por detrás do qual vivemos. E temos medo não só do que está do lado de dentro, mas muito mais do que está para lá do muro. Cada um, em si mesmo, pode observar este fato muito simplesmente, sem ter de ler muitos livros, sem ter que estudar filosofia, e tudo o mais. Pode muito bem ser que seja por se ler tanto do que outros têm dito que não se sabe nada acerca de si próprio, do que realmente se é, e do que de fato está se passando em si.
Se olhássemos para dentro de nós, colocando de lado o que pensamos que deveríamos ser, e vendo o que de fato somos, então, talvez descobríssemos a existência dessas fórmulas e conceitos — verdadeiros preconceitos e condicionamentos — que coloca o homem contra o homem. E assim, em todas as relações entre os homens, há medo e conflito — não só o conflito dos direitos territoriais, dos direitos sexuais, etc., mas também o conflito entre o que é e o que deveria ser.
Quando a pessoa observa esse fato em si própria — não como uma ideia, nem como uma coisa para que olha como estando de fora, mas olhando realmente para dentro de si — então pode descobrir se é de fato possível descondicionar a mente de todas as fórmulas e crenças, de todos os preconceitos e medos, e desse modo, talvez, viver em paz.
(...) Poderá o homem — vós e eu — viver completamente em paz — o que não significa levar uma existência monótona ou sem energia dinamizadora — poderemos nós descobrir se tal paz é possível? Tem de ser possível com certeza, de outro modo a nossa vida terá muito pouco sentido.
Por todo o mundo os intelectuais tentam encontrar um significado ou atribui um sentido à vida. As pessoas religiosas dizem que a existência é só um meio para atingir um fim, que é Deus — sendo Deus o verdadeiro significado. Se acontece de não se ser religioso, substitui-se então Deus pelo estado, ou inventa-se alguma outra teoria, nascida do desespero.
Assim, a nossa pesquisa consiste realmente em investigar se o homem pode viver em paz, de fato, não de maneira teórica, não como uma ideia, não como uma fórmula, de acordo com o qual se irá então viver pacificamente. Tais fórmulas, como dissemos, tornam-se muros — a minha fórmula e a tua fórmula, o meu conceito e o teu conceito — tendo como resultado divisão e constante batalha.
É possível viver sem fórmulas, sem divisão e portanto sem conflito? Não sei se alguma vez puseram a si mesmos esta pergunta, com toda a seriedade: se a mente poderá alguma vez ficar livre destas divisões do eu e do não-eu? Eu, a minha família, o meu país, o meu Deus; ou, se não tendo nenhum Deus, eu, a minha família, o Estado; e se não tenho Estado: eu, a minha família, e uma ideia, uma ideologia.
Será possível libertarmo-nos de tudo isso, não com o tempo, mas de um dia para o outro? Se aceitamos a teoria do eventual, não estamos a viver inteiramente: “eventualmente” seremos livres, ou “eventualmente” viveremos em paz. Isso, com toda a certeza, não serve: quando um homem tem fome, quer alimentar-se imediatamente. Qual é então o ato que libertará a mente de todo o condicionamento? O ato, não uma série de atos.
Reparemos na atividade egocêntrica que cria divisões: a atividade egocêntrica em redor de um princípio, de uma ideologia, de um país, de uma crença, em redor da família, etc. Essa atividade egocêntrica é separativa e portanto causa conflito. Ora, poderá esse movimento da fórmula — que é o “eu” com as suas memórias, o centro à volta do qual se constroem os muros — poderá esse “eu”, essa entidade separada com a sua atividade egocêntrica, terminar por completo, não por uma série de atos, mas por um só ato? Como sabem, tentamos eliminar os conflitos pouco a pouco, cortando a árvore em pequenos pedaços, sem nunca lhe atingirmos a raiz. Assim, pergunta-se se será de fato possível, com um só ato, colocar fim a toda esta estrutura de divisão, colocar fim à separatividade, à atividade egocêntrica — todas elas geradoras de conflito, de guerra, de luta. Será possível?
(...) Portanto, supondo que se é suficientemente sério, qual é o nosso problema? Como viver a nossa vida aqui — não num mosteiro ou em algum mundo romântico de sonhos, não em algum mundo emocional, dogmático, regido pela droga — mas aqui e agora, todos os dias; como viver completamente em paz, com grande inteligência, sem qualquer frustração, sem medo: viver inteiramente, num estado de felicidade profunda — o que evidentemente implica meditação — este é na realidade o problema fundamental. E também se é possível compreender esta vida na sua totalidade: não em fragmentos, mas completamente — estar totalmente envolvido nela e não apenas empenhado numa parte; estar implicado no processo total de viver, sem conflito nenhum, sem angústia, sem confusão ou sofrimento. Este é o problema real. Porque só então se será capaz de criar um mundo diferente. É essa a verdadeira revolução, a revolução interior, psicológica, da qual nasce imediatamente uma revolução exterior.
(...) Vemos que estas divisões, estas fórmulas de “eu” e “não-eu”, “nós” e “eles”, por detrás das quais vivemos, originam medo. E se pudermos tomar consciência deste medo global, deste medo total, poderemos compreender estão qualquer medo particular. Ao passo que tentar compreender apenas um pequeno e limitado medo particular, embora muito ornamentado, não terá qualquer sentido até que se compreenda todo o problema do medo.
O medo destrói a liberdade. Podemos revoltar-nos, mas a liberdade não é isso. O medo perverte todo o pensamento, destrói toda a relação. Repare que não se trata só de palavras: é um fato evidente em toda a vida de cada um — existe medo do princípio ao fim. Medo da opinião pública, medo de não ser bem sucedido, medo da solidão, medo de não ser amado; e há ainda o comparar-nos a nós próprios com o herói do que “deveria ser”, originando assim mais medo. Além disso, o medo não reside apenas no nível observável da mente, estende-se também a zonas profundas. Queremos pois saber se este medo poderá acabar — não de modo gradual, não por partes, mas completamente.
Que é então este medo? Por que é que se tem medo? Será por causa do que está para lá do círculo, ou dentro do círculo — ou será por causa do próprio círculo? Compreendem o que queremos dizer? Não estamos a tentar descobrir a causa particular deste medo, porque, como ontem dissemos, a descoberta da causa, o processo analítico da compreensão da causa e efeito, não acaba necessariamente com o medo — tem-se jogado nisso há muito tempo. Mas quando se vê este medo — como se vê este microfone, o que ele realmente é — será que ele existe dentro do muro, ou do outro lado do muro, ou existe exatamente por causa do muro? Certamente que existe por causa do muro. Existe factualmente tal como é, quando o observamos, por causa do próprio muro. Como é então que surge o muro?
(...) Como é que surge então este muro de resistência, de divisão e de separação? Em tudo o que fazemos, em todas as nossas relações, por muito intimas que sejam, há essa divisão, a criar confusão, sofrimento e conflito. Como é que aparece esta barreira? Se somos realmente capazes de compreender isto — não verbalmente, não intelectualmente, mas capazes de vê-lo e de senti-lo de fato descobriremos que a barreira deixa então de existir.
(...) O muro surge por certo através do mecanismo do pensamento. Não? Antes de se pronunciarem, observem apenas, observem o pensamento. Se não houvesse pensamento acerca da morte, não se teria medo dela. Se não fossemos educados para sermos Cristãos, católicos, Protestantes, Hindus, Budistas ou sabe Deus que mais, se não estivéssemos condicionados pela propaganda, pelas palavras, pelo pensamento, não teríamos barreira alguma. E podemos ver de que maneira o pensamento, como “eu” e “tu”, origina isso. Com as suas atividades egocêntricas, o pensamento cria não só o muro, mas também a nossa própria atividade dentro do nosso muro.
É pois o pensamento, ao produzir divisão, que cria o medo. Pensamento é medo, tal como pensamento é prazer. Ontem vi algo muito belo: um belo rosto, um pôr de Sol maravilhoso, ou então aconteceu algo agradável; o pensamento pensa nisso: “como foi bom”. Observem isto, por favor: “que experiência tão agradável”, e o pensamento, pelo próprio ato de pensar, dá a essa experiência uma continuidade de prazer. Deste modo, o pensamento é o responsável não só pelo medo, mas também pelo prazer. Isto é bem claro, evidentemente: porque esta tarde se gostou de uma determinada refeição, quer-se que esse prazer se repita; ou teve-se uma experiência sexual, e o pensamento pensa nela, rumina-a, mastiga-a repetidamente, cria o quadro, a imagem, e quer tê-la outra vez. É a esse prazer repetido que chamam amor. E o pensamento, tendo criado o círculo, a barreira, a resistência, a crença, tem medo de que isso seja destruído, ao deixar entrar alguma coisa além do muro.
Assim, o pensamento gera tanto o prazer como o medo. Não se pode ter o prazer sem o medo; ambos andam juntos, porque são filhos do pensamento. E o pensamento é o filho estéril de uma mente que apenas se preocupa com o prazer e com o medo. Observem isto, por favor. Deixem-me lembrar-lhes outra vez que estamos a fazer a viagem juntos: estão a examinar-se, a observar-se a si mesmos no espelho das palavras.
Medo, sofrimento e prazer são assim resultado do pensamento. E todavia, o pensamento tem de funcionar logicamente, com sensatez de maneira sadia e objetiva, sempre que esse funcionamento é necessário, no mundo tecnológico — não na relação humana, porque no momento em que o pensamento ser intromete nesta relação há medo; então há nisso prazer e sofrimento. Não estou a dizer nenhuma insensatez: vós próprios podeis constatá-lo. O pensamento é a resposta da memória, da experiência e do conhecimento, e por isso é sempre velho e nunca é livre. Certamente que há “liberdade de pensamento”: ou seja, liberdade para dizer o que se quer. Mas o pensamento, em si, nunca é livre e nunca pode criar liberdade. O pensamento pode perpetuar quer o medo quer o prazer, mas não a liberdade. E onde há medo e prazer, o amor deixa de estar. O amor não é nem pensamento nem prazer. Mas para nós o amor é prazer e, portanto, medo.
Quando se toma consciência de toda esta questão da vida tal como é — não como gostaríamos que fosse, nem de acordo com algum filósofo ou algum sacerdote consagrado, mas como ela realmente é — pergunta-se se o pensamento pode ter o seu lugar adequado, e todavia não ter qualquer interferência em todo o relacionamento. Isto não significa uma divisão entre os dois estados de pensamento e não-pensamento. Como sabem, tem de se viver neste mundo, é preciso ganhar a vida, infelizmente, e ir para o emprego. Se alguma vez se conseguir que haja um governo capaz para o mundo inteiro, talvez então, não precisemos de trabalhar mais do que um dia por semana, deixando o resto aos computadores, o que nos permitirá ter tempo disponível. Mas enquanto isso não acontece, tem de se ganhar a vida, e ganha-la de maneira completa e eficiente. Contudo, no momento em que essa eficiência fica deformada, por exemplo pela avidez ou pelo terrível desejo de sucesso, e de ser “alguém”, surge a barreira do “eu” e do “não-eu” a originar competição e conflito.
Ao compreendermos tudo isto, como poderemos então viver com dignidade, com uma eficiência que não seja desumana, e ainda em completa relação, não só com a natureza, mas também com outro ser humano, uma relação em que não haja sombra do “eu” e do “tu” — essa barreira criada pelo pensamento?
Quando se compreende realmente tudo isto — não verbalmente mas de fato — o próprio ver, ver realmente, é o ato que destrói o muro da separação. Quando se vê o perigo de alguma coisa — um precipício, um animal perigoso, etc. — há ação. Pode bem ser que essa seja resultado de um condicionamento, mas não é um ato de medo: é um ato de inteligência.
Do mesmo modo, ver inteligentemente toda esta estrutura, a natureza desta divisão, o conflito, a luta, o sofrimento, o egocentrismo — ver realmente o seu perigo, significa o seu fim. E não há “como”. Assim, o que é importante é fazer a viagem por dentro de tudo isso — sem ser conduzido por outrem, porque não há guia — e ver o mundo tal como é: a extrema confusão, o infindável sofrimento do homem, vê-lo realmente. Então, o ver toda essa estrutura é o findar disso.
Krishnamurti — extratos da conferência na Universidade de Stanford